Alice Narrando
Gente, vocês não têm noção da minha felicidade. Consegui uma vaguinha pra fazer unha em fibra no salão da Teresa, que é tipo o point das mulheres do morro. Foi tipo ganhar na loteria, sério. Teresa é exigente pra caramba, mas também tem um olho clínico que só. Ela gostou do teste que fiz e me chamou pra fazer, mais um teste. Fiz. Arrasei. Passei. E agora tô aqui, cheia de cliente até dizer chega.
A primeira cliente que fiz saiu apaixonada. Juro! Ela levantava a mão toda hora pra olhar as unhas no sol, fazia pose de blogueira, e ainda saiu falando pra meio mundo que eu era um talento descoberto. Desde esse dia menina, eu quase não tenho tempo nem pra comer. Pulo o almoço, como coxinha fria entre uma cliente e outra, e bebo café como se fosse água.
Mas tá valendo, né? Além do trampo bombando, fiz amizade com a Teresa e com as meninas que trabalham no salão. Cada uma mais figura que a outra. E eu tô amando esse clima de salão, sabe? Mulherada falando alto, rindo, contando babado, reclamando de macho Ai, me encontrei.
E claro, eu tô de olho, né? Tô adquirindo confiança pra saber mais sobre esse tal de Hell. Preciso entender tudo sobre ele, já que bom, vocês sabem, né? Só que ninguém pode nem imaginar. Eu sou filha do dono do morro. Meu Deus do céu, só de pensar já me dá dor de barriga. Mas finge costume.
Hoje mesmo, enquanto eu lixava a unha de uma cliente nova, senti um arrepio estranho. Sabe aquela sensação de que a pessoa tá te estudando? Pois é. A mulher era fina, elegante, tinha aquele ar de quem manda. Ficou o tempo todo me olhando. Eu, tentando manter a pose, puxei papo:
— A senhora quer um café, um suco?
— Não, obrigada. Só quero ver como vai ficar esse alongamento — respondeu com aquele tom gelado, mas educado.
Continuei fazendo o serviço, mas pensando: Gente, de onde conheço essa mulher? Quando ela foi embora, uma das meninas cochichou:
— Tu sabe quem é essa aí, né?
— Ué, não. Cliente nova, né?
— Essa aí é a mulher do chefe.
— Chefe? Que chefe?
— Mulher do Hell, garota.
O dono do morro — Eu gelei.
Senti o sangue descer até os pés. Meu Deus, a mulher do Hell. A mulher do meu pai. E eu aqui lixando a unha dela, falando do esmalte nude como se fosse qualquer uma.
Ela ficou me olhando de um jeito que, socorro. Parecia que sabia de alguma coisa. Será que percebeu? Será que tem algo na minha cara que denuncia? Sai fora! Eu preciso manter segredo, ninguém pode nem sonhar que eu sou filha desse homem.
Fiquei tão nervosa que quase derrubei a acetona em cima da mesa.
— Tu tá bem, Alice? — perguntou a Simone, uma das meninas.
— Tô! Tô ótima, só fome, sabe?
— Menina, a mulher do chefe é braba. Não pisa na bola, não.
— Imagina, tratei ela como uma rainha.
Mas por dentro eu tava em pânico. Será que fui simpática demais? Será que fui simpática de menos? Ela me olhou com aquele olhar de raio-X, cruz credo! Parecia que ia dizer: Eu sei quem você é.
Preciso ser mais discreta, mais neutra, mais sei lá.
Por via das dúvidas, já tô aqui pensando em trocar a cor do cabelo. Vai que ajuda, né?
Terminei meu turno e fui me encontrar com a Simone ali na esquina. A gente combinou de passar na lanchonete pra matar a fome, porque, né? Nem tempo de almoçar a gente teve. Cada uma pegou um podrão, cachorro-quente daquele caprichado, lotado de batata palha, milho, purê, vinagrete e catupiry e uma coquinha gelada pra descer. Sentamos numa mesinha de plástico meio bamba ali na calçada, e eu tava no meu momento de paz, primeira mordida na maravilha, quando escuto um barulho das motos, em nossa direção e uma presença vindo do lado.
Levantei os olhos e dei de cara com ele: Teto.
Sim, o Teto. O cara que eu descobri esses dias que é o sub do morro. O braço direito do meu pai. O tipo de homem que todo mundo respeita ou teme por aqui. Alto, moreno, tatuado, aquele olhar de quem enxerga a alma dos outros. E pra piorar, bonito. Aí complica.
Ele me olhou da cabeça aos pés com um sorrisinho torto que me deixou desconcertada.
— Boa noite — falou baixo, com a voz rouca.
E entrou na lanchonete como se tivesse todo o tempo do mundo.
— Caraca — murmurei, voltando pro meu podrão.
A Simone deu risada.
— O Teto não perdoa ninguém.
— Que isso, já ficou com ele?
— Eu? Não! Conheço o Teto desde criança. Já namorei o primo dele, o Cicinho.
Dei risada.
— Ah, então tá explicado. Mas que o homem é bonito, ele é.
— E perigoso também — ela piscou.
Terminamos de comer, rimos mais um pouco e nos despedimos. Simone foi pro lado dela e eu comecei a subir pro meu, no outro canto do morro. Tava de boa, andando devagar, pensando na vida, quando ouvi o barulho do freio de moto bem atrás de mim. Quase enfartei.
Virei o rosto devagar, já meio assustada, e vi o Teto. Parado na moto, com aquele mesmo sorriso de canto de boca.
— Sobe aí, te dou uma carona.
Sorri educada.
— Valeu, mas tô perto já. Tá tranquilo.
— Não perguntei se tá tranquilo. Sobe aí, vai — ele insistiu.
Fiquei sem graça, mas acabei aceitando. Sentei na garupa e agarrei na blusa dele, sentindo o cheiro de perfume misturado com óleo de moto e perigo. Foi rápido, nem deu tempo de falar nada. Quando parou na porta do meu barraco, ele desligou a moto e me olhou.
— Vai no baile sábado?
— Ainda não sei.
— Vai sim. Te pego às dez.
Pisquei, tentando entender se ele tava me chamando ou mandando.
— Ah é? Tá decidido assim?
— Tá sim — ele falou sério, depois sorriu. — Sábado, às dez.
Desci da moto meio zonza. Agradeci e fui abrir meu portão, mas ele segurou no meu braço. A mão quente, firme, deu um choque em mim.
— Te pego às dez, Alice.
Olhei nos olhos dele. Meu coração batendo tão forte que eu pensei que ele fosse escutar. Sorri, sem mostrar dente.
Esse doido acha que manda em mim, só porque é o sub do morro, Pois sábado ele vai ver quem é que manda.
Entrei no barraco com um sorrisinho vitorioso. Que comecem os jogos.