O copo tava quase vazio e minha dignidade também. Eu já tava dançando mais do que deveria, suando mais do que queria, e fingindo menos do que costumava. A música trocou pra uma daquelas que todo mundo canta o refrão junto, gritando. Eu, claro, só mexia os lábios fingindo que sabia.
Foi então que o clima mudou.
Um dos caras que tavam encostados na parede, com rádio na cintura e cara de poucos amigos, se aproximou. Grande, tatuado, com um colete tático que eu tinha certeza que não era da polícia. Chegou perto da Yasmin e falou algo no ouvido dela.
Ela arregalou os olhos, depois sorriu. Tipo criança que foi chamada pra brincar com o Papai Noel.
— Amiga, cê não vai acreditar. — Ela agarrou meu braço. — Convidaram a gente pro camarote do chefe.
— Do quê? — perguntei, tentando ouvir direito.
— Do JL, garota! O dono do morro!
— O dono do morro?! — Minha voz saiu mais aguda do que o normal. — A gente vai subir pra um camarote… de traficante?
— Ele é mais do que isso, Tina. Ele é tipo… o rei daqui. Se ele chamou, é porque te notou. Tu chamou atenção.
— Eu não quero atenção! Eu quero ir embora com todos os meus órgãos internos intactos!
Mas ela já tava me puxando, feliz da vida, como se tivesse sido convidada pro camarote da Anitta.
Atravessamos a multidão, guiadas pelo cara do rádio, que tinha uma arma do tamanho da minha autoconfiança enfiada na calça. Subimos por uma escada estreita de concreto, que dava pra uma espécie de laje com uma vista privilegiada do baile. Ali em cima, o som era um pouco mais baixo, o ar um pouco mais respirável. Mas os olhares… esses eram pesados.
Tinha mais dois caras armados na entrada. Um deles me encarou de cima a baixo, depois falou pro outro:
— Essa aí não é daqui, não.
— Percebeu pelo salto ou pelo medo no olho? — o outro riu.
— Ambas as opções.
Minha espinha gelou.
— Yasmin, sério, vamos descer. A gente vai morrer.
— Cala a boca, garota. Aproveita. Ele mandou chamar a gente. Tu sabe o que isso significa? Ele viu a gente lá embaixo. Quer conversar. — Ela riu. — Ou outra coisa.
Meu estômago virou.
Não era só medo. Era o tipo de medo que vinha embrulhado com curiosidade. Um receio salgado, com um toque de adrenalina.
E foi aí que eu senti.
Um olhar pesado e quente cortando o ar como faca. Virei o rosto devagar. E vi ele.
Provavelmente o JL. Sentado num sofá improvisado de couro, cigarro entre os dedos, uma corrente de ouro grossa no pescoço. Calmo, impassível. Como se o mundo ao redor fosse barulho demais e ele, silêncio puro.
E ele tava me olhando. Só a mim. Sem sorrir. Sem piscar. Como se já soubesse o que ia acontecer. E eu soube.
A merda ia começar ali.
Ele continuava me olhando. Não era o tipo de olhar que passa reto, era o tipo que invade, sonda, desmonta.
Eu queria virar o rosto. Correr. Gritar. Vomitar, talvez.
Mas fiquei ali. Plantada. Fingindo firmeza com o copo vazio na mão e o coração me batendo nas orelhas.
— Tu é metida, né? — ele disse, sem levantar. A voz era grave, arrastada, carregada de fumo e comando. Demorei dois segundos pra perceber que era comigo.
— O quê?
— Tava lá embaixo com aquela cara de nojo. Achando que tá acima de tudo. Mas subiu. Tá aqui. Tá bebendo. Tá dançando. — Ele apagou o cigarro numa latinha. — Eu vejo tudo.
— Eu não tô metida — retruquei, tentando fazer a voz soar firme. — Só… não tô acostumada com esse tipo de lugar.
— Esse tipo de lugar. — Ele repetiu, como se saboreasse a frase. — A favela. O morro. O povo.
Engoli seco.
— É. Isso.
Ele fez um gesto quase imperceptível com a mão. Um dos caras do camarote apareceu com dois copos. Entregou um pra ele, outro pra mim. O líquido era âmbar. Forte. Cheirava a “diz adeus pro controle”.
— E por que veio?
— Eu… — Olhei pra Yasmin, que já tava entretida conversando com outro cara, rindo, dançando. — Curiosidade. Acho.
— Curiosidade mata. — Ele encostou o copo nos lábios, mas não bebeu. Me olhou por cima da borda. — Mas às vezes vale a pena.
— Eu não devia estar aqui. — Eu disse isso pra mim, mas saiu alto demais.
— Não devia mesmo. — Ele deu um leve sorriso, quase invisível. — Mas já tá.
Tomei um gole. Queimou descendo, mas ajudou a manter a pose.
— Você é o JL? — perguntei.
— Sou.
— Todo mundo aqui te obedece?
— Todo mundo aqui me deve. Quem deve, respeita. Ou some.
— Legal — murmurei, o sarcasmo escorrendo.
— E tu? Me deve alguma coisa?
— Não que eu saiba.
Ele deu um passo na minha direção. Não ameaçador. Só… presente demais. Como se ocupasse mais espaço do que o corpo dele permitia.
— Ainda.
Meu coração parou por meio segundo. Depois correu feito condenado.
E ali, com a arma dele visível na cintura, com o colar brilhando no pescoço, com o mundo girando ao som de batidas sujas, eu soube de uma coisa:
Ia dar merda. Mas eu não dei um passo pra trás. Só dei um gole e fiquei.