Sofia Valente
Voltei ao salão com os ombros erguidos e o estômago revirado. Depois da confusão no jardim, do confronto velado entre Pietro, Luca e Giovanne e da vergonha que estava sentindo, tudo que eu queria era ir embora. Mas não podia. Ainda era a minha festa. Ainda era o meu papel a ser cumprido, a filha adotiva em exposição, sorrindo para rostos que não se importavam, vestindo o figurino que esperavam ver.
A música já havia mudado, agora mais suave, discreta, como se o próprio salão quisesse encerrar a noite. O som de taças se encontrando, risos forçados e despedidas educadas preenchia os últimos resquícios da comemoração. Os convidados se esvaíam aos poucos, desfilando em direção à saída com suas máscaras sociais ainda coladas ao rosto.
O vestido começava a pesar. Os saltos me machucavam. E a maquiagem, impecável até então, dava sinais de cansaço, como eu. Tudo parecia distante, insípido. Já não sabia se era o tédio ou a decepção que incomodavam mais.
Foi nesse ritmo arrastado que alguém esbarrou em mim.
Não foi um acidente comum. O toque foi rápido, preciso, calculado. Os dedos tocaram os meus e, num gesto discreto, um papel foi deslizado até minha palma. Por reflexo, fechei a mão. Quando levantei os olhos para identificar quem havia feito aquilo, tudo o que vi foi o movimento disperso dos convidados se despedindo no corredor. A pessoa já havia desaparecido, dissolvida entre os cumprimentos finais e as saídas apressadas.
Permaneci imóvel, como se nada tivesse acontecido. Guardei o bilhete com um movimento sutil, escondendo-o sob meu decote. Não era a primeira vez que eu precisava disfarçar emoções.
Esperei o salão esvaziar. Esperei o último dos risos falsos sumir no eco da porta de entrada. Esperei a noite, enfim, terminar, ou pelo menos parecer que havia acabado.
Só então subi para o quarto.
Sentada na borda da cama, tirei os brincos, soltei o cabelo e desfiz lentamente a dobra do bilhete. A caligrafia era firme, inclinada e elegante. E o conteúdo, breve como uma facada.
“Você sabe por que sua mãe morreu?”
Li uma vez.
Depois outra.
E de novo.
Todos sabiam como minha mãe havia morrido, não era nenhum segredo. Ela morreu protegendo Giorgio Mancini e, por isso, ele se sentiu em divida com ela e me adotou. Os mafiosos detestam sentir que devem alguém.
Mas aquela simples pergunta plantou a dúvida em mim. O papel tremia entre meus dedos. O quarto parecia menor. O ar, mais pesado.
Sempre tive curiosidade de saber como tudo aconteceu de fato, Giorgio apenas me contou, como quem conta uma linda história ensaiada...
Aquele pequeno bilhete, parecia o começo de alguma coisa.
E, talvez, o fim de outra.
...
N manhã seguinte, desci as escadas com passos lentos e silenciosos. Não sabia ao certo o que me movia, se era a ansiedade pelo bilhete, o enjoo da noite passada, ou só a vontade de sair do quarto e tentar respirar fora da minha própria cabeça.
Passei pela sala de jantar sem tocar em nada. A mesa já estava posta, com frutas arrumadas como peças de porcelana, pães ainda quentes sob uma toalha engomada, café fumegando em louça fina, mas eu não sentia fome.
Entrei na sala de estar apenas por inércia, e encontrei a última pessoa com quem gostaria de falar, Pietro.
Sentado de forma despreocupada, embora cada centímetro de seu corpo gritasse tensão. Os cabelos escuros ainda um pouco desalinhados, o colarinho da camisa aberto e as mangas dobradas até o antebraço. Tinha um cigarro entre os dedos e o olhar perdido em algum ponto do carpete, como se as respostas do mundo estivessem escondidas ali.
Pensei em dar meia-volta.
Mas então, sem sequer levantar os olhos, ele falou:
— Parece cansada, não conseguiu dormir?
— Consegui o suficiente — respondi, mantendo o tom baixo.
Ele puxou uma tragada lenta, soltou a fumaça e finalmente me olhou.
— Está cansada da noite anterior?
— Estou. — Cruzei os braços. — Mas nem todo cansaço se cura com sono.
Ele apoiou o cotovelo no braço do sofá e arqueou uma sobrancelha.
— Sempre com uma resposta pronta.
— Sempre com um julgamento na ponta da língua. Estamos empatados.
Um sorriso torto, quase imperceptível, surgiu nos lábios dele. Mas desapareceu tão rápido quanto veio.
— Pelo que Luca me contou, você encontrou com aquele i****a novamente... quer se apaixonar, Sofia?
