Palestrante

1548 Words
Três dias depois da nossa ação, o clima da quebrada mudou como muda o tempo antes da chuva forte. O silêncio virou norma. As bocas da 77 tavam fechadas ou rodando em marcha lenta, e os olheiros sumiram das esquinas. Não era medo. Era respeito. Ou pelo menos o início dele. Na tarde de quinta, enquanto eu ajeitava umas caixas de mantimento pra distribuir na creche da dona Lúcia, o Rick apareceu com o celular na mão e aquela cara de quem viu assombração. — Dante… os caras querem reunião. — Quem? — 77. — O chefão? — Não. Mandaram o Clay. Braço direito. Querem falar em paz. Soltei um suspiro pesado. A paz é sempre uma faca de dois gumes: alivia, mas corta se tu relaxa. — Marca. Mas vai ser aqui, na escola abandonada do Ipiranga. E diz pra virem limpos. Sem homem armado. Se pisarem torto, vão sair sem joelho. Na sexta, o céu tava coberto, nuvem grossa, pesado de chuva e tensão. Clay chegou com dois dos seus, desarmados como combinado, mas com o peito estufado daquele jeito típico de quem ainda acha que pode mandar alguma coisa. Eu tava sentado na cadeira de plástico no meio da quadra da escola. César e Rick nos cantos, só observando. Clay sentou na minha frente. Ficou me encarando por um tempo, depois soltou: — O que cês fizeram foi ousado. Inteligente. Mas perigoso. — Perigoso era o que vocês tavam fazendo com nosso povo, Clay. Se a gente não tivesse reagido, a quebrada já tava toda em chamas. — A gente não queria guerra. — Vocês mandaram cortar a mão do Biel. É assim que vocês pedem paz? — A ordem não foi minha. — Então teu comando tá frouxo. Porque se fosse meu, quem desobedecesse já tava debaixo do chão. Ele abaixou os olhos, mas tentou manter o orgulho. — Queremos um acordo. Trégua. Dividir o território. Voltar a movimentar, sem sangue. — Vocês vão continuar no Jardim Vitória e no Setor D. O Santa Luzia é meu. Inteiro. E se alguém tentar pisar lá, eu corto a perna. — A gente não vai discutir área, Dante, mas… — Não tem “mas”. Eu tô colocando ordem nisso aqui. A guerra que vocês começaram me deu a desculpa perfeita pra limpar a quebrada. Agora vai ser tudo certo. Não vai mais ter moleque viciado vendendo na escola, não vai mais ter coroa pegando ** escondido no posto de saúde. Se quiserem seguir, vão andar na linha. — Isso é impossível, mano… — Então desiste. E volta pra casa. Silêncio. Clay se mexeu na cadeira, incomodado. Ele sabia que não tinha opção. A moral mudou de lado. — Tá. Trégua. — Trégua — repeti, me levantando — Mas lembra: quem dita as regras agora sou eu. E eu sou o tipo de homem que não dá segunda chance. Na quebrada, o fluxo voltou com mais calma, mais controle. Os meninos que vendem tão orientados: nada de vender pra menor, nada de fiado, nada de confusão perto de igreja, escola ou posto. Quem vacilar, dança. Eu mesmo queimo. E apesar de comandar, eu tenho um código que nunca quebrei: não uso d***a. Nenhuma. Nem cigarro. Nem trago de maconha, nem gole de pinga na laje. Meus parceiros já tentaram me zoar por isso. — Pô, Dante, o patrão que vende e não usa? — É porque eu sei o que isso faz. Eu vi meu tio morrer no c***k. Eu vi muita gente se afundar no álcool. Eu não vou ser mais um. Mais que isso: eu dou palestra. Sim, parece loucura. Mas toda última sexta do mês, eu sento no auditório da escola comunitária e falo com a molecada. Falo de d***a, de ilusão, de como o tráfico é uma máquina que suga até os ossos de quem não presta atenção. — Se vocês tão aqui achando que o crime é bonito, é porque só viram o brilho da arma, não viram o peso dela no caixão de um parceiro. — Eu tô aqui não pra dizer que vocês têm que virar santo, mas pra avisar: se forem entrar, saibam sair. E se puderem, nem entrem. A molecada escuta. Uns acham que é só papo. Mas outros, os atentos, guardam aquilo. No fim da noite, já em casa, olhando o relógio na parede e escutando o barulho dos carros passando lá longe, pensei: a paz é como vidro, bonita, mas frágil. E se alguém tentar quebrar… vai ter que enfrentar Dante. E dessa vez, sem reunião. Sábado de manhã, o