Aquela conversa na varanda ficou martelando na minha cabeça durante o resto do dia. Letícia se retirou logo depois, e eu permaneci deitado ali, na rede que rangia suavemente a cada movimento do vento, tentando encontrar dentro de mim uma forma de sufocar tudo aquilo que insistia em viver — mesmo depois de tantos anos, da distância, da ausência de notícias, mesmo depois dela me dizer com todas as palavras que amava o meu irmão.
Mas era impossível.
A noite caiu lenta, e com ela, vieram os risos da família reunida na sala. Meus pais estavam sentados no sofá, com minha mãe já organizando os últimos detalhes do jantar. Daniel e Letícia estavam lado a lado, dividindo uma taça de vinho, cochichando coisas um no ouvido do outro e rindo como adolescentes. A luz amarela da sala fazia parecer uma pintura, uma cena de novela, daquelas que exibem a tal da felicidade perfeita. A cena que qualquer um invejaria.
E eu? Eu era o figurante. A presença que estava ali por conveniência. Um corpo a mais na mesa. Um nome a mais na lista de convidados.
— Logan, me ajuda aqui na cozinha? — minha mãe chamou.
Levantei em silêncio e fui até ela. Enquanto eu cortava algumas verduras e ela mexia a panela no fogão, pude ouvir o burburinho da sala continuar. A cada risada de Letícia, meu estômago se contorcia mais.
— Sabe, filho — minha mãe começou, sem nem me encarar —, fico tão feliz em te ver aqui de novo. A casa andava tão vazia sem você.
— É, o tempo passa — murmurei.
Ela me lançou um olhar rápido, como quem queria dizer mais, mas segurou. Acenou com a cabeça, como se aceitasse minha resposta pela metade.
— E o que achou da Letícia?
Fiquei em silêncio por alguns segundos, sentindo o peso daquela pergunta. O nome dela na boca da minha mãe soava errado, íntimo demais. Eu queria gritar. Dizer que achava ela tudo, menos "a noiva do Daniel". Queria confessar que ainda sentia o gosto da pele dela nos meus lábios, mesmo depois de tantos anos. Mas o que saiu foi:
— Ela parece uma boa pessoa.
Minha mãe sorriu, satisfeita com a resposta morna.
— Daniel está tão apaixonado. Você precisava ver como ele falava dela nas ligações... Ele está feliz, Logan. De verdade.
Feliz. A palavra voltou a queimar dentro de mim.
O jantar aconteceu sem grandes surpresas. Daniel estava cada vez mais entusiasmado com o casamento, contando animado os detalhes que ele e Letícia haviam definido — desde as flores até o lugar da cerimônia, uma fazenda afastada na região. Ela ouvia tudo com atenção, sorrindo, e às vezes, completando as ideias dele com delicadeza.
Por fora, eu sorria. Por dentro, era como se alguém estivesse martelando uma estaca no meu peito.
Mais tarde, já no quarto de hóspedes, deitei na cama sem conseguir dormir. O colchão era firme demais, o travesseiro macio demais. Tudo ali parecia gritar que eu não pertencia mais àquela casa. Virei de lado e, por impulso, peguei o celular. Abri a galeria. As fotos antigas ainda estavam ali, guardadas como pecados silenciosos que ninguém mais sabia. Eu e Letícia. Rindo em algum parque em Portugal. Ela usando o meu moletom, tirando uma selfie com o cabelo bagunçado. Nós dois deitados na grama, o céu azul ao fundo e o coração inteiro no olhar dela.
Ela dizia que me amava. Que nunca sentiu nada igual. Que queria fugir comigo.
A memória bateu com força.
E então, como se fosse uma maldição viva, ouvi batidas leves na porta.
Virei-me imediatamente, sentando na cama. O coração já acelerado antes mesmo de saber quem era. A maçaneta girou devagar, e a porta se abriu com um rangido leve. Letícia entrou devagar, usando um roupão branco e os pés descalços.
— Preciso falar com você — ela sussurrou.
Me levantei, ainda atordoado. Ela fechou a porta atrás de si e encostou as costas nela. A luz do abajur jogava sombras suaves em seu rosto. Ela estava tensa.
— Você não devia estar aqui — falei, num tom mais baixo que o normal.
— Eu sei.
Ela deu um passo, depois outro, até estar perto o suficiente pra eu sentir o perfume dela. O mesmo de antes. O mesmo que ficou impregnado em tantos momentos do meu passado.
— Eu preciso que você saiba a verdade... — ela disse, baixando os olhos. — Quando comecei a me aproximar do Daniel, eu não fazia ideia de que ele era seu irmão. Eu juro por tudo.
— Mas você descobriu depois. E mesmo assim ficou.
Ela assentiu lentamente, os olhos cheios de culpa.
— Quando percebi, já estava envolvida demais. Daniel foi incrível comigo, Logan. Ele me deu estabilidade. Me mostrou carinho. Eu me senti segura com ele.
— Mas não me esqueceu — completei por ela.
Ela me olhou. Não negou.
— Não... — sussurrou.
Havia um tremor na voz dela. Um fio tênue entre o que era certo e o que a alma pedia. E, naquele instante, o que mais me doía era saber que ela realmente gostava do Daniel. Ela o amava. Mas não havia apagado o que sentíamos.
Ela estendeu a mão e tocou meu rosto. Um gesto suave, cheio de lembrança e dor.
— Me perdoa — pediu.
