A promessa inicial era um bilhete dourado para uma montanha-russa: saidinhas de banco, golpes fiscais, estelionato, nada muito sofisticado. Em troca: vida fácil, uma carteira recheada, cartões de crédito, talões de cheque, dólares. Mas como se diz aqui: Vem fácil, vai fácil!
A visão do esconderijo decrépito nada se comparava com os sonhos das esbórnias regadas a champanhe do bom e charuto importado.
O ambiente estava tomado por uma energia escura, claustrofobia e sujeira. As paredes descascando, o cinzeiro abarrotado de cinzas e bitucas de cigarro e o brilho opaco de um isqueiro. A garrafa de conhaque barato vazia equilibrada na ponta da mesa, era o retrato verídico do que sobrara — nada.
Mas nada com um dia após o outro...
Era uma manhã de quinta. Os termômetros registravam impressionantes 34 C° em São Paulo.
Escolhera o horário de pico, acreditando que a multidão e o barulho o ajudariam a passar despercebido. Ele estava errado.
Com o sinal fechado no semáforo, um motorista distraído dava bobeira com um relógio de pulso caro. A oportunidade era perfeita. Rápido, Beto se aproximou e puxou com um movimento certeiro.
Mal teve tempo de correr.
Do outro lado da rua, um policial que patrulhava a área viu a cena. Ele imediatamente começou a atravessar, gritando em direção ao meliante.
O coração disparou. Ele correu, desviando das pessoas na calçada. O policial estava em vantagem: alto, em forma, e com botas que resolvam no asfalto. Beto tropeçou ao tentar virar uma esquina, o relógio caiu de sua mão e rolou pela sarjeta. Titubeou ficando em dilema de continuar ou recolher o relógio, enquanto o policial se próximava. Escolheu correr.
Tentou entrar em uma viela estreita entre dois prédios com um carrinho de supermercado bloqueando parcialmente a passagem. Ele empurrou o carrinho com força, fazendo-o tombar, e seguiu em frente. Os gritos de “pega ladrão” se espalhavam como uma onda pela rua, e a respiração ofegante, dificultava. Ele sentia a fricção das solas gastas dos tênis nos asfalto. Seus pulmões ardiam. Os passos parecia um golpe contra o concreto duro.
Seu olhar vasculhou a viela em busca de uma saída. Encontrou uma escada de emergência enferrujada e começou a subir, seus braços tremendo enquanto puxava o próprio peso. A cada degrau, o som das botas do policial aumentava.
Ele contactava a central pelo radio:
[Central, aqui é a unidade 204! Estou em perseguição a pé de um suspeito, próximo ao cruzamento com a Avenida Central. Suspeito magro, moreno-claro, camiseta branca, calça jeans, aproximadamente 1,78m! Solicito reforços, câmbio!]
[Recebido, 204. Reforços a caminho. Qual a direção do suspeito, câmbio?]
[Ele entrou em um beco à direita, está tentando escalar uma cerca! Suspeito possivelmente armado. Preciso de apoio urgente, câmbio!]
[Unidade 305 a caminho, ETA 2 minutos. Mantenha a segurança, câmbio.]
[Entendido, Central. Tentando interceptar antes que ele alcance a área residencial! Preciso de perímetro fechado, câmbio!]
[Recebido. Patrulhas estão redirecionando para o perímetro. Permaneça na linha, câmbio e desligo.]
No topo da escada, Beto percebeu que não havia como descer do outro lado. Era um beco sem saída. Ele olhou para baixo, avaliando o risco de pular. O chão parecia distante, e ficar ali não era uma opção.
Sem pensar, ele pulou para um telhado baixo de uma casa vizinha. O impacto o fez rolar, e ele sentiu uma dor aguda no tornozelo ao aterrissar. Cambaleou, é assim mesmo, continuou correndo, trôpego.
Ao atravessar um portão, o ruido acabou chamando a atenção do policial que apareceu na esquina.
Mesmo com a dor, ele correu em direção ao final do beco. Se chegasse até lá, poderia desaparecer entre as árvores e arbustos do matagal.
Escondido no matagal, Beto se jogou no chão, exausto. O policial parou na entrada, ofegante. O tornozelo latejava, a camiseta estava encharcada, e seu corpo inteiro tremia.
Deitado, encarando o céu nublado, ele percebeu que perder o relógio não era nada comparado a quase perder a liberdade. Tudo o que restava era a perseguição, os gritos do motorista em fúria.
Saiu do matagal arrastando o tornozelo machucado. O calor ainda se agarrava à sua pele, enquanto a poeira da rua se impregnava ao suor em seu rosto. Ele notou o sangramento em um pequeno corte no braço, resultado de sua fuga desesperada.
As sirenes ao longe diminuía afastando-se rápido da área. Como se desistissem de procurar por ele.
Manco de uma perna, a cada passo o tornozelo protestava. Na esquina, quase sem querer, ele cruzou o olhar com uma conhecida: Íris.
— Beto! E aí? Por onde tem andado? Tudo bem? — perguntou.
— Tudo. Com um pouco de pressa. A gente se fala depois — a voz saiu áspera, quase como um reflexo.
— Tá tudo bem mesmo?
Íris o analisou dos pés à cabeça: a calça suja de terra, os arranhões nos braços.
— Pra mim parece que sofreu um acidente.
— Não foi nada grave. Eu tava jogando na quadra com a molecada e, torci o tornozelo — mentiu com um sorriso forçado, o resultado foi um esgar estranho, sem convicção.
— Na quadra, Beto. Olha bem pra minha cara. E essa marca aqui, esse braço todo arranhado. Também vai mentir que foi jogando bola? — ela apontou para o sangue que escorria.
Beto passou a mão pelo rosto, impaciente.
— Olha Íris... eu só preciso ir pra casa e descansar, beleza?
— Minha casa é logo ali. Da pra limpar esses machucados e cuidar desse tornozelo.
Beto aguentou firme.
— Não precisa.
— Deixa de ser orgulhoso, garoto. Olha bem pra si mesmo. Anda vem.
Ele não teve forças para discutir. Seguiu com Íris até a casa, enquanto sua mente trabalhava a mil. A cada passo dado ao lado dela fazia com que ele sentisse a sombra do erro se aproximando novamente.
— Vai me conta. O que andou aprontando? Desapareceu. E aí reaparece assim. Cheio de mistérios — ela o perguntou enquanto passava um pano embebido em álcool para esterilização dos ferimentos.
Qualquer passo em falso significaria cruzar a fronteira do conforto e o perigo dela saber sobre seus empreendimentos secretos.
— Eu já disse, eu só cai de m*l jeito. E se me permite... — ele tornou a reafirmar colocando-se em pé.
Ela o impediu.
— Aonde senhor pensa que está indo?
— Embora, ué.
— Mancando desse jeito? Nana-nina-não. Nem pensar. Sentadinho, ouviu?
Íris apoiou a mão contra o peito dele, empurrando-o sentado de volta na cadeira.
— E não adianta mentir dizendo que não está doendo. Da pra ver nos seus olhos. Pode enganar qualquer um menos eu.
Ela continuou com o tratamento.
Enrolou o tornozelo com uma faixa.
Beto a fitava de um modo quase imperceptível.
Era inquietante a forma como ela o via, como o enxergava através dos disfarces que ele vestia.