A pergunta veio seca, fria, como tudo nele.
Demorei um segundo para entender se ele realmente tinha dito aquilo.
— Você está falando sério?
— Só estou perguntando. O que você quer fazer com a vida...
— Desde quando você se importa?
Ele se levantou. Largou o cigarro no cinzeiro com violência contida. Andou até mim com a calma de quem carrega um campo minado no peito.
— Desde nunca — respondeu. — Mas hoje, por algum motivo, estou ouvindo você mais do que gostaria.
— Talvez seja culpa da nicotina e do álcool.
— Talvez seja sua presença. Tão constante, tão irritante... — Seus olhos cravaram nos meus. — Tão impossível de ignorar.
Antes que eu pudesse reagir, ele agarrou meu pulso e me puxou de forma brusca. Meu corpo bateu contra o dele com força. E, num segundo, eu estava sentada no sofá, e ele sobre mim, o corpo tão próximo que quase não havia espaço para o ar.
O silêncio que se formou era mais alto do que qualquer grito.
— O que está fazendo? — sussurrei, mas minha voz saiu fraca, desarmada.
— Tentando entender o que diabos você se tornou.
— Solta. Agora.
Ele não soltou. Pelo contrário. A mão dele apertou minha cintura, enquanto a outra apoiava no encosto atrás de mim. Seus olhos não estavam frios como de costume. Estavam intensos, carregados de uma raiva que parecia vazar por baixo da pele. Mas havia algo mais ali.
Algo... que queimava.
— Você tem ideia do quanto me irrita? — perguntou baixo. — Do quanto é incômoda?
— Não. Mas pelo visto, incomodo o suficiente pra te tirar do eixo.
Os olhos dele desceram para a minha boca, e por um segundo, um segundo longo e perigoso, ele se inclinou. Não o suficiente para me beijar, mas o suficiente para que seu nariz roçasse minha pele, ali, no espaço entre meu pescoço e a clavícula. E ele inspirou.
Lento.
Deliberado.
Eu congelei.
— Pietro… — comecei, a voz mais frágil do que eu gostaria.
Mas ele não recuou.
Pelo contrário.
Se aproximou ainda mais, e num impulso bruto, seu corpo colou ao meu, me afundando no sofá com a intensidade de quem já não lutava contra si mesmo. Seu quadril pressionou o meu, lento, firme. Uma fricção carregada de raiva, calor e desejo. A respiração dele bateu contra meu pescoço, e os dedos apertaram minha cintura com mais força, como se quisessem marcar minha pele.
— Você está me enlouquecendo — rosnou entre os dentes. — Eu odeio como você tem bagunçado a p***a da minha cabeça.
O ar saiu dos meus pulmões como um golpe.
— Odeio como você entra em um maldito cômodo e parece tomar tudo. Como se fosse dona de um espaço que nunca deveria ser seu.
Ele deslizou o rosto pela curva do meu pescoço, o nariz roçando minha pele, a boca quase encostando. Meu corpo inteiro respondeu com um arrepio violento, e por um instante, o mundo desapareceu. Só existia ele. O peso. O calor. A contradição.
— Pietro, você precisa parar… — sussurrei, mas era mais como um gemido.
O barulho do andar de cima preencheu o silêncio, alguém estava descendo as escadas. E então, como se tivesse voltado a si por um segundo, se afastou bruscamente.
Ele se afastou com velocidade. Eu ajeitei a postura no sofá, tentando parecer intacta. Mas meu corpo ainda tremia.
E foi quando Luca entrou com sua xícara e aquele maldito timing perfeito.
— Bom dia, família.
Luca surgiu como se tivesse ensaiado a entrada. Os cabelos bagunçados, uma xícara de café na mão, e aquele sorriso insolente que nunca chegava aos olhos.
— Interrompi?
— Nada demais — murmurei. — Esbarrei em Pietro quando estava indo à cozinha.
— Que sorte a sua — respondeu Luca, arqueando uma sobrancelha com diversão. — Por um instante, achei que estavam voltando a ser amigos, como antigamente.
— Luca... — comecei, num tom de advertência.
Mas ele apenas se aproximou com naturalidade e passou o braço pelos meus ombros, como se fosse íntimo.
— Calma, Sofia. Eu não disse que isso seria r**m. Só... improvável. — Olhou para o irmão com um leve sorriso, depois voltou a me encarar. — Mas fique tranquila. Não vou mais fazer esse tipo de piada. Afinal, o que temos agora é bem melhor do que antes, não é?
Seu olhar demorou em mim.
Pietro permaneceu em silêncio.
E eu, por dentro, já não sabia até onde iria toda aquela provocação.