Capítulo dez - 10:1

1131 Words
A promessa inicial era um bilhete dourado para uma montanha-russa: saidinhas de banco, golpes fiscais, estelionato, nada muito sofisticado. Em troca: vida fácil, uma carteira recheada, cartões de crédito, talões de cheque, dólares. Mas como se diz aqui: Vem fácil, vai fácil! A visão do esconderijo decrépito nada se comparava com os sonhos das esbórnias regadas a champanhe do bom e charuto importado. O ambiente estava tomado por uma energia escura, claustrofobia e sujeira. As paredes descascando, o cinzeiro abarrotado de cinzas e bitucas de cigarro e o brilho opaco de um isqueiro. A garrafa de conhaque barato vazia equilibrada na ponta da mesa, era o retrato verídico do que sobrara — nada. Mas nada com um dia após o outro... Era uma manhã de quinta. Os termômetros registravam impressionantes 34 C° em São Paulo. Escolhera o horário de pico, acreditando que a multidão e o barulho o ajudariam a passar despercebido. Ele estava errado. Com o sinal fechado no semáforo, um motorista distraído dava bobeira com um relógio de pulso caro. A oportunidade era perfeita. Rápido, Beto se aproximou e puxou com um movimento certeiro. Mal teve tempo de correr. Do outro lado da rua, um policial que patrulhava a área viu a cena. Ele imediatamente começou a atravessar, gritando em direção ao meliante. O coração disparou. Ele correu, desviando das pessoas na calçada. O policial estava em vantagem: alto, em forma, e com botas que resolvam no asfalto. Beto tropeçou ao tentar virar uma esquina, o relógio caiu de sua mão e rolou pela sarjeta. Titubeou ficando em dilema de continuar ou recolher o relógio, enquanto o policial se próximava. Escolheu correr. Tentou entrar em uma viela estreita entre dois prédios com um carrinho de supermercado bloqueando parcialmente a passagem. Ele empurrou o carrinho com força, fazendo-o tombar, e seguiu em frente. Os gritos de “pega ladrão” se espalhavam como uma onda pela rua, e a respiração ofegante, dificultava. Ele sentia a fricção das solas gastas dos tênis nos asfalto. Seus pulmões ardiam. Os passos parecia um golpe contra o concreto duro. Seu olhar vasculhou a viela em busca de uma saída. Encontrou uma escada de emergência enferrujada e começou a subir, seus braços tremendo enquanto puxava o próprio peso. A cada degrau, o som das botas do policial aumentava. Ele contactava a central pelo radio: [Central, aqui é a unidade 204! Estou em perseguição a pé de um suspeito, próximo ao cruzamento com a Avenida Central. Suspeito magro, moreno-claro, camiseta branca, calça jeans, aproximadamente 1,78m! Solicito reforços, câmbio!] [Recebido, 204. Reforços a caminho. Qual a direção do suspeito, câmbio?] [Ele entrou em um beco à direita, está tentando escalar uma cerca! Suspeito possivelmente armado. Preciso de apoio urgente, câmbio!] [Unidade 305 a caminho, ETA 2 minutos. Mantenha a segurança, câmbio.] [Entendido, Central. Tentando interceptar antes que ele alcance a área residencial! Preciso de perímetro fechado, câmbio!] [Recebido. Patrulhas estão redirecionando para o perímetro. Permaneça na linha, câmbio e desligo.] No topo da escada, Beto percebeu que não havia como descer do outro lado. Era um beco sem saída. Ele olhou para baixo, avaliando o risco de pular. O chão parecia distante, e ficar ali não era uma opção. Sem pensar, ele pulou para um telhado baixo de uma casa vizinha. O impacto o fez rolar, e ele sentiu uma dor aguda no tornozelo ao aterrissar. Cambaleou, é assim mesmo, continuou correndo, trôpego. Ao atravessar um portão, o ruido acabou chamando a atenção do policial que apareceu na esquina. Mesmo com a dor, ele correu em direção ao final do beco. Se chegasse até lá, poderia desaparecer entre as árvores e arbustos do matagal. Escondido no matagal, Beto se jogou no chão, exausto. O policial parou na entrada, ofegante. O tornozelo latejava, a camiseta estava encharcada, e seu corpo inteiro tremia. Deitado, encarando o céu nublado, ele percebeu que perder o relógio não era nada comparado a quase perder a liberdade. Tudo o que restava era a perseguição, os gritos do motorista em fúria. Saiu do matagal arrastando o tornozelo machucado. O calor ainda se agarrava à sua pele, enquanto a poeira da rua se impregnava ao suor em seu rosto. Ele notou o sangramento em um pequeno corte no braço, resultado de sua fuga desesperada. As sirenes ao longe diminuía afastando-se rápido da área. Como se desistissem de procurar por ele. Manco de uma perna, a cada passo o tornozelo protestava. Na esquina, quase sem querer, ele cruzou o olhar com uma conhecida: Íris. — Beto! E aí? Por onde tem andado? Tudo bem? — perguntou. — Tudo. Com um pouco de pressa. A gente se fala depois — a voz saiu áspera, quase como um reflexo. — Tá tudo bem mesmo? Íris o analisou dos pés à cabeça: a calça suja de terra, os arranhões nos braços. — Pra mim parece que sofreu um acidente. — Não foi nada grave. Eu tava jogando na quadra com a molecada e, torci o tornozelo — mentiu com um sorriso forçado, o resultado foi um esgar estranho, sem convicção. — Na quadra, Beto. Olha bem pra minha cara. E essa marca aqui, esse braço todo arranhado. Também vai mentir que foi jogando bola? — ela apontou para o sangue que escorria. Beto passou a mão pelo rosto, impaciente. — Olha Íris... eu só preciso ir pra casa e descansar, beleza? — Minha casa é logo ali. Da pra limpar esses machucados e cuidar desse tornozelo. Beto aguentou firme. — Não precisa. — Deixa de ser orgulhoso, garoto. Olha bem pra si mesmo. Anda vem. Ele não teve forças para discutir. Seguiu com Íris até a casa, enquanto sua mente trabalhava a mil. A cada passo dado ao lado dela fazia com que ele sentisse a sombra do erro se aproximando novamente. — Vai me conta. O que andou aprontando? Desapareceu. E aí reaparece assim. Cheio de mistérios — ela o perguntou enquanto passava um pano embebido em álcool para esterilização dos ferimentos. Qualquer passo em falso significaria cruzar a fronteira do conforto e o perigo dela saber sobre seus empreendimentos secretos. — Eu já disse, eu só cai de m*l jeito. E se me permite... — ele tornou a reafirmar colocando-se em pé. Ela o impediu. — Aonde senhor pensa que está indo? — Embora, ué. — Mancando desse jeito? Nana-nina-não. Nem pensar. Sentadinho, ouviu? Íris apoiou a mão contra o peito dele, empurrando-o sentado de volta na cadeira. — E não adianta mentir dizendo que não está doendo. Da pra ver nos seus olhos. Pode enganar qualquer um menos eu. Ela continuou com o tratamento. Enrolou o tornozelo com uma faixa. Beto a fitava de um modo quase imperceptível. Era inquietante a forma como ela o via, como o enxergava através dos disfarces que ele vestia.
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