Capítulo 1
— O papai...
— Ele não é seu pai! — bradou.
E então, algo estranho aconteceu: sua mão tocou minha clavícula. Um toque rápido, leve, quase carinhoso. O bastante para me arrepiar por completo.
Por um instante, eu me lembrei de quando Pietro me tratava diferente.
De quando me oferecia copos de água nas madrugadas em que eu não conseguia dormir.
De quando ele dizia que eu podia respirar tranquila naquela casa.
Não um exemplo claro de carinho, mas era gentileza, e agora tudo o que restava era um vazio cortante.
— Por que me odeia tanto assim? — perguntei, com a voz mais baixa do que pretendia.
Os olhos dele cravaram nos meus, duros como aço.
Ele demorou. Apenas o suficiente para que eu achasse que não responderia. Mas então, disse:
— Porque você existe... e ela existiu.
Nada além disso.
Antes que eu pudesse responder, uma segunda voz cortou o ar:
— Eu consigo sentir o peso dessa sala a quilômetros de distância.
Luca.
Claro que seria ele.
Enquanto Pietro me olhava como se eu fosse uma presença incômoda que ele era obrigado a suportar, Luca surgia com aquele sorriso preguiçoso nos lábios e insolência nos olhos. Um contraste escandaloso. Um provocador nato.
— Você vai assustar a garota desse jeito, Pietro. Ela já parece pronta para fugir correndo.
— Talvez ela devesse mesmo. — Pietro respondeu, sem me encarar. — Sair de onde não é bem-vinda é uma arte.
Luca se aproximou por trás. Sem aviso. Sem permissão. Ajustou o colar ao redor do meu pescoço com movimentos lentos, intencionais. Os dedos dele tocaram minha pele com precisão ensaiada. E mesmo sem querer, meu corpo reagiu.
— Esse fecho sempre me irrita… — murmurou próximo à minha orelha. Sua voz estava mais baixa, mais grave. — Mas você fica linda com esse colar. Uma herdeira de verdade. Uma obra-prima em exposição.
O toque somado a sua voz arrepiou meu corpo por inteiro.
Luca era feito disso. Palavras que soavam como elogios, mas carregavam segundas e terceiras intenções. Sedutor até em seu silêncio.
— Luca. — Pietro disse, ríspido. — Está perto demais, não acha?
— O quê? Estou apenas sendo gentil, Pietro. — Luca deu um meio sorriso, sem disfarçar o sarcasmo. — Você devia tentar, irmão. Ou pelo menos fingir, por uma noite, que ela não é uma maldição ambulante.
Pietro me lançou um olhar afiado. Aquele tipo de olhar que queima, mas não esquenta.
— Está parecendo uma v***a — ele disse, direto. — Esse vestido é ridículo, o decote não deixa nada para a imaginação.
Travei a mandíbula, mas segurei.
— Foi feito sob medida para mim. A mando do nosso pai. E aprovado por ele.
— Isso não muda o fato de que ele grita por atenção — retrucou Pietro, com desprezo. — É justo demais.
— Está perfeitamente desenhado no meu corpo — respondi, sustentando o olhar dele. — E eu me visto como quiser.
— Enquanto carregar meu sobrenome, não.
Luca soltou uma risada abafada atrás de mim.
— Você vai causar um infarto no nosso querido primogênito, Sofia. E a noite nem começou.
— Ele vai sobreviver — respondi, voltando o olhar para Pietro, que ainda me encarava como se quisesse me apagar da existência.
— Nós não somos irmãos dela — ele corrigiu Luca, com frieza absoluta.
A frase me atingiu em cheio.
A confirmação do que eu sempre soube… mas nunca ouvi de forma tão crua.
— Não mesmo — murmurei. — Vocês nunca se comportaram como irmãos.
O maxilar dos dois se tensionou ao mesmo tempo. Os olhares endureceram. E por trás do controle do mais velho e da provocação do mais novo, eu vi. Vi claramente.
Algo queimava ali.
Uma raiva contida. Um incômodo que nenhum dos dois admitia. Um desejo que nenhum ousava nomear.
E isso me desestabilizava mais do que qualquer palavra dita.
Porque Pietro nunca me olhava como uma irmã.
Mas hoje… ele me olhava como se eu fosse uma ameaça.
E Luca, que sempre usou o flerte como escudo, agora parecia jogar para valer.
E eu?
Eu parecia estar no centro do campo de guerra, sem armadura.
...
