Jacaré
Meu nome é Rubens, mas nessa vida aqui, todo mundo me chama de Jacaré. Não é por m*l, não. É que eu tenho uns dentes grandes e, quando era mais novo, eu tinha um jeito de rastejar nos becos que os cara achou que parecia um jacaré.
O apelido pegou e ficou.
Faz parte.
Minha história não é bonita, nem diferente da de muita gente aqui no morro. O meu pai? Nem faço ideia de quem era. A minha mãe... a minha mãe morreu de overdose quando eu tinha cinco anos. Lembro dela mais como um cheiro, uma sensação, do que como um rosto. Aí ficou minha vó, a dona Celina. Mulher de fibra, criou eu e mais dois netos com o que conseguia juntar de faxina. Mas o coração dela era fraco, e quando eu tinha catorze anos, ela foi de arrasta pra cima também.
Fiquei sozinho no mundo.
O conselho tutelar veio dar uma olhada, mas eu já era esperto. Sabia que se me levassem, ia ser pior.
Então, dei no pé.
E pra sobreviver, entrei pro tráfico.
Comecei de olheiro, subindo na vida até chegar aonde tô hoje: sub do Tito, o dono do morro.
Já roubei.
Já matei.
Me arrependo?
Claro que me arrependo, p***a.
Às vezes acordo no meio da noite suado, lembrando de uns bagulho que eu fiz. Mas na hora, é isso ou ser comido. Aqui é a selva, mano. Ou você é o predador, ou você é a presa.
Mas minha vida mudou quando conheci a Patrícia. Ela não é do morro, é do asfalto. Conheci ela num baile, e foi tipo um tapa na cara. Ela tem um jeito diferente, um jeito limpo. E quando a Lorena nasceu... p***a, aí sim que o mundo virou de cabeça pra baixo. Minha filha tem quatro anos agora, e é a coisa mais preciosa que eu tenho. Tudo que eu faço, eu faço pensando nela.
A Patrícia vive com o coração na mão. Ela tem medo de me perder num tiroteio, num confronto. Mas o pior é o medo que ela tem de que eu faça alguma merda grande, que eu me afunde num buraco sem volta. Ela quer que eu saia dessa vida, mas como? É o único trampo que eu sei fazer. É o que paga o aluguel delas, a comida, as fralda quando era preciso.
Ser sub do Tito não é mole.
O cara é instável.
Um dia tá de boa, no outro tá querendo arrancar a cabeça de alguém por um motivo b***a. E o bagulho com a Soraia... isso me deixa maluco. O cara mantém a mina presa em casa, trata que nem lixo, bate nela querendo uma lealdade que ele nunca vai ter. Como que alguém vai ser leal a um monstro desses?
E o pior é que o Tito não para por aí. Ele pega um monte de garota pelo morro. Lá no QG, a sala dele é um puteiro. Sempre tem uma novinha sendo usada, mamando ele ou sendo arrebentada de quatro.
Confesso que eu também já fui assim, na minha fase de p*****a. Mas depois que a Patrícia entrou na minha vida, essa p***a perdeu a graça. Ver aquilo agora me dá um nojo, uma tristeza.
Enfim, essa noite tava mais tensa que o normal. O Tito me chamou na varanda da casa dele. Dava pra ver que o ciúme tava comendo ele por dentro.
— Jacaré, esse Lobo... o que tu acha dele?
Mano, na hora eu fiquei em alerta.
Eu já tinha minhas suspeitas sobre o Lobo, mas não ia chegar chegando com isso não.
— Cumpre o serviço, chefe. Quieto. Não arruma confusão.
— É... quieto demais, né? — O olho do Tito tava vidrado em mim, querendo fuçar minha alma. — Tu não acha que ele tá de olho na minha mulher não?
Porra, aí é osso. Como falar que sim sem me queimar?
— Chefe, com todo respeito... a patroa é gata. Os cara olha, mas não acredito que ele tenha culhão pra mexer com a dona Soraia. Ela é proibida e qualquer cuzão sabe.
Aí ele explodiu.