sol ainda nem tinha dado as caras direito, mas a vila já tava acordando com barulho de panela batendo e rádio chiando no volume três. Na laje da casa da tia Glória, uma tenda improvisada com lona azul cobria as cadeiras de plástico enfileiradas, o projetor no canto e a caixa de som que o Rick arrumou com o pastor da igreja. Era dia de palestra. Eu apareci de calça jeans surrada, camisa preta e um boné virado pra trás. Nada de corrente de ouro ou arma na cintura. Só eu. Dante. — Bom dia, família! — Bom dia! — respondeu a criançada, algumas com os olhos ainda inchados de sono, mas sorrindo, empolgadas. Na frente, dona Jurema, a diretora da creche, ajeitava as cadeiras enquanto sua neta corria descalça com um suco de caixinha na mão. — Olha quem veio cedo hoje! — ela disse, me dando um abraço — Tava precisando dessas palavras, Dante. O menino da Marilda foi preso ontem. Queria que ele tivesse te ouvido antes. Respirei fundo. A dor de ver mais um caindo é como murro no peito. Quando a galera se ajeitou, eu fiquei de pé na frente de todo mundo. Olhei nos olhos deles, um por um. — Eu sei que vocês me conhecem. Sabem quem eu sou. Sabem o que eu faço. E mesmo assim eu tô aqui, sem máscara, sem disfarce. Porque eu acredito que a gente ainda pode mudar alguma coisa. A galera ficou em silêncio. Só o barulho de um ventilador velho rodando no canto quebrava o clima. — Meu nome é Dante. Nasci e cresci aqui. Fui criado com farinha e água, às vezes sem água. Meu pai foi embora quando saiu da cadeia, caiu por tráfico. Minha mãe lavava roupa pros outros. E eu? Eu virei o que a quebrada fez de mim. — Só que antes de eu virar “patrão do morro”, eu era só mais um menino curioso. Que queria tênis novo. Que sonhava em jogar bola. Que achava bonito o cara que passava de moto com a mochila cheia de dinheiro. — Só que ninguém me contou que aquele cara morreu com três tiros no peito. Que o dinheiro foi enterrado com ele. Ninguém me disse que por trás do ouro tinha corrente. Que o crime cobra. E cobra caro. As crianças escutavam, vidradas. Algumas mães enxugavam os olhos sem disfarçar. — Eu tô dizendo isso porque talvez ninguém mais diga pra vocês. Porque quando o moleque da esquina te oferecer um bagulho, ele vai falar que é “de boa”, “tranquilo”, que “todo mundo faz”. — Só que ele não vai te contar que teu cérebro vai viciar. Que tu vai esquecer quem tu é. Que tua mãe vai chorar na noite que você sair de casa e não voltar. — E eu, mesmo fazendo o que eu faço, odeio essa parte. Odeio ver os moleques se acabando na d***a. Odeio enterrar soldado meu porque quis experimentar uma parada errada. — Eu nunca usei. Nunca fumei. Nem cigarro. E se eu consegui dizer “não”, vocês também conseguem. Depois da palestra, sempre tem a parte que eu mais gosto: ficar ali com eles, no chão da laje, escutando. — Dante, você acha que dá pra sair dessa vida? — perguntou o Tico, um garoto de 13 anos, com os olhos fundos de quem já viu coisa demais. — Dá, Tico. Mas cê tem que querer mais do que o resto. Tem que lutar, mesmo quando tudo diz que não vai dar certo. E tem que estudar, mano. — Estudar? — É. O diploma é mais perigoso pro sistema do que qualquer fuzil. Eu puxei do bolso o panfleto da ONG que a gente tava ajudando a abrir ali mesmo na quebrada. Cursos de reforço escolar, aula de violão, capoeira, inglês básico. — Tá aqui. Vai lá. Mostra que você quer. Eu pago o lanche e o transporte. Mas só se você for firme. Ele pegou o papel com uma mistura de vergonha e esperança. Sorriu meio torto. — Valeu, Dante. De tarde, já no meu canto, vendo o céu avermelhar por trás dos fios de energia, pensei em tudo isso. Sim, eu sou bandido. Não fujo disso. Eu comando. Eu vendo. Eu mato, se for preciso. Mas eu também cuido. Porque se ninguém fizer isso pela nossa gente, quem vai fazer? O Estado? A polícia que só vem aqui pra m***r e sumir? Dá pra ser c***l e justo. Dá pra ter mão de ferro e coração pulsando. O nome disso é sobrevivência. E eu sou o Dante. Eu sobrevivo por todos nós.
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