Fechei os olhos por um instante, inclinando o rosto contra a palma da mão dela.
— Eu não sei se consigo.
Letícia recuou, com os olhos marejados. Quando virou-se para sair, senti o impulso de segurá-la, de pedir para ficar. Mas a única coisa que consegui fazer foi observá-la sair em silêncio, tão lentamente quanto entrou.
Quando a porta se fechou, tudo pareceu mais frio.
E eu soube, com absoluta clareza, que aquele casamento estava prestes a acontecer com três corações em conflito.
E um segredo que podia explodir a qualquer momento.
O passado tem um jeito c***l de se infiltrar nos momentos mais vulneráveis. Depois que Letícia saiu do quarto naquela noite, eu não consegui mais dormir. O silêncio da casa parecia gritar nas paredes, e meu corpo, inquieto, buscava no escuro uma lembrança que fosse menos dolorosa. Mas não existia. Porque tudo com Letícia sempre foi intenso — até mesmo o fim.
Voltar no tempo é como reabrir uma ferida. Mas há coisas que, mesmo em silêncio, continuam pulsando dentro da gente. E Letícia era uma dessas coisas. Ou melhor — ela era tudo.
Conheci Letícia em uma tarde qualquer, sem expectativas, sem prever que meu mundo mudaria por causa de um sorriso tímido escondido atrás de um balcão de livraria. Ela estava com um fichário nas mãos e óculos escorregando pelo nariz. Era nova na cidade. Tinha acabado de se mudar com a mãe para Lisboa, tentando recomeçar a vida depois do divórcio conturbado dos pais. Eu estava estudando, trabalhando em meio período como tradutor para uma editora, e às vezes passava naquela livraria só pra escapar do caos da minha rotina.
A primeira vez que trocamos olhares foi breve, mas suficiente. Senti como se o tempo parasse. Havia algo naquela garota com jeito de quem carregava o mundo nos ombros, mas ainda assim sorria como se tivesse guardado a luz do sol na alma. Acabei comprando um livro que nem me interessava só para puxar assunto.
— Você gosta de Murakami? — ela perguntou, apontando para a capa do livro em minhas mãos.
— Nunca li — confessei, sorrindo. — Mas ouvi dizer que quem lê Murakami nunca volta igual.
Ela riu, e naquele riso, eu soube que estava perdido.
Mais tarde, descobrimos que iríamos estudar na mesma faculdade, ali, começamos a nos aproximar. Nosso namoro começou como começam as histórias mais bonitas: sem pressa. Longas conversas sobre literatura e filmes antigos, caminhadas de mãos dadas pelas ruas estreitas da cidade, cafés demorados em cantos escondidos. Letícia era inteligente, doce, curiosa. Tinha um senso de humor sutil e uma sensibilidade que me fazia querer protegê-la do mundo.
Eu me apaixonei por ela com uma força que me assustou. Ela dizia que eu era sua paz, o lugar seguro depois de anos vivendo entre brigas e incertezas. E eu me deixei ser isso pra ela.
Ficamos juntos por quase dois anos.
Foram os anos mais intensos da minha vida.
Mas então... a vida aconteceu.
Recebi uma proposta de trabalho em Dubai. Uma das maiores empresas de tecnologia queria alguém com o meu perfil — falante de três idiomas, especialista em negociações, perfil discreto, confiável. A oferta era absurda. Salário, moradia, bônus. Um futuro garantido. Eu não podia recusar. Depois de tantos anos de estudo e esforço, aquilo era o ápice. O reconhecimento que eu sempre persegui.
Quando contei pra Letícia, ela ficou em silêncio por longos segundos. Depois, apenas disse:
— Quando você vai?
— Em um mês — respondi, tentando parecer calmo, mas por dentro, já me partindo.
Ela desviou o olhar, encarando a parede do nosso pequeno apartamento. O silêncio entre nós foi mais c***l do que qualquer briga que já tínhamos tido.
— Você quer que eu vá com você?
A pergunta dela caiu como uma bomba. Porque eu queria. Queria muito. Mas a verdade era que Dubai não era um lugar fácil pra ela. Letícia ainda estava estudando, tinha planos próprios, uma mãe com saúde frágil que dependia dela. E eu, no fundo, sabia que estava escolhendo a mim. Escolhendo o meu futuro. Meu sonho.
— Eu não posso te pedir isso — respondi.
— Mas eu iria... se você pedisse — sussurrou.
A dor no olhar dela ficou gravada em mim. Nunca esqueci.
Nos últimos dias antes da viagem, fizemos de tudo para fingir que o fim não estava ali. Passeios, noites de amor, planos que sabíamos que não seriam cumpridos. Ela tentou ser forte. Eu também. Mas no aeroporto, quando a abracei pela última vez, percebi que estava deixando um pedaço da minha alma ali, nos braços dela.
— Me promete uma coisa? — ela disse, com os olhos marejados.
— Qualquer coisa.
— Não me esquece.
Fechei os olhos. Beijei sua testa. Disse que jamais esqueceria.
E cumpri.
Mesmo com os anos, com o dinheiro, com os novos rostos e as cidades luxuosas, ela sempre foi a única lembrança que continuava nítida. Nunca desfocou. Nunca saiu do lugar.
Só que agora, Letícia estava de volta.
E não era mais minha.
Ela era a noiva do meu irmão.
Mas o passado... o passado não estava morto.
Estava apenas esperando a hora certa de retornar.