— Mas não é todo mundo que eu contrato pra ficar dentro da minha casa, p***a! — Ele quase gritou, mano. — Ela é diferente. E ela olha pra ele também. Tu não tá vendo não?
Tentei falar baixo, tentando acalmar o bonde.
— Chefe, posso falar uma parada? O Lobo é estranho, sim. Uns dias atrás, eu peguei ele no seu escritório. Tava mexendo nas suas coisas.
O olho do Tito arregalou.
— É O QUÊ? QUE PAPO É ESSE?
— Falou que tava procurando um carregador, que você tinha pedido. Mas tava com uma cara estranha.
Mano, o clima pesou.
O Tito ficou andando de um lado pro outro, igual leão enjaulado. Eu sabia que tava botando lenha na fogueira, mas também não dava pra esconder.
O Tito não é burro.
Ele ia descobrir de um jeito ou de outro, e aí iam falar que eu tava encobrindo.
— p***a Jacaré, e tu me conta isso só agora?
— Chefe, não tinha prova nenhuma. Só um pressentimento. E o lobo é útil. É bom no que faz.
— Tá bom. Eu não lembro de ter pedido nada pra ele. — ele levantou, andando inquieto. — Vamos fazer o seguinte. — ele falou, parando na minha frente. — Fica de olho nele. Dobrado. E na Soraia também. Qualquer coisinha, qualquer mensagem, qualquer encontro estranho, tu me avisa na hora.
— Pode deixar, chefe.
Aí ele chegou mais perto, o rosto dele a centímetros do meu. O cheiro de cerveja e ódio era forte.
— E, Jacaré... Se eu descobrir que tem algo... que esse filho da p**a tá metendo chifre em mim com a MINHA mulher dentro da MINHA casa... não vai sobrar pedaço dele. E ela... ela vai aprender a nunca mais me desrespeitar.
Eu só acenei.
O que ia falar?
Que ele tá ficando paranoico?
Que a Soraia nunca ia dar moral pra um segurança? Mas eu sei que não é verdade. Eu vi o jeito que ela olha pro Lobo. É um olhar que não é de medo. É de... interesse.
Quando saí dali, a cabeça tava a mil. Por um lado, o Lobo é um cara útil. Disciplinado, bom no trampo. Mas por outro, ele é uma bomba-relógio. E se o Tito pegar ele com a Soraia, vai ter sangue. E muito.
Cheguei em casa e a Patrícia tava esperando, com a cara de preocupação de sempre.
— Tudo bem, Rubens?
— Tudo numa boa, Patricia. Só uns pepino do trampo.
Ela não falou nada, mas o olhar dela dizia tudo. Ela sabe que "pepino do trampo" geralmente significa problema sério.
Fui ver a Lorena dormindo.
Ela tava com a boca aberta, a respiraçãozinha calma. Aquela pureza me corta o coração. Eu não quero que ela cresça num mundo assim. Não quero que ela tenha que viver com medo, que ela veje o pai se afundando nessa merda.
Enquanto ficava olhando ela dormir, eu pensava no Lobo. No Tito. Na Soraia. É um jogo perigoso, e eu tô no meio. Se eu não avisar o Lobo, ele pode se ferrar. Mas se eu avisar, e o Tito descobrir, eu e minha família estamos ferrados.
A verdade é que eu tô cansado.
Cansado dessa vida.
Cansado de ser o cão de guarda de um maluco. Cansado de ver gente se fodendo todo dia. Mas como sair? Pra onde ir? O Tito não deixa ninguém sair assim, fácil. Quem sabe demais, ou tá com ele até o fim, ou vira estatística.
Agora eu tenho que botar uns vapô pra seguir o Lobo. Vou botar o Dedé e o Paulinho, dois c***a esperto. Mas me pergunto: o que eu vou fazer se eles trouxerem alguma prova? Se eu descobrir que o Lobo e a Soraia tão se vendo?
Mano, o bagulho tá feio. E eu, o Jacaré, tô no meio do rio, sem saber pra que lado nadar. Só sei de uma coisa: não posso deixar que essa merda toda respingue na Patrícia e na Lorena. Elas são tudo que eu tenho de bom nessa vida fodida.
O resto... o resto é fumaça.