Quebrada 77

1552 Words
Eu devia saber que aquilo ia custar. A gente entrou no barraco da 77, limpou geral, levou o Caíque vivo… e achou que ia sair impune? Besteira minha. O mundo que a gente vive não perdoa ousadia. Principalmente quando se pisa no calo do inimigo. Era fim de tarde, e o céu tava daquele jeito esquisito, meio laranja, meio cinza. Eu tava na laje, o pensamento longe. Caíque já tinha começado o trampo na base. Acordou cedo, lavou chão, contou estoque, rodou com os meninos. Tava se esforçando. Júlia tava mais tranquila, até esboçou um sorriso no café. Mas eu? Eu ainda sentia o cheiro de m***a no ar. Algo não tava certo. E não demorou pra confirmação chegar. O rádio apitou duas vezes. Sinal de urgência. Desci na bota, peguei o comunicador. — Fala. — Dante… aqui é o César. Acabaram de deixar um pacote na frente da base do Alto. Envelope preto. Sem nome. Mas é pra você. Meu estômago revirou. Envelope preto era assinatura da 77. Aquilo não era carta. Era ameaça. — Toca direto pra minha sala. Ninguém mais encosta. César trouxe. Eu tava sozinho quando abri. Mãos firmes, mas coração acelerado. Dentro, uma foto. Um dos caras que a gente rendeu na noite do resgate. Só que agora ele tava sem a mão direita. Cortada. Sangue seco nas bordas da imagem. No verso, uma frase escrita à mão: "O primeiro. Os próximos vão vir em pares." Eu respirei fundo. Quebrei o rádio contra a parede. Eles tavam mandando recado. Direto. Sem rodeio. Eu desrespeitei a fronteira, invadi, tirei um deles da jogada. Agora queriam resposta. E iam vir buscar do jeito mais c***l. Chamei Rick. César. Neguinho. Tranquei a porta e mostrei a foto. — Sabia que ia dar m***a — Rick resmungou. — E vai dar mais — completei, jogando a imagem na mesa. — Isso aqui é só o começo. — O que cê tá pensando? — César perguntou, tenso. — Tô pensando que a gente precisa dar um passo pra trás. Só por agora. Reforçar vigilância, tirar os moleques das ruas. Ninguém anda sozinho. E a gente precisa descobrir qual dos nossos vazou essa missão pra eles. Silêncio. Todo mundo sabia o que significava caçar um dedo-duro. — E a 77? — Neguinho perguntou, já com os olhos acesos. — Eles querem guerra? — falei, levantando — Vão ter. Mas do meu jeito. No meu tempo. Não vou sair feito louco, dando tiro pro alto. A gente vai primeiro ouvir, ver, sentir. Eles mostraram a mão… agora é minha vez de mover. No dia seguinte, amanheceu com cheiro de sangue. Um dos pontos de distribuição na Vila Nova foi incendiado. Três dos nossos precisaram ser levados pro hospital com queimaduras. Um deles, o Tonhão, tava entre a vida e a morte. A 77 não tava blefando. — Eles tão atacando os mais fracos — Rick disse, puto da vida. — Sabem que não vão encarar a gente de frente. — Por enquanto — eu respondi, olhando o mapa das áreas. — Mas não vão parar aí. No fim da tarde, um carro estranho passou duas vezes na frente da nossa base. Mesmo carro. Vidros escuros. Sem placa. Júlia viu da janela e me chamou. Quando fui lá fora, ele já tinha virado a esquina. Estavam cercando. Rondando. Provocando. Naquela noite, dormi com a arma na mão. De verdade. Sem metáfora. Cada barulho do portão me fazia levantar. Cada freada brusca me fazia colar na parede. E em algum momento da madrugada, encostado na geladeira vazia, eu entendi: A gente abriu uma ferida que ia sangrar por muito tempo. E eu, Dante, líder da base, mentor dos moleques, irmão mais velho dos perdidos, ia ter que escolher entre manter a cabeça no lugar ou deixar a raiva falar mais alto. Mas seja qual for a escolha, uma coisa tava clara: A 77 não perdoa. E agora… eu também não. Na manhã seguinte, antes mesmo do sol se firmar no céu, eu já tava de pé. O rádio ainda tava quebrado no chão da sala, mas a minha cabeça, não. Nunca esteve tão afiada. Se a 77 queria me testar, ia descobrir que eu não sou um desses moleques que corre quando a água bate na canela. Fui pro depósito dos fundos, onde só eu e o César temos a chave. No fundo da prateleira de mantimentos, atrás de sacos de arroz e caixas de macarrão vencido, tava a maleta preta. Peguei ela com cuidado, como se fosse uma lembrança de infância, e levei até a mesa. O clique das travas abrindo parecia um