Cachorro Roxo

849 Words
Depois de ajeitar tudo com os meninos, eu saía pra rua. Não pra intimidar, mas pra ver de perto como a quebrada tava. Era meu território, sim. Mas também era minha casa. Cada viela tinha uma história. Cada barraco, uma família que eu conhecia. Na entrada do beco da Dona Celina, parei. Ela tava sentada na cadeira de plástico, com o ventiladorzinho ligado na tomada improvisada que puxava energia do poste. O ventilador não ventilava nada, mas era o jeitinho dela de fingir que tava fresco. — Ô, meu filho… — ela disse, ajeitando os óculos de grau torto. — Cê comeu hoje? — Ainda não, dona Ce. Tô só no café. — Pois vem aqui que sobrou feijão de ontem. Com arroz fresquinho. Não era convite. Era ordem. E eu respeitava. Sentei ali mesmo, no banquinho da cozinha. A casa era simples, cheirava a tempero forte e passado. Enquanto ela esquentava o prato, fiquei olhando os porta-retratos tortos na parede. Um deles tinha o filho dela, morto numa troca de tiro, uns anos atrás. Não era comigo, não foi por mim. Mas mesmo assim... ela nunca me culpou. — Ele era cabeça-dura — ela dizia sempre. — Mas tu... tu ainda vai sair disso, Dante. Ainda vai viver uma vida boa. Eu só sorria de canto. Não respondia. Que vida boa existe pra alguém como eu? Saí de lá de barriga cheia e com um pote de doce de leite que ela mesma fazia. Dei um beijo na testa dela e segui o caminho. No campo de terra batida, os moleques jogavam bola. Chuteiras furadas, camisa do Flamengo sem nome, gritaria solta. Um deles, o Biel, veio correndo: — Dante, Dante! A gente tá precisando de rede pro gol, mano! Aquela velha arrebentou de novo! Ri com vontade. Biel tinha uns 10 anos e já era mais desenrolado que muito adulto. — Fala com o Rick. Diz que eu mandei arrumar duas redes novas. E manda ele trazer uns coletes também, pra vocês jogarem direito. — Sério mesmo? Valeu, mano! — e saiu gritando, como se tivesse ganhado na loteria. Na moral? Aquilo ali me fazia bem. Ver que, mesmo cercado de m***a, eu ainda podia mudar o dia de alguém. Mesmo que fosse só com uma rede de gol. Mais pra frente, parei na farmácia comunitária. A velha da perna inchada, o moleque com asma, a moça grávida que não tinha dinheiro pro pré-natal... tudo caía no meu colo. E eu fazia questão de cuidar. — Bota tudo na conta do Dante, ouviu? — falei pro rapaz do balcão. — E me avisa se faltar algum remédio de novo. — Pode deixar, chefe. Já tô fazendo a lista. — E vê se não chama de chefe. Aqui dentro, sou só Dante. Todo mundo me chamava assim, de chefe, patrão, dono do morro. Mas eu gostava mesmo era quando me chamavam pelo nome. Porque o nome era o que restava do pouco que ainda era meu. Ali pelas cinco da tarde, o céu começava a se pintar de laranja e rosa. Hora que a quebrada mudava de tom. As motos começavam a passar com mais frequência. Os olheiros trocavam de posto. Os becos ficavam mais atentos. Era a virada do dia. A hora em que a cidade do asfalto descia pra favela pra buscar seu alívio, seu vício, sua fuga. Mas antes da noite cair de vez, eu ainda passava na creche improvisada lá em cima do morro. Era só uma sala pequena, cheia de desenhos nas paredes e brinquedos doados. A tia Sônia cuidava de tudo com uma força que eu nunca entendi. — Dante, tu veio! — ela abriu o maior sorriso. — Claro. Trouxe os lápis de cor e os cadernos que cê pediu. Os olhinhos das crianças brilharam. Uma garotinha me puxou pela mão: — Tio Dante, desenha comigo? Sentei ali mesmo, no chão, e peguei um papel. Desenhei uma casa com jardim, um cachorro no quintal e um sol bem grandão no céu. — É sua casa? — ela perguntou. — É a casa que eu sonho. — respondi, sem nem pensar. Ela sorriu e coloriu o cachorro de roxo. Eu ri. — Cachorro roxo? — É má-gico. — ela disse, como se fosse óbvio. Naquela hora, eu quis acreditar que tudo podia ser mágico. Que talvez, só talvez, existisse um mundo onde eu pudesse ser só isso: um cara no chão desenhando com uma criança. Sem fuzil, sem carga, sem sangue nas mãos. Mas o rádio apitou. — Chefe, movimentação estranha no acesso dois. O feitiço quebrou. Me levantei, dei tchau pras crianças, fiz sinal pra Sônia manter tudo fechado depois das sete. Peguei o rádio. — Tô indo. Rick tá onde? — Subindo com mais dois. Esperando ordem. — Espera eu chegar. Desliguei. Respirei fundo. Vesti o boné. Dessa vez, pra trás. Porque à noite, a guerra pedia visão ampla. Voltei a ser o Dante de sempre. O que o mundo conhecia. O que o mundo temia. Mas, no fundo... aquele desenho do cachorro roxo ainda tava latejando na minha cabeça.
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