O dinheiro que sobrou depois das últimas compras estava contado, mas dava pra mais uma ida ao mercado. Clara precisava de mais bolacha, leite e o achocolatado que ela adorava. Eu sabia que, se ficasse dentro de casa, ia acabar sufocando. Então coloquei a roupa mais discreta que tinha, peguei a mochila velha e fui caminhando com ela até o mercado da principal.
O problema de andar por aquelas ruas era sempre o mesmo: eu nunca sabia quem ia aparecer. Nunca sabia quem ia olhar, comentar, julgar, apontar.
E, naquele dia, o destino resolveu me testar até o último fio de paciência.
Estava no corredor das bolachas, tentando escolher a mais barata, quando ouvi a voz. A voz que eu mais queria evitar.
— Ué... olha quem resolveu aparecer em público.
Me virei devagar, já sabendo o que vinha.
Era ela. A mesma mulher que tinha soltado piada no morro no dia em que me viu com o Dante. Cheia de maquiagem, roupa apertada, um sorriso venenoso escorrendo da boca. Atrás dela, mais duas, prontas pra servir de plateia.
— Até com roupa de mercado essa aí parece pronta pra rodar — uma delas comentou, rindo baixo.
Meu estômago apertou.
Clara estava ao meu lado, segurando meu dedo, olhando tudo com aquela expressão confusa, sabendo que tinha algo errado, mas sem entender o que era.
— Tá achando que é dona de alguma coisa agora? — a mulher continuou, se aproximando. — Só porque deu uns pegas no Dante? Tá achando que virou alguém, é?
Engoli seco. Não respondi. Só apertei a mão da Clara com mais força.
— Ele enjoa fácil, viu? — ela provocou, inclinando a cabeça. — Mas você já deve saber disso. Rodou esse morro todinho. Agora quer roubar o homem dos outros.
Senti o sangue ferver.
— E pior — ela riu, olhando pra Clara de cima a baixo. — Traz a pirralha pra ouvir isso. Já vai aprender cedo o que a irmã é.
Tudo dentro de mim explodiu.
Larguei a sacola no chão e avancei antes de pensar. O tapa estalou alto, tão forte que a cabeça dela virou para o lado. Ela reagiu na hora, puxou meu cabelo e me jogou contra a prateleira. O impacto fez tudo ao redor balançar.
Gritos surgiram. As pessoas recuaram. Clara começou a chorar desesperada, berrando meu nome.
— Mãe, para! Mãe, para!
Mas eu já tinha perdido o controle. A mulher arranhou meu rosto e eu reagi com um soco no peito dela. Ela caiu de joelhos e me puxou junto pelo cabelo.
O mercado virou um caos.
Alguém gritou lá do fundo:
— Tá maluca? Esqueceu que é proibido brigar na rua?!
E então eu ouvi. Aquele passo que eu reconheceria em qualquer lugar. O som pesado da bota batendo no chão. A respiração curta dele se aproximando. A voz que rasgava qualquer ambiente.
— Luna!
Quando levantei o rosto, ele estava lá.
O Dante.
Caminhando no meio da multidão que abriu espaço como se ele fosse uma arma carregada. O olhar dele era só raiva. Raiva crua. Raiva perigosa.
Ele veio direto até mim, me puxou pelo braço com força e me arrancou de cima dela como se eu fosse um peso leve.
— Que p***a é essa? — ele rosnou, segurando meu pulso tão firme que doeu.
Tentei me soltar, o peito ardendo de raiva e vergonha.
— Ela me provocou — apontei para a mulher caída no chão, agora chorando com a maquiagem escorrendo.
— Eu te perguntei? — ele rebateu, puxando meu braço ainda mais forte.
— Larga de mim, Dante!
E então eu vi.
A Clara.
Parada no meio do corredor, com o rosto molhado de lágrimas, tremendo de medo.
O olhar dele caiu sobre ela. Foi como um choque. Ele respirou fundo, me soltou com brusquidão e apontou para a saída do mercado.
— Vai pra casa. Agora.
Eu ainda tremia. A vergonha queimava minha pele. Peguei a Clara no colo e saí quase tropeçando, com ela abraçada no meu pescoço, soluçando.
E eu sabia.
Aquilo era só o começo do inferno.
Cheguei em casa com o corpo trêmulo, o rosto quente, a cabeça girando. Clara continuava chorando baixinho, agarrada no meu pescoço como se buscasse ar no meu.
Soltei as sacolas no chão da sala, tranquei a porta com a mão que m*l parava de tremer e levei ela direto para o quarto.
— Calma, filha — sussurrei enquanto sentava na cama, embalando ela. — Já passou. Já passou.
Ela fungou com força, enxugando o rosto na minha blusa.
— Por que você brigou, mãe? Por quê?
Minha garganta travou imediatamente.
Como explicar? Como dizer que eu fui feita de piada na frente de todo mundo? Que falaram de mim, que falaram dela, que mexeram com tudo o que ainda restava em mim?
Passei a mão no cabelo dela, tentando segurar as próprias lágrimas.
— A mulher foi maldosa. Só isso. Mas não vai acontecer de novo, tá?
Ela assentiu devagar, abraçando a boneca nova com toda a força que tinha.
— Não quero mais ir no mercado, mãe.
— Eu sei — respondi, com a voz tão fraca que quase não saiu.
Me levantei e fui até o banheiro. Tranquei a porta e encarei meu reflexo. Meu rosto estava arranhado. O cabelo um caos. Um roxo começava a aparecer perto da boca. Encostei as costas na porta e fechei os olhos, tentando respirar.
Mas antes que eu conseguisse me recompor, ouvi passos fortes do lado de fora. O portão bateu como pancada. A porta da sala se abriu com tanta força que quase saiu do batente.
— Luna!
A voz dele encheu a casa inteira.
Meu estômago gelou.
Saí do banheiro rápido. O coração batia fora do ritmo.
Ele estava ali, parado na sala, com o olhar mais escuro que eu já tinha visto. As mãos cerradas, o maxilar travado, o corpo inteiro vibrando raiva.
— Que merda foi aquela? — ele perguntou, a voz baixa, mas tão carregada de ameaça que parecia grito.
— Ela começou — tentei explicar, cruzando os braços como se aquilo fosse proteção. — Me humilhou na frente da minha filha, falou um monte de merda, Dante. Eu não aguentei.
Ele deu dois passos na minha direção.
— Você acha que pode sair batendo em qualquer uma agora? No meio do morro? Na frente de todo mundo? — o tom dele parecia uma lâmina gelada. — Sabe o que estão falando lá fora? Que a minha... — ele travou a frase por um segundo, como se isso o irritasse ainda mais. — Que a mulher que eu tô se comportou igual qualquer uma fazendo barraco no mercado.
Aquela frase rasgou o ar.
Meu peito doeu como se alguém tivesse enfiado um punho dentro dele.
E eu percebi, naquele instante, que não importava o que eu fizesse.
Ele sempre ia achar que eu pertencia a ele.
Ele sempre ia agir como dono.
E sempre ia exigir que eu me comportasse como tal.