aviso pros deuses do submundo: “Dante tá indo pro jogo.” Dentro, o que restava da era em que eu era só mais um lobo entre matilhas — celulares descartáveis, documentos falsos, um gravador velho com escuta de microfone direcional e uma ficha inteira com dados da 77 que eu guardei ao longo dos anos. Nomes. Fotos. Endereços. Fraquezas. Aquele dossiê era meu trunfo. E já tava mais do que na hora de usar. Chamei Rick e César pro quartinho dos fundos. — Olha isso aqui — falei, jogando as fichas sobre a mesa — A gente vai cortar a cabeça da 77. — E como, Dante? Eles tão em toda parte. — Errado. Eles parecem estar em toda parte. Mas são três as colunas que sustentam o império deles: o contador, o faz-tudo e o distribuidor. A gente derruba os três. Não precisa mais nada. Aponto pra cada ficha enquanto falo: Fábio “Calcinha” — contador. Tá com os caras há cinco anos, mas tem filho pequeno, uma ex que ainda ama e mora no Capão Raso. Toda segunda vai até lá, disfarçado de Uber. Marcão — distribuidor, conhecido por andar com dois seguranças. Só que o segredo? Ele tem asma severa e toda quarta vai pegar a bombinha com a tia na farmácia da Dona Arminda. Sozinho. Alex Nobre — o faz-tudo. O preferido do chefão. Mas também é um viciado em roleta online e tá devendo pra meia Curitiba. Anda implorando grana e vendendo info pra qualquer um que escute. Um rato. — A gente acerta os três na mesma noite. Rápido. Cirúrgico. Sem rastro. Rick arregalou os olhos. — Isso é loucura, Dante. — É sobrevivência. Eles já tão queimando nossos pontos, aleijando nosso povo. Eu não vou assistir isso de camarote. Começou às 18h. Eu fui atrás do Fábio. Coloquei o boné, máscara, e peguei o motoqueiro que faz entrega pra gente. Fiquei parado perto da casa da ex dele. Quando o Fábio desceu do carro, com o filho no colo, eu vi nos olhos dele que ele não tinha ideia do que tava prestes a acontecer. Esperei ele deixar o menino com a mulher. Segui ele até o carro. Encostei a arma pela janela. Ele congelou. — Entra no banco de trás. Agora. — Dante… pelo amor de Deus… — Vai. Sem fazer cena. No banco de trás, expliquei tudo. Mostrei a foto da mão cortada. Mostrei os rostos queimados dos nossos no hospital. Falei de sangue, de lealdade, de escolhas. — Você tem duas opções, Fábio. Ou me dá a planilha das rotas de dinheiro, os horários dos malotes e onde o chefão vai dormir na sexta… ou eu deixo tua cabeça como brinde na porta da tua ex. — Tá na nuvem… eu passo a senha. Mas me deixa viver, cara. Eu não sou eles. Eu só conto os números! — E números matam gente, irmão. Ele passou. Eu deixei ele vivo. Por enquanto. Mandei ele sumir da cidade. Ele sabe que se voltar, vai sumir de vez. César cuidou do Marcão. Foi até a farmácia disfarçado, com ares de segurança. Marcão m*l saiu com a bombinha no bolso, César já tava atrás dele, com uma sacola de papel fingindo ser delivery. — Você tá com falta de ar? Então senta e escuta. Levou ele pro carro e gravou tudo. Rota, depósito central, nomes dos entregadores, local do próximo carregamento. — Se tu abrir a boca, Marcão… não é tua asma que vai te m***r. Marcão chorou. César gravou. E deixou ele lá, tremendo. Rick cuidou do rato. O Alex. Encontraram ele numa lan house, gritando com o dono porque o wi-fi caiu. Rick chegou por trás, botou a faca no pescoço e puxou ele pra fora. Levaram pro barracão abandonado. Lá dentro, Rick foi metódico. Quebrou o ego do cara. Fez ele confessar que já tinha passado info da 77 pra polícia. Gravou. E postou no grupo certo. Em menos de três horas, Alex tava morto. Pela própria gangue. E a gente nem precisou sujar a mão. Na manhã seguinte, o rádio da quebrada silenciou. Por completo. Nem ameaça, nem movimentação. Só silêncio. O tipo de silêncio que só vem quando os monstros param pra pensar. Eu tava sentado na laje de novo, olhando o mesmo céu cinza e laranja, quando Júlia chegou com um café e uma pergunta nos olhos. — Foi você, né? Eu não disse nada. Só peguei o copo, dei um gole e sorri. — Eles vão voltar? — ela perguntou. — Sempre voltam — respondi — Mas agora eles sabem. Aqui não é terra de ninguém. Aqui tem dono. E o nome do dono… é Dante.
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