Tem gente que nasce pra viver, outros pra sobreviver. Eu nasci pra lutar. Sempre foi assim.
As pessoas acham que quem domina o tráfico vive em festa, rodeado de mulher, champanhe e carrões. Tem isso, claro. Mas não é o que preenche. É só anestesia. No fundo, a gente só quer se manter inteiro. Só quer acordar vivo no dia seguinte.
Minha rotina não era pra qualquer um. Eu acordava antes do sol nascer, sem despertador. O corpo já sabia a hora. Colocava meu tênis, ajustava o boné — virado pra frente de manhã, sempre — e saía pra correr. A favela acordava junto comigo. O cheiro de café coado, de pão queimando no fogão velho, o som dos rádios dos primeiros comércios abrindo... tudo fazia parte do meu cenário.
Corria até o ponto mais alto da comunidade. De lá, dava pra ver a cidade inteira. Os prédios brilhando ao longe, as luzes dos carros, a fumaça das fábricas. Era bonito, mas também era c***l. Porque ali de cima, eu via o mundo que nunca foi meu.
Depois do treino, voltava pra base. A casa que eu tomava como minha era grande, com muro alto e portão de ferro. Câmeras por todos os lados. Dois dos meus fiéis faziam guarda, sempre atentos. Eles me respeitavam não só pelo cargo, mas porque sabiam: se precisasse, eu morria por eles. E matava também.
Tomava banho demorado, gelado. Sempre gostei de banho frio. Me deixava alerta, aceso. Botava uma camiseta larga, calça jeans, e escolhia o boné do dia. Meus bonés eram como armaduras. Cada um deles carregava uma energia diferente. No espelho, eu via o Dante que o mundo conhecia: alto, loiro, olhos azuis intensos, barba cerrada, tribal no braço esquerdo que se movia junto comigo como se fosse parte da minha carne. Mas por dentro… eu era só caco de vidro tentando se manter colado.
Me sentava na sala e começava o trampo. Conferia as anotações, os pagamentos da noite, decidia os turnos dos moleques, mandava cobrar quem devia, revisava rota de entrega. Era como gerir uma empresa — a diferença era que se alguém falhasse aqui, morria.
Não aceitava vacilo. Não era por maldade. Era pela ordem. Eu acreditava na estrutura, na disciplina. O tráfico, comigo, funcionava como um relógio. Quem atrasava, se cortava. Quem mentia, sumia. E quem jogava limpo, subia.
Tinha um menino, o Rick, que começou comigo ainda novo. Magrelo, assustado, mas com um olhar esperto. Vi potencial nele. Ensinei tudo. Hoje, ele era minha sombra. Me acompanhava em quase todos os rolês importantes. Tinha gente que dizia que ele era meu sucessor. Talvez fosse. Talvez não.
Apesar de tudo, eu nunca me considerei mau. Fiz o que precisei pra chegar onde tô. Sempre tentei proteger os meus, manter a comunidade em paz, ajudar quando dava. Botava comida na mesa de muita gente. Pagava escola de uns moleques, dava remédio pra senhora do beco. Mas ninguém vê isso. Só veem a arma na cintura, o boné torto e a tatuagem.
Com o tempo, aprendi a não me importar. Viver com julgamento é como respirar fumaça: a gente aprende a fingir que não tá sufocando.
Nunca fui religioso, mas tenho minhas crenças. Acredito em energia, em retorno. Por isso, mesmo envolvido no que tô, tento não ultrapassar certos limites. Não mexo com criança. Não encosto em mulher. Não faço ninguém de refém de algo que não escolheu. E se algum dos meus faz, é cortado na hora. Eu prefiro respeito ao medo. E quem tem princípios, mesmo na escuridão, brilha de um jeito diferente.
O problema é que, por dentro, eu tava cansado. Cansado de dormir com um olho aberto. Cansado de não saber quem me quer bem de verdade. Cansado de fingir que aquilo tudo me satisfazia. Às vezes, no silêncio da madrugada, eu me pegava sonhando com uma vida normal. Um cachorro. Um sofá. Um café quente e alguém pra dividir o silêncio. Coisa simples. Coisa que nunca foi minha.
Mas eu não podia ter isso. Eu era Dante. O rei sem trono. O chefe sem paz. O homem sem nome verdadeiro.
Naquele dia, depois de revisar os papéis e organizar os horários do plantão, saí pra andar. Andar mesmo. Sem rumo. Sem segurança. Sem arma. Só eu e meus pensamentos.
Desci o beco principal, onde as crianças já corriam com as mochilas nas costas, rindo, tropeçando umas nas outras. Passei pela barraca da dona Cida, que já fritava pastel com aquele avental manchado de óleo e amor. Ela sorriu pra mim como sempre. Um sorriso de quem me viu crescer e sabe que, apesar de tudo, eu ainda sou o menino que levava pão com mortadela pros irmãos menores quando a mãe sumia por dias.
