Lobo
O perigo tem cheiro. É um negócio que a gente aprende na guerra. Não é só a pólvora ou o sangue. É um cheiro de tensão no ar, de suor frio, de adrenalina prestes a estourar. E ultimamente, esse cheiro tá impregnado em tudo nessa casa maldita.
O Tito tá se aproximando.
Não sei como, não sei o que ele sabe, mas a antena dele tá apontada pra mim. O Jacaré também me observa demais ultimamente. Claro, além de que sempre tem um vapô me seguindo, aquele magricela de boné que acha que é esperto. Eu finjo normalidade, ando na linha, mas por dentro tô no limite. Cada nervo do meu corpo tá esticado como um elástico prestes a arrebentar.
A única coisa que me acalma, ironicamente, é estar perto da Soraia. Mas até isso virou um perigo. Cada olhar que a gente troca, cada silêncio que a gente compartilha, é um risco. O Tito não é burro. Ele sente a mudança nela, e ele sabe que tem a ver comigo.
Hoje à noite, o bicho pegou. O Tito chegou alterado. Dava pra ver de longe. O andar dele, o jeito que ele bateu a porta do carro. Ele veio direto pra cima dela, e os gritos começaram antes mesmo de eu conseguir me posicionar direito.
— Senti falta de você esses dias, sua v***a. — a voz dele, grossa, ecoou pela casa.
Eu fiquei do lado de fora, na varanda, fingindo que tava fazendo minha ronda. Mas cada palavra era uma facada. Ouvi ela tentando se defender, a voz trêmula, e meu instinto era entrar lá e arrancar a cabeça daquele filho da p**a. Mas aí lembrei do que ela me pediu.
"Não se mete, Lobo. Por favor."
É f**a.
É a coisa mais difícil que eu já fiz. Ficar parado, ouvindo o cara que eu mais odeio nesse mundo humilhar a mulher que... a mulher que eu... p***a, nem sei o que ela é pra mim.
Só sei que dói. Dói na alma.
Mas eu obedeci. Fiquei lá fora, com as mãos tão cerradas que as unhas cavaram a palma. Até que eu ouvi um baque forte e alto como se ela tivesse caído com força no chão, e ela gritou. Não deu. Não deu pra ficar parado.
Me levantei e fui pra dentro.
Não entrei no quarto, mas fiquei no corredor, do lado de fora da porta. A respiração dela, entrecortada de choro, o Tito xingando, falando merda. Cada som me enchia de um ódio que eu nem sabia que era capaz de sentir.
— Ultimamente você não serve nem pra me satisfazer. — Tito gritou.
Eu tava ali, parado no escuro, me segurando pra não arrombar a porta, quando ela se abriu de repente.
O Tito tava semi nu, só de cueca, o rosto vermelho de raiva e álcool. E ele me viu. Na mesma hora. Nossos olhos se cruzaram no corredor escuro.
Não foi um olhar de surpresa.
Foi um olhar de reconhecimento.
De desafio.
Ele sabia que eu tava ali ouvindo tudo. E eu sabia que ele me viu como uma ameaça.
Um rival.
O ar parou.
A casa inteira ficou em silêncio, só o som da respiração pesada dele e a minha, controlada, mas cheia de um ódio mortal. Ele não disse nada. Só me encarou, com aquele olhar de quem tá decidindo se puxa a arma agora ou se deixa pra depois.
Eu também não falei nada. Só mantive o olhar firme, os punhos ainda cerrados ao meu lado.
Foi só um instante, mas foi o suficiente.
A guerra tava declarada.
E nós dois sabíamos.