1 - Valentina
Mentir não é exatamente o meu talento.
Na verdade, eu sou horrível nisso. Minha cara entrega tudo. Fico vermelha, falo rápido demais, mexo no cabelo como se tivesse piolho. Mas minha amiga Yasmin tava ali do meu lado, deitada na minha cama de casal como se morasse aqui, me olhando com aquela cara de quem já viu e fez pior.
— Amiga, é só dizer que vai dormir na minha casa. Ele nem vai conferir. — Ela mastigava chiclete como quem mastiga paciência.
— Você não conhece meu pai. Ele tem radar de mentira. Vai ligar pra tua mãe às três da manhã só pra checar.
— Então fala que vai pro retiro espiritual da escola. — Ela riu sozinha. — Já usou essa?
— Usei quando a gente foi na rave em Paraty.
— Tá vendo? Tu mente sim.
Me olhei no espelho. Tava linda. Vestido curto, maquiagem no ponto, cabelo escovado igual comercial de shampoo. Nada em mim dizia “retiro espiritual”. Tudo em mim gritava: “vou fazer besteira.”
— Eu não devia ir — falei, só pra dizer. Porque lá no fundo, eu já sabia que ia.
— Tina, qual é, a gente só vai dar um rolê. Só ver o movimento, dançar um pouco. Tu vai deixar a vida passar por medo do seu pai? Tá na hora de viver. Vai ser só uma noite. Tu volta inteira.
Yasmin falava como se fosse uma profeta do caos.
E eu, burra que sou, acreditei.
A verdade é que eu não fazia ideia de que naquela noite eu ia perder mais do que a virgindade. Ia perder o juízo, a compostura e nove semanas depois o teto.
Mas naquela hora, tudo que eu pensei foi:
“f**a-se. Eu vou.”
O carro parou no pé do morro. O motorista do Uber nem disfarçou o olhar de julgamento.
— É aqui mesmo? — perguntou, olhando pra gente pelo retrovisor como quem oferece carona pro abismo.
— É, moço. Pode deixar aqui. — Yasmin sorriu, toda tranquila, como se fosse só uma ida ao shopping.
Eu desci como quem pisa na lama de salto. Literalmente. Um passo e meu Louboutin já tava com a ponta manchada. O cheiro era uma mistura de churrasquinho, maconha e desespero. As vielas subiam como serpentes iluminadas por luzes coloridas, e o som grave da batida já fazia o chão vibrar.
— Amiga… — eu sussurrei, agarrando o braço da Yasmin — a gente vai morrer aqui.
— Cala a boca. Tu tá viva demais pra quem tá sendo dramática.
— Sério, olha isso. Tem gente vendendo cerveja num balde. Um. Balde. — apontei como se tivesse visto tráfico de órgãos.
— Isso é cultura, princesa. Larga de ser fresca. Olha em volta. Tá cheio de mina arrumada igual tu.
Ela tava certa. Tinha mesmo. Meninas com short colado, cílios do tamanho de vassoura, cropped brilhando mais que meu futuro. Mas mesmo assim, eu não conseguia me sentir… segura. Ou pertencente. Tudo parecia improvisado, suado, barulhento demais. A batida do funk fazia meu peito vibrar, mas não no bom sentido, era como se meu coração estivesse tentando fugir dali.
Passamos por uns caras parados na entrada do beco, armados. Um deles sorriu pra mim com um cigarro no canto da boca e dentes de ouro que refletiam a luz do poste.
— Boa noite, princesa.
— Meu Deus — sussurrei pra Yasmin. — Ele me chamou de princesa. Eles sabem que eu sou de fora. Eles vão me sequestrar.
— Ele te chamou de princesa porque tu tá uma gata, não porque ele é da CIA.
— Eu quero ir embora.
— Tu sempre quer. Até gostar.
Respirei fundo. Senti cheiro de suor, cerveja quente e uma coisa amarga que eu nunca soube identificar. O morro parecia vivo, pulsante. E eu, branca, rica, arrumada demais, parecia um pixel fora da imagem.
Mas eu continuei andando. Porque, no fundo, uma parte de mim - a parte que eu fingia ignorar - queria aquilo. Queria ver. Queria sentir.
Queria ele. Sem saber quem ele era, ainda.
O som tava tão alto que eu sentia minhas costelas tremendo. A batida do 150 BPM parecia uma martelada contínua na minha sanidade, e o DJ gritava no microfone como se a gente fosse surdo.
— FAZ BARULHO PRO MORRO DA MARÉ, PORRAAAA!
Todo mundo gritou. Menos eu. Eu só pisquei devagar, sentindo o eco da palavra “p***a” vibrar até na minha alma.
— Isso aqui é insanidade coletiva — falei no ouvido da Yasmin.
Ela já tava dançando, rebolando como se tivesse nascido praquilo. Um copo vermelho na mão, sorriso no rosto, e zero medo de ser feliz. Eu? Eu parecia uma estátua plantada no meio da favela.
— Bebe. — Ela me entregou um copo com um líquido rosa que parecia o sangue da Barbie.
— O que é isso?
— Coragem líquida. Vai, Tina. Só um gole. Tu vai se soltar.
Olhei o copo como se fosse veneno. Mas bebi. Azedo, doce e queimava. Era horrível. Eu queria mais.
O segundo gole desceu mais fácil. No terceiro, o barulho já não parecia tão agressivo. As luzes piscando deixaram de ser irritantes e viraram meio… hipnóticas. E quando Yasmin me puxou pra pista, eu fui.
A pista era só um pedaço de chão nivelado com caixas de som do tamanho de geladeiras. A galera dançava colada, suada, envolvida. Não tinha espaço pra frescura. Um cara passou por mim e esbarrou. Me encarou. Sorriu. Mostrou a língua com piercing.
— Tu é nova por aqui, né?
— Não.
— É sim. Tá com cara de quem nunca dançou um proibidão.
— Tô com cara de quem nunca pisou num banheiro público, isso sim — resmunguei, mas ele nem ouviu. Já tinha sumido na multidão.
Mais um gole. O copo agora tava leve. E minha cabeça também. Comecei a mexer os ombros. Só um pouquinho. Bem discreta. Quase imperceptível.
— ELA TÁ DANÇANDO! — Yasmin gritou, debochada.
— Cala a boca. Eu tô só tentando não parecer um poste.
Aos poucos, meu corpo começou a acompanhar o ritmo. Devagar, inseguro, mas livre. Eu ainda odiava o chão pegajoso, o cheiro de suor barato e o cara sem camisa que passou com uma cobra no pescoço.
Mas tinha algo ali. Algo vibrante. Algo… vivo.
O tipo de vida que sempre me mantiveram longe.
E no meio disso tudo, entre um gole e outro, uma batida e outra, eu senti um arrepio que não veio do vento, veio de um olhar.
Mas isso… eu ainda não sabia.