Já fazia quase um mês desde aquela briga no mercado.
Um mês desde que eu parei de tentar ter algum controle sobre a minha própria vida.
O Dante continuava invadindo cada canto. Cada espaço. Cada silêncio da minha casa. No início, eu ainda tentava resistir. Me escondia no quarto, evitava conversa, fechava a porta na cara dele. Mas ele não deixava. Se eu me trancava, ele arrombava com palavras. Se eu me calava, ele provocava até eu explodir. Se eu chorava, ele vinha, me pegava, me dobrava, me fod** como se esse fosse o único jeito de me fazer parar de lutar.
E o pior é que eu parei mesmo.
Me peguei cedendo mais vezes do que consigo admitir. Quando ele encostava na minha porta de madrugada, eu abria. Quando ele me puxava pela cintura, eu não resistia. Quando dizia meu nome com aquela voz baixa, perto demais do meu ouvido, eu ia.
A rotina virou algo que eu não sabia mais se amava ou odiava.
Durante o dia, ele aparecia. Sentava na minha mesa como se fosse dele, comia a comida que eu preparava, mexia nas minhas gavetas, cruzava as pernas no sofá como se morasse ali. Dava atenção para a Clara como se fosse o pai dela.
À noite, ele me usava como queria.
Às vezes com raiva, às vezes com calma, às vezes com um olhar que me desmontava inteira. Um olhar que dizia tudo sem abrir a boca. Um olhar que eu aprendi a reconhecer de longe, antes mesmo dele tocar a maçaneta.
E a Clara... ela parecia feliz. Dormia melhor. Comia direito. Voltou a rir alto, com aquela alegria que tinha sumido depois da nossa mudança forçada.
Mas eu... eu só afundava mais.
Não tinha mais ponto na rua. Não podia procurar emprego. Todo mundo no morro sabia que eu era a mulher do Dante agora. Mesmo que eu gritasse para o mundo inteiro que não era. Virou verdade na boca dos outros. Virou sentença. Virou corrente.
Eu estava presa.
De corpo e de cabeça.
E naquela manhã de segunda-feira, acordei com o mesmo medo de sempre. O medo de qual seria a próxima loucura dele. O medo do que ele ia decidir por mim. O medo de como eu ia reagir quando ele encostasse em mim de novo.
E o pior é que parte de mim já nem sabia mais se queria fugir de verdade.
Eu me olhava no espelho e não me reconhecia. A mulher de antes, a que andava com a cabeça baixa, que contava moeda para comprar pão, que trabalhava dobrando roupa na casa dos outros, ainda estava ali, escondida. Mas soterrada por outra versão de mim que ele criou.
Olheiras fundas. Olhar sempre atento. Ombros tensos.
E o corpo... o corpo parecia ter criado memória dele. Como se cada toque dele tivesse gravado alguma coisa na minha pele. Como se eu vivesse preparada para um ataque que nunca vinha da forma que eu esperava.
O ataque vinha nos detalhes. Nas entrelinhas. No silêncio. No jeito dele passar pela sala e encostar a mão na minha cintura como se fosse dele. No cheiro dele que ficava impregnado em tudo.
E quando eu percebia, já estava no colchão, mordendo o travesseiro, tentando controlar a respiração. Fingindo que não gostava. Fingindo que odiava. Fingindo que não esperava pela próxima vez.
Mas eu esperava.
Essa era a pior parte.
As roupas que ele tirava do meu corpo quase todas as noites, foi ele quem trouxe nas últimas semanas. Camisolas novas. Rendas delicadas. Vestidos curtos que eu nunca teria coragem de escolher sozinha. No começo, eu escondia no fundo da gaveta. Hoje, já não tinha mais força para negar.
As gavetas tinham coisas dele também. Perfume. Blusas. Bonés.
A cozinha estava sempre cheia. Refrigerante. Leite condensado. Achocolatado de marca boa. Carne. Fruta. Bolo. Coisas que eu nunca pude comprar antes.
Minha filha nunca teve tanta fartura.
E eu nunca me senti tão perdida.
Não saio mais sozinha. Quando tento, tem sempre alguém seguindo de longe. Não é cuidado. É vigilância. Controle. Corte de asa.
As vizinhas já mudaram até o jeito de olhar. Antes cochichavam que eu era p*****a. Agora cochicham que eu sou mulher do dono. Como se isso fosse honra. Como se fosse escolha minha.
Eu passo o dia arrumando a casa, cuidando da Clara, fingindo normalidade. E à noite, quando ele vai embora antes do amanhecer, fico deitada encarando o teto, sentindo um buraco enorme no peito.
Um buraco que ele cava mais fundo toda vez que aparece.
E o pior... é que parte de mim já começou a aceitar isso.
O café da manhã continuou como se fosse rotina.
Eu lavava louça na pia, tentando ignorar a cena atrás de mim. Mas não tinha como. A Clara ria. Ria alto, contando as histórias da escola. Falando da aula de ontem, da professora nova, do desenho que ia mostrar para as amigas. E ele estava ali, sentado no chão, mexendo nas canetinhas coloridas dela, rindo baixo das histórias exageradas que minha filha inventava.
Ele parecia outro homem quando estava com ela. Mais leve. Menos feroz.
Mas mesmo assim... perigoso demais.
— E aí? — a voz dele veio para mim de repente. — Você vai levar ela hoje?
Virei só de leve, mantendo distância.
— Claro que vou. Sempre levo.
Ele apoiou o braço no joelho, completamente à vontade dentro da minha casa.
— Posso levar.
— O quê? — Meu coração travou. Ele olhou para a Clara.
— Quer ir comigo hoje?
— Sério? Posso, mãe? Posso? — Ela abriu um sorriso enorme. Um sorriso que me destruiu.
Eu travei inteira. Meu estômago virou.
— Não, Clara. Você vai comigo.
O sorriso dela diminuiu, mas não apagou. Ela ficou me olhando, com a esperança presa nos olhos.
— Por quê, mãe? Ele tem moto.
— Por isso mesmo. — Engoli em seco.
Porque, se ela subisse naquela moto, eu perderia ela também. Do mesmo jeito que já estava perdendo a mim mesma.