9. Dante

867 Words
Passei pelo beco que dava acesso às bocas e conferi a movimentação. Magrão veio me atualizar sobre os moleques que estavam dando trabalho na outra comunidade. Estavam querendo invadir aqui. — Tão achando que a gente tá mole, chefe – ele disse. — Então deixa eles pensar – respondi, acendendo outro cigarro. – Quando eles vierem, a gente apaga no primeiro passo. A tarde veio chegando junto com o calor. O morro fervia. Crianças brincando nas vielas, música alta saindo de algum barraco, cheiro de óleo quente, cigarro e maconha misturado no ar. Sentei na mureta perto da quadra, com o rádio no colo e o olhar varrendo o movimento lá embaixo. Foi aí que eu a vi. Luna. Descendo a rua com aquele andar rápido, com o olhar abaixado, como sempre tentando passar despercebida. Mas não dava. Mesmo de longe, ela chamava atenção. Aquele cabelo desgrenhado preso de qualquer jeito, a roupa simples, mas com o corpo dela marcando em cada passo. Só que não foi só ela que me chamou atenção. Do lado dela vinha uma menina pequena. Devia ter uns seis, sete anos no máximo. Magrela, cabelo preso em maria-chiquinha, carregando uma mochila nas costas e uma boneca nova no braço. As duas riam baixinho. A menina pulava ao lado dela, mostrando alguma coisa dentro da lancheira, como se tivesse ganhado um doce. As duas pareciam felizes. Fiquei olhando. Meu olhar travou nelas. A primeira coisa que pensei foi: "Filha dela." Só podia ser. A conta fechava. Idade certa. O jeito protetor como ela segurava a mão da menina. O olhar dela o tempo inteiro, checando se a moleca estava perto, se ninguém mexia, se nenhum dos moleques da rua falava merda. Aquela era a cara de quem protege filho. De quem luta, faz o que for preciso, pra não deixar faltar nada. Minha mandíbula travou. De repente, tudo ficou mais claro. O motivo dela fazer o que faz. O motivo dela ter aquele olhar sempre cansado, sempre com medo, mas nunca quebrado de verdade. Ela tem uma filha. Uma filha nascida no meio da merda, criada no morro, filha de uma p**a que se vende por um prato de comida e um botijão de gás. A raiva subiu no meu peito, mas não consegui entender direito o porquê. Era uma mistura estranha. Nojo? Pena? Curiosidade? Talvez um pouco de tudo. Fiquei ali parado, só olhando, enquanto as duas subiam a viela em direção ao barraco dela. Magrão, que estava perto, percebeu o rumo do meu olhar. — Bonitinha a menininha, né? – ele comentou, com aquele tom debochado de sempre. Eu continuei calado. Traguei o cigarro até o fim, joguei a bituca no chão e pisei em cima. Sem dizer mais nada, voltei pro interior da favela. Com a cabeça fervendo. Porque agora, além do corpo da mãe, eu sabia que ela tinha outra fraqueza. E eu sempre soube usar a fraqueza dos outros a meu favor. O dia foi longo. Mais longo do que o normal. Depois que a vi com a menina, minha cabeça não parou. Tentei focar nas coisas do morro. Nas contas. Nas encomendas que tinham que chegar. Na p***a da guerra que estava quase estourando com os caras da área de cima. Mas nada. Era como se aquela imagem, as duas subindo a rua, grudasse na minha cabeça feito um maldito eco. No fim da tarde, subi pra casa. Minha casa fica no alto, a mais afastada. Vista pra favela inteira. E se quiser, pra cidade também. Porta reforçada. Janelas com grade. Dois dos meus melhores homens fazem vigília ali na frente, sempre. Passei pela sala jogando as chaves na bancada. Tirei a jaqueta, a camisa, joguei tudo no sofá. Fui direto pro quarto. No criado-mudo, a Glock, carregada, do jeito que sempre fica. É a primeira coisa que eu olho antes de deitar. E a última antes de dormir. Liguei o ventilador, mas o calor era tanto que parecia que o ar nem mexia. Tomei um banho rápido, deixando a água cair nas costas, tentando esfriar a cabeça. Mas nem a água gelada deu jeito. Quando deitei, fiquei de olhos abertos, olhando pro teto, escutando o som da favela lá embaixo. Moto passando. Criança gritando. Música de funk estourando em algum barraco. Latido de cachorro. E no meio disso tudo, o peso da rotina. Eu podia ter ligado pra qualquer uma. Podia ter chamado a Bruna, ou outra qualquer. Bastava um recado. Um gesto. Elas vinham rastejando se eu quisesse. Mas só de pensar já dava nojo. Fechei os olhos, tentando me forçar a dormir. Mas a cabeça não desligava. Ficava voltando. O jeito que ela gemeu na minha boca. O gosto da pele dela. A p***a do olhar dela, cheio de medo e t***o ao mesmo tempo. Bufei. Virei pro lado. Alcancei o celular e conferi as mensagens. Nada importante. Coloquei de volta na mesa. Segurei a arma por uns segundos, só pelo costume, sentindo o peso frio do metal. Soltei um suspiro longo, irritado comigo mesmo. Tentei fechar os olhos de novo, mas já sabia. Essa noite, sono era uma coisa que eu não ia ter. Paz é um luxo que eu nunca pude comprar.
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