Sofia Valente
A maquiagem permaneceu intacta, mesmo que eu não estivesse.
Era o que eu mais odiava ao me encarar no espelho, essa perfeição que não combinava com o que eu sentia por dentro. Como se mesmo em frangalhos, eu tivesse que parecer no controle. Como se as rachaduras da alma não tivessem direito de aparecer na superfície.
Respirei fundo, forcei um sorriso e saí do banheiro como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse escutado verdades sendo cuspidas com naturalidade do outro lado da porta. Como se não estivesse sangrando por dentro.
Voltei para o salão como quem retorna ao palco. Porque, no fim, era exatamente isso.
Um circo onde eu era a palhaça.
Me esforcei por anos para me encaixar nessa família. Para merecer o nome. Para merecer um lugar à mesa. E tudo que ganhei foi um papel: o da garota que eles só notam quando precisam usá-la. Eu era a promessa de um império, o prêmio de uma guerra. Nada mais.
Circulei entre os convidados, sorrindo para quem me cumprimentava e parabenizava.
Foi então que algo inesperado aconteceu.
Um homem atravessou o salão.
Alto, elegante, cabelos escuros perfeitamente penteados, como se tivesse saído de um quadro renascentista. Os olhos dele me encontraram com uma precisão desconcertante. Ele não hesitou. Caminhou em linha reta até mim, como se o mundo ao redor não existisse.
Nas mãos, um buquê de rosas vermelhas.
Parou diante de mim, me entregou as flores e sorriu, não como quem quer impressionar, mas como quem tem certeza de que vai.
— Me desculpe pela ousadia — disse, com uma reverência suave. — Mas eu esperei anos por essa chance.
— Desculpa… quem é você? — perguntei, confusa.
— Giovanni. Giovanni Santoro — o sobrenome soou estranho na minha cabeça, mas ninguém ao redor reagiu. — Filho de Enzo Santoro, de Milão.
Assenti lentamente. O nome era familiar. Um dos muitos aliados da Famiglia Mancini. Mas eu nunca o tinha visto.
— E o que exatamente você está fazendo? — Perguntei sentindo uma leve irritação.
Ele sorriu de lado, o olhar fixo no meu rosto.
— Dizendo, na frente de todos, que te amo.
O salão parou. Literalmente. Os olhares se voltaram para nós. O buquê continuava na minha mão, pesado como chumbo.
— Você não me conhece — sussurrei.
— Mas eu observo você há anos. Desde que chegou a essa casa. Sempre de longe. Eu sei como você se sente entre eles. E também sei que ninguém deveria se sentir assim.
— Está bêbado? — A voz de trovão surgiu atrás de mim.
Pietro estava ali. Tão perto que eu senti o calor do corpo dele antes mesmo de virar o rosto. A expressão dele era a de sempre: controle, frieza, domínio. Mas tinha algo por baixo da superfície. Algo que só eu percebia.
Raiva.
Ele chegou ao meu lado em poucos segundos. Olhos cravados em Giovanni, como se avaliasse qual ponto atingir primeiro.
— O que você acha que está fazendo? — ele perguntou, com a voz baixa e afiada como navalha.
Giovanni sequer piscou. Apenas sorriu, como se o clima inteiro do salão não o afetasse nem um pouco.
— Tentando ser honesto. Algo raro entre vocês, pelo visto.
— Honesto? — Pietro arqueou uma sobrancelha. — Você atravessa o salão como um pavão, joga rosas na mão de uma mulher que nunca viu de perto e chama isso de honestidade?
— Nunca a vi de perto… mas sempre a observei de longe. — Giovanni disse, olhando diretamente pra mim. — E hoje eu decidi parar de fingir que não sinto nada.
Minhas mãos tremeram. Não pelo que ele dizia, mas pelo que causava.
Giovanni se voltou para Pietro, agora com a voz mais séria.
— Eu gostaria de pedir a mão dela em casamento.
O salão ficou em silêncio absoluto.
Pietro riu. Foi um som curto, seco. De escárnio puro.
E então, ele se moveu.
Sem nem olhar pra mim, Pietro deu um tapa no buquê que eu segurava, fazendo as rosas voarem como cacos vermelhos pelo chão. O gesto foi limpo, mas frio o suficiente para gelar a espinha de qualquer um.
— O casamento de Sofia não é uma decisão sua. Nem será. Esse assunto diz respeito à Famiglia Mancini. A ela, a mim e ao nosso pai.
— Ah, claro. — Giovanni cruzou os braços. — Porque tudo relacionado a ela sempre foi decidido por vocês, não é?
Pietro estreitou os olhos.
— Cuidado com o que está insinuando.
Giovanni sorriu, e havia algo perigosamente divertido em sua expressão.
— Só acho curioso como todos os pretendentes somem antes mesmo de chegar perto. Como todos os olhares são silenciados. E como o irmão mais velho da família parece guardar o tesouro da casa com zelo demais. Como se… não quisesse dividir.
Pietro avançou um passo. Foi mínimo, mas intenso. Meu coração disparou.
— O que exatamente quer insinuar?
— Só estou dizendo que você age como quem tem mais direito que qualquer um. — Giovanni deu de ombros. — Ou quem está com medo de perder o controle...
— Você não sabe com quem está falando. — Pietro rosnou.
— Sei sim — Giovanni respondeu. — Com um homem que parece querer controlar uma mulher que deveria olhar apenas como sua família, sua irmã...
— CHEGA! — minha voz explodiu antes que os dois se engolissem vivos ali mesmo.
As mãos dos dois estavam cerradas. Os olhares, prestes a partir vidro.
Antes que Pietro pudesse explodir, fui eu quem falou:
— Eu sou filha da Casa Mancini — respirei fundo. — E, por isso, não sou propriedade de ninguém. Nem prêmio. Nem arma. Nem território em disputa.
Giovanni foi o primeiro a recuar. Não muito. Apenas o suficiente.
— Não foi minha intenção te ofender, Sofia.
— Mas conseguiu mesmo assim — cortei.
Ele assentiu devagar, então se curvou diante de mim. Um gesto solene. Formal.
Pietro não moveu um músculo, mas eu sentia a tensão dele como uma corrente elétrica ao meu redor. Eu podia ver, de canto de olho, o queimar em seu olhar. Ele não dizia nada. Não impedia. Mas também não aceitava.
Segurei a mão de Giovanni e deixei que ele beijasse o dorso da minha mão.
O gesto não era romântico, era de submissão.
Um recado público.
— Ninguém — minha voz saiu firme, sustentando o olhar de todos — vai questionar a minha honra. E se o fizer… vai lidar comigo.
Soltei a mão, me virei, e caminhei para longe dos dois homens. Dos olhares. Das rosas no chão.
E, principalmente, do olhar escuro de Pietro que me seguia em silêncio.
Meus passos apressados ecoaram pelos corredores da mansão até que encontrei o único lugar onde eu me sentia bem.
O jardim.
Atravessei o portão lateral e me escondi entre as roseiras, no canto mais distante, onde a luz do salão não alcançava. Ali, o silêncio era quase absoluto. Só o som da minha respiração entrecortada e o bater do meu próprio coração me acompanhavam.
E então, aconteceu.
As lágrimas que segurei a noite inteira finalmente cederam.
Elas caíram sem aviso, quentes, salgadas, carregando tudo que eu tinha sufocado atrás de sorrisos falsos, vestidos caros e palavras medidas. O nó na garganta se desfez em soluços, e a dor saiu como se tivesse vida própria.
Eu abracei os joelhos e me encolhi sob a árvore mais próxima, escondendo o rosto nas mãos.
Não era só sobre o que Giovanni disse.
Não era só sobre Pietro ou Luca.
Era sobre mim.
Sobre tudo que eu engoli calada por anos. Sobre o quanto me esforcei para pertencer a um lugar onde, no fundo, eu nunca fui bem-vinda. Sobre o fato de que, mesmo agora, ainda me sentia uma estranha. Uma impostora.
E a pior parte era saber que eu começava a desejar...o que jamais deveria desejar.