3 - Valentina

970 Words
O copo já tava vazio de novo. E eu também. Vazia de argumento, de noção, de certeza. A música batia mais lenta agora, o tipo de funk grave e arrastado que fazia a pele arrepiar. A pista lá embaixo ainda fervia, mas ali em cima o mundo parecia ter diminuído. Só ele, eu… e meu coração socando minhas costelas como se quisesse fugir antes de mim. — Quer descer? — ele perguntou, olhando pra pista. — Você quer? — devolvi, automática, sem saber de onde veio a ousadia. Ele riu. Um som rouco, curto, meio incrédulo. — Tu acha que eu danço? — Não sei. Você parece o tipo que só observa. — E tu parece o tipo que nunca desce. Só sobe. O jeito que ele falou “sobe” me deu um arrepio. Ele não tocou em mim. Não chegou perto demais. Só olhou. Como se tivesse o mapa inteiro da minha alma tatuado na íris. — Vamo dar um rolê. — Ele disse. — Pra onde? — Cê vai ver. Eu devia ter dito não. Devia ter inventado qualquer desculpa. Mas meus pés foram na frente da minha consciência. Ele desceu os degraus do camarote, e eu fui atrás. Um dos vapores abriu espaço no meio da multidão como quem separa o mar. Gente dançando, se esfregando, rindo, passando com copo, com baseado, com garrafa. JL andava como se nada disso encostasse nele. Intocável. Intenso. A gente parou perto de um ponto onde a batida era mais baixa e a luz piscava menos. Ele virou de frente pra mim. — Tá gostando? — Do quê? — Do que tu nunca viu antes. Olhei em volta. Eu podia mentir. Dizer que não. Que tava odiando. Mas seria mentira. E ele ia saber. — É… diferente. — É mais real do que o mundo lá de baixo. — Você conhece o mundo lá de baixo? — Conheço gente que acha que vive nele. A resposta me acertou como uma bofetada elegante. — E você acha que eu sou assim? — Tu veio de salto fino e perfume caro pra dançar. Tá tentando provar o quê? Abri a boca, mas não respondi. Porque a verdade é que nem eu sabia. — Tu me olhou — ele disse. — Lá de cima. Com aquele olhar de nojo que patricinha tem. Mas ficou. Por quê? — Porque… — Respirei fundo. — Porque você me olhou de volta. Silêncio. Um silêncio que durou o suficiente pra parecer perigoso. Ele chegou mais perto. O suficiente pra eu sentir o cheiro do cigarro misturado com perfume amadeirado barato. As luzes piscavam devagar agora, como se o mundo estivesse em câmera lenta. — Tu sabe dançar? — ele perguntou. — Não. Mas finjo bem. Ele estendeu a mão e eu burra, bêbada, e um pouco hipnotizada, segurei. A mão dele era quente, firme. Segurou a minha como se já fosse dele. E naquele pedaço suado de chão, com o mundo girando num ritmo sujo e lento, eu dancei. Com o dono do morro. Com o perigo. Com o começo