— Quer um pastel, Dante? Tá quentinho, de carne com ovo, do jeito que tu gosta.
Sorri de canto.
— Hoje não, dona Cida. Só vim ver se a senhora tá bem.
Ela riu, com aquele olhar que só as velhas têm. Aquele olhar que atravessa qualquer armadura.
— Tô viva, já é lucro. Mas tu tá magro... Tá se cuidando?
— Tentando, né?
Ela assentiu, mas ficou me olhando como se soubesse que, por dentro, eu tava me despedaçando.
Segui. Entrei numa viela onde uns moleques jogavam bola com uma bola murcha. Um deles, o Tiaguinho, me viu e gritou:
— Aí, Dante! Cola aqui, joga um pouco!
Joguei a mochila num canto e fui. Descalço mesmo. A risada deles preencheu o espaço entre os tiros que não vieram naquele dia. Ali, por uns minutos, eu esqueci que era chefe, que era o mais temido, que tinha sangue nas mãos. Ali, eu era só Dante. Um moleque correndo atrás da bola murcha, tropeçando no paralelepípedo, levando caneta do garoto de dez anos e rindo como se minha alma ainda fosse leve.
Depois do jogo, sentei com eles na calçada. Suados, rindo, dividindo um saco de biscoito de polvilho. Eles me contavam das namoradinhas, das notas da escola, das tretas com o professor de matemática. E eu ouvia. Prestava atenção. Porque eles eram o que eu queria ter sido. Criança de verdade. Sem arma escondida, sem trauma no olhar.
Quando me levantei pra ir embora, o menorzinho, o Diguinho, me segurou pela mão.
— Dante... cê vai morrer?
Aquilo me parou. Me travou o peito.
— Por que tu tá perguntando isso, moleque?
Ele olhou pro chão, chutou uma pedrinha.
— Meu pai morreu assim... ajudava os outros, mas disseram que era bandido. Deram um tiro nele. Eu só queria saber se cê vai morrer também.
Me ajoelhei, olhei ele nos olhos.
— Todo mundo morre, Diguinho. Mas até lá, a gente vive. E enquanto eu viver, vou cuidar de vocês.
Ele sorriu meio sem graça e correu pros outros. E eu fiquei ali, olhando pro chão, sentindo o peso daquela pergunta bater no fundo da alma.
Voltei pra base com um silêncio dentro de mim que nem música dava conta. Subi até o segundo andar, onde ficava meu quarto. Uma cama de casal que eu quase nunca usava. Dormia mais no sofá, com a TV ligada só pra não escutar demais o que a mente dizia.
Abri uma gaveta da cômoda. Lá dentro, tinha uma caixinha de madeira. Simples, pequena. Dentro dela, umas fotos antigas: eu com meu pai, antes dele sumir no mundo. Minha mãe, bonita, sorrindo em preto e branco. Eu e meus irmãos num natal onde só tinha arroz, farofa e refrigerante quente, mas todo mundo parecia feliz.
Peguei uma carta dobrada. A letra era da minha irmã mais nova. “Dante, obrigada por cuidar de mim. Você é meu herói.”
Guardei de novo. Fechei a gaveta.
Desci e fui até a casa da dona Lurdes. Ela tem Alzheimer, esquece tudo o tempo todo, mas todo dia ela me espera com um copo de suco e dois biscoitos. Diz que sou neto dela. Eu deixo.
— Vem, meu menino. Olha só como você tá bonito hoje.
— Brigado, vó — respondo, mesmo sabendo que não sou neto dela coisa nenhuma.
Ela me dá um beijo na testa e aperta minha mão com carinho. Eu fico ali, tomando o suco morno, escutando ela repetir pela quinta vez a mesma história do marido que lutou na guerra.
Na saída, deixo uns trocados com a vizinha dela, pra garantir o gás do mês. E mais um pouco, pro filho da Neide, que tá com dengue. Pago também o caderno novo da menina que quer ser médica. Faço isso sempre. Não pra ser bom. Mas porque, de alguma forma, eu preciso equilibrar a balança.
De noite, a favela pulsa diferente. As luzes ficam mais amareladas, os sons mais abafados. As motos sobem e descem em silêncio. Os olhares são mais atentos. E eu... eu viro o Dante que todos temem. Boné pra trás. Glock na cintura. Colete leve. Olhos frios. Porque é assim que tem que ser.
Mas ninguém imagina que, dentro de mim, a única coisa que realmente quero... é paz.
E todo dia, a paz parece mais longe.