As luzes do salão dançavam sobre os lustres, refletindo como lâminas polidas no cristal. A festa pulsava ao fundo, repleta de risos, brindes e intenções que ninguém verbalizava. Eu continuei parada, como se não fizesse parte daquilo. Como se fosse apenas mais um objeto de decoração.
Pietro surgiu diante de mim, rígido e sombrio, como sempre, e sua mão se estendeu, fria e firme.
Aquela não era uma oferta gentil. Era uma ordem mascarada de cortesia. Uma apresentação obrigatória. Eu hesitei por um segundo. Não por medo, mas porque tudo em mim gritava para recuar.
Aceitei mesmo assim.
— Deve estar odiando isso, não é — murmurei.
— Não se acostume — respondeu. — É só protocolo.
O toque dele era gelado. Mas o modo como me puxou foi quente demais. Forte demais.
Senti meus pés se desequilibrarem por um instante, e, num movimento automático, ele me segurou pela cintura, colando meu corpo ao dele com uma firmeza quase brutal.
— Cuidado. — disse, sem sequer olhar para mim. — Está cercada de olhos.
— Estou acostumada.
— Duvido.
A música era lenta, mas ele dançava como quem arrasta alguém para o fundo de um abismo. Seus dedos pressionavam minha cintura com mais força do que o necessário, como se quisessem marcar. Os olhos fixos nos meus, a respiração controlada demais.
E, de repente, ele inclinou o rosto.
Eu achei que fosse um movimento de cena. Algo casual, calculado. Mas Pietro inspirou junto à minha pele, bem na curva do pescoço. Tão lentamente que poderia fazer qualquer santa pecar.
Engoli em seco.
O mundo inteiro desapareceu por um segundo. Senti o arrepio escorrer pela espinha e pousar entre as pernas. Me odiei por isso.
E então… algo pressionou minha barriga, firme e denso.
Minha mente reagiu primeiro. Ele está armado. Só isso... não é uma ereção.
Mas o corpo dele dizia outra coisa.
— Está desconfortável? — ele perguntou, a voz ainda fria.
— Com o seu desprezo ou com a sua presença física? Porque, sinceramente, estou me acostumando com ambos.
Ele riu. Foi um som curto, amargo.
— Você adora fingir que tem algum controle.
— E você adora fingir que me odeia.
A mão dele subiu um pouco mais, tocando o tecido leve nas minhas costas. Os olhos desceram pelo meu corpo como se ele estivesse avaliando um objeto.
E as imagens do passado vieram rápido, sem aviso.
A porta da mansão se abrindo três anos atrás.
Pietro me encarando do topo da escada como se eu fosse um fardo.
Luca rindo baixinho, comentando que “ela até que é bonita, pena ser só uma órfã”.
E eu... ali no meio.
Comendo sozinha. Dormindo num quarto afastado. Me ensinando a calar tudo que doía.
Voltei ao presente quando Pietro me puxou de volta com brutalidade ensaiada. Nossos corpos colados. Seu olhar nos meus como se quisesse me despedaçar, e soltou minha mão no segundo seguinte, me deixando sozinha no centro da pista.
Mas antes que eu pudesse reagir, Luca já estava ali.
Um giro leve. Um toque gentil. Um sorriso suave.
— Nossa, ele é um charme na pista, né? — ironizou. — Você está bem?
— Ele não me derrubou, se é isso que quer saber.
— Mas queria. Ele dançou como se estivesse tentando quebrar você em pedaços.
— Você já me viu inteira alguma vez?
Ele não respondeu. Me puxou com leveza para um novo giro. E por um segundo, me senti... flutuar.
— Sabe, Sofia… — disse, mais baixo — seria impossível para nós te vermos como irmã.
— Eu sei — respondi, firme. — Por isso não espero mais nada de nenhum de vocês.
Continuei dançando até a música acabar.
Depois, saí.
Corri para o banheiro, fechei a porta e me olhei no espelho.
A maquiagem perfeita, o vestido impecável, o colar frio, tudo no lugar, menos eu.
— Vai acabar se apaixonando por ela desse jeito. — Não reconheci a primeira voz de quem estava falando próximo a porta.
— Para. Eu só estou sendo gentil — a voz de Luca.
— Gentil demais…
Pausa.
— Só um de nós vai herdar a Cosa Nostra. E a regra é clara. Quem casar com a Sofia leva o trono. Se não fosse isso... — A voz de Luca falhou. — Se não fosse isso, talvez a gente nunca tivesse olhado pra ela.
Era isso, a verdade me acertou como uma bofetada e fez meu peito apertar, mas me recusei a deixar uma lágrima sequer cair. Só fechei os olhos e senti tudo em silêncio.