26 de janeiro
Foi um daqueles dias, em que de algum jeito, mesmo as vezes sendo meio patético, marca pra sempre. Como se por um instante a frenesi descontrolada em que vivemos pudesse desacelerar e dar lugar a uma outra atmosfera.
Há dias que não são importantes pelo que acontece, e sim pelo que revelam. Não são as cenas, os gestos ou as falas que ficam, mas a sensação de pertencimento, mesmo que disfarçada de banalidade.
Certos momentos não duram porque foram grandiosos, duram porque tocaram em algo essencial.
A memória não guarda tudo, preserva o que importa: o sentimento de que, por um breve instante, fomos nós mesmos sem medo do julgamento.
E por mais que o mundo continue rodando em sua pressa, há instantes que recusam o esquecimento. Não porque foram perfeitos, e porque carregavam uma verdade íntima. Como se nos dessem, sem saber, uma pequena prova de que, apesar de tudo, viver ainda vale a pena.
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A jornada diária estava apenas no começo.
Na mesa do café da manhã teve pressa. Com sua habitual animação, serviu um copo de suco de laranja direto da jarra tomando tudo em só gole. “Beijo. Beijo. Tô atrasada.” disse sem nem olhar para mãe e o irmão que estavam a mesa. Gostava daquele ritmo acelerado, dessa sensação de que tudo estava em movimento. Era como se as pessoas ao seu redor também fossem impulsionadas pela sua energia. Alguns segundos depois, já estava em cima da bicicleta. Adorava aquele momento de transição. O vento no rosto, a liberdade. Pedalar pela ciclovia era um prazer. Um momento só dela. O ar fresco e o cenário de sempre, com as árvores balançando, os prédios surgindo à medida que ela avançava, a cidade tomava forma diante dos seus olhos.
Ao chegar à academia, já saia distribuindo cumprimentos amigáveis com os frequentadores conhecidos. Acenos rápidos, sempre com aquela vibração e empatia que a tornava impossível de passar despercebida. Subiu as escadas para a área de treino, já sorrindo e cumprimentando os conhecidos. Após o término do treino matinal, fazia questão de continuar na rotina cheia de energia, reservando um pouco do entusiasmo para aprimorar os conhecimentos linguísticos. Gostava de manter a mente afiada. Frequentemente reservando algumas horas para as aulas de inglês à distância. A aula online exigia foco. O aprendizado nunca fora nenhum enigma para ela no entanto. Pelo contrário, ela gostava de desbravar novos tópicos, melhorar sua fluência e sentir-se preparada para qualquer desafio que surgisse. Mesmo à distância, sentia-se conectada com o conteúdo. Enquanto assistia às explicações no vídeo, ela tomava notas rapidamente, participando ativamente das atividades lecionadas.
Com o fim da aula de inglês, não teve tempo nem de respirar antes de checar o relógio. Já estava quase na hora de buscar a caçula na escola. Ela guardou os materiais, tomou um gole de água e saiu em direção à escola. No horário da saída, avistou o irmão do portão com a mochila maior que ele nas costas, o sorriso aberto ao vê-la, contando animado sobre o recreio, os amigos e a novas atividades que a professora havia passado para a ligação de casa. Que ela o ajudava a organizar os materiais sobre a mesa e sentar ao lado dele para incentiva-lo com o aprendizado. Ao cair da tarde, com o irmão distraído com o videogame, finalmente um tempinho livre. Reservado para leitura ou simplesmente ouvir um pouco de música, permitindo a si mesma quebrar o ritmo — nem que seja por um segundo.
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A rotina da semana era sempre a mesma: vestir a roupa de treino, enquanto a mente ainda divagava entre o sonho que já começava a se apagar, café apressado e, logo em seguida, ir para a academia.
A ciclovia seguia relativamente livre naquele principio tranquilo de manhã, quando alguém, que parecia ter sido conjurada pelo próprio ar, apareceu do nada. Em um gesto de puro reflexo, ela puxou o guidão, a bicicleta inclinou e, derrapou levemente pela pista até que por fim, providencialmente parou pouco antes de se chocar contra o estranho, que sequer desviara um milímetro antes de ser atingido.
— Puxa vida, Beto! A culpa foi sua. Podia ter avisado antes de entrar na frente desse jeito — Íris atacou ainda se recuperando do susto, ao reconhece-lo.
O rosto escondido atrás dos óculos acrílico de lentes reluzente e do boné, regata branca, as mãos enfiadas dentro dos bolsos da jaqueta leve com o zíper aberto.
— Eu... queria te ver.
— Por causa de quê?
Respondeu tímida, em exposição indireta de que ele queria propor algo a ela.
— Perguntar se aceitava sair para um passeio, que tal? — ele sorriu meio de canto.
— Eu e você? Tipo só nós dois?
— Tá afim ou não?
— Não claro, é que... se não percebeu, é que desde que desapareceu, muita coisa rolou.
— Como por exemplo?
— Eu e o Iago.
— O que? Estão juntos. Pode falar. Vai fala.
— Daqui uma semana faz um mês — completou Íris.
— Tendi. Loucura minha ter vindo aqui.
— Loucura total.
— Já é. Na real... você e ele se merecem. Eu é que viajei. Sou um vacilão mesmo — ele deu um sorriso pequeno, depois se virou de costas, indo embora sem uma despedida formal.