Sofia Valente
O jardim estava escuro, silencioso e longe dos olhos de todos.
As lágrimas já tinham secado no meu rosto, mas o gosto amargo delas continuava preso na garganta. Eu sentia tudo e, ao mesmo tempo, nada. Era como estar oca, rachada por dentro. Um silêncio forçado, elegante e ensaiado para caber nos moldes da casa Mancini.
Fechei os olhos por alguns segundos, tentando me recompor. A grama úmida sob os saltos altos, o som distante da música, tudo parecia tão irreal. Como se eu tivesse atravessado um espelho e parado num teatro macabro onde meu papel era só… aceitar.
Foi então que ouvi passos.
— Sofia… — a voz era suave, mas tensa. — Me desculpa. De novo.
Giovanni.
Virei devagar, ainda sem saber exatamente o que sentir. Ele me observava com um olhar diferente dos outros homens daquele salão. Não havia julgamento. Só algo estranho e denso.
— Eu realmente não queria causar problemas. Eu só... — ele hesitou — eu precisava que você soubesse que alguém te vê. Mesmo que de longe.
— Você devia ter continuado vendo de longe — minha voz saiu mais dura do que eu queria. — Isso não é um jogo.
— E pra você é o quê? — ele rebateu, mais calmo do que eu esperava. — Um baile de máscaras? Uma peça onde você é obrigada a sorrir enquanto todos decidem o seu destino?
Fiquei em silêncio.
Ele deu um passo à frente, ainda medindo a distância entre nós.
— Você realmente não percebe? — perguntou. — Que seu pai adotivo e seus irmãos quase nunca te deixam aparecer em público. Como se você fosse... algo a ser escondido. Ou reservado. Um troféu à espera do vencedor.
As palavras dele me atingiram com mais força do que qualquer tapa.
Porque eu sabia.
No fundo, eu sempre soube.
Só não tinha coragem de nomear.
— Você não sente que tem algo errado? — ele insistiu. — Que está sempre sendo observada, moldada, protegida demais? Como se mostrar o rosto fosse perigoso?
Engoli em seco.
— Eu achava que era normal. Que… fazia parte das regras da casa — admiti, com a voz falhando. — Mas agora eu entendo.
— Entende o quê?
— Que eu sou o prêmio — soltei, amarga. — Que meu corpo, meu nome, meu sangue… são parte de uma guerra entre homens que nunca me viram como pessoa. Só como peça.
Ele se aproximou mais, e o olhar dele parecia arder.
— Me deixa mudar isso. Me dá uma chance. Só uma.
— Giovanni…
— Me deixa cuidar de você do jeito certo. Longe disso aqui. Eu sei que não tenho o direito de pedir, mas se você disser sim, eu faço tudo diferente.
— Eu não posso — sussurrei.
Ele tentou tocar meu pulso, com cuidado. Foi quando ouvimos outra voz.
— Estou atrapalhando alguma coisa?
Luca.
Aquele tom leve e debochado, mas com algo por trás. Ele se aproximou devagar, mas não havia nenhum humor real nos olhos. Era como se ele estivesse em combustão interna, tentando parecer casual.
Sem pedir, passou o braço pela minha cintura. Um toque rápido, possessivo e performático.
— Estavam falando sobre nós? Ou Giovanni estava tentando levá-la para dançar de novo?
A voz de Luca cortou o silêncio com aquele tom leve e provocador que ele adorava usar quando queria disfarçar o incômodo. Ele se aproximou como se estivesse no próprio território, e sem hesitar, passou o braço pela minha cintura.
— Luca... — murmurei, afastando seu toque com um gesto rápido, instintivo.
O impacto foi imediato. Giovanni, à frente, sorriu.
— Parece que a dama fez sua escolha.
Luca congelou. O sorriso desapareceu dos lábios dele. Seus olhos estavam nos meus, e por um instante, ele parecia ferido, mas é claro que tudo é um teatro e ele está de olho no grande prêmio.
O silêncio entre nós durou apenas um segundo, mas foi o suficiente para revirar tudo dentro de mim. Eu toquei de volta seu braço, de forma suave, quase como se quisesse apagar o que tinha acabado de acontecer.
— Não foi por você — disse, com a voz baixa. — Eu só... estou cansada. Só isso.
Ele ficou me olhando, sem dizer nada. E então, disfarçou com aquele meio sorriso que usava quando queria fingir que estava tudo bem.
— Entendo. Achei que talvez você não tivesse me reconhecido, morávamos juntos há tanto tempo.
Soltei uma risada breve, mas amarga.
— Mas nunca fomos família, Luca. Vocês nunca fizeram esse papel. Nenhum dos dois — minha voz saiu sem filtro. — Vocês só lembram que eu existo quando precisam de alguma coisa.
Luca deu um passo para trás, o sorriso desfez. Seu olhar endureceu.
— Isso é injusto.
— É a verdade — respondi. — E, com todo respeito, Luca… se eu quiser aceitar um convite de Giovanni, se eu quiser conversar com o papai sobre o que eu desejo ou com quem eu quero ficar... isso é um problema meu. Só meu.
— Você está se precipitando — ele disse, apertando os lábios. — Você não sabe quem ele é.
— Talvez — dei de ombros. — Mas ao menos ele está aqui, falando comigo, não me vigiando de longe como se eu fosse algo frágil ou perigoso.
— Eu não estou vigiando.
— Não? Porque é exatamente assim que parece.
Giovanni, mais ao lado, apenas observava, e pela primeira vez seu sorriso se desfez em algo mais sóbrio.
— Eu não quero causar confusão — ele disse, olhando para Luca. — Mas se ela quiser conversar comigo, você não tem o direito de impedi-la. Ou tem?
— E você não tem o direito de aparecer aqui como se fosse parte disso — Luca respondeu, afiado. — Acha que pode se aproximar, falar bonito, e ela vai simplesmente... cair nessa?
— Não foi isso que aconteceu? — Giovanni rebateu, e dessa vez havia algo mais perigoso no ar.
A tensão entre eles crescia como pólvora seca. Os dois estavam frente a frente, tão próximos que bastaria um empurrão para tudo explodir.
— Tem muita testosterona no ar — interrompi, cruzando os braços. — Se eu quiser ouvir qualquer um de vocês, vai ser porque eu escolhi. Não porque alguém decidiu por mim.
O silêncio que seguiu foi pesado. Luca me olhou uma última vez, com algo indefinido nos olhos.
Talvez mágoa.
Talvez arrependimento.
Mas ele não disse nada.
E isso, de alguma forma, doeu mais.
Giovanni apenas assistia, com os braços cruzados e um sorrisinho de canto.
Luca deu um passo à frente, os olhos escuros agora faiscando.
— Você não vai ficar com ele.
— Não me diga o que posso ou não fazer — rebati, cruzando os braços. — Eu tenho o direito de escolher quem eu quero. Pela primeira vez, talvez... eu queira poder escolher.
Giovanni deu um passo ao lado, satisfeito, e provocou:
— E eu estou aqui para ser escolhido, se for o caso.
Luca virou o rosto lentamente em direção a ele. A expressão agora não tinha nada de leve.
— Você não faz ideia do que está mexendo.
— Sei exatamente. — Giovanni respondeu, sem recuar. — E é por isso que você está tão incomodado.
Os dois se encararam. De perto. Ombro a ombro.
— Você acha que pode chegar aqui e levá-la embora? — Luca rosnou. — Você não sabe nada sobre essa casa. Sobre ela.
— Eu sei que ela não é um objeto — Giovanni respondeu. — E que está cansada de ser tratada como se fosse.
— Vá embora. — Luca disse, com os dentes cerrados.
— Só quando ela mandar.
Os olhos dos dois voltaram para mim. E, por um segundo, eu quase esqueci como respirar.
— Vocês vão continuar disputando como se eu não estivesse aqui? — perguntei, fria. — Porque se for assim, eu posso ir embora e deixar vocês brincando sozinhos.
O silêncio caiu como uma lâmina.
Luca me olhou de novo. Mas agora, com um orgulho ferido tentando se recompor.
Mas eu não disse mais nada.
Simplesmente me virei.
— Você parece preferir o nosso querido primogênito — disse, forçando um sorriso que doía de ver. — Ou estou errado?
Parei por um momento, mas não respondi.
Giovanni observava, quieto. O flerte dele agora se recolhia diante da tensão que crescia.
Eu era como uma peça no tabuleiro deles. Como uma garota tentando entender onde termina a proteção e começa a posse.
E pela primeira vez naquela noite, percebi algo ainda pior:
Talvez eu tivesse começado a gostar de ser o centro dessa disputa.
E isso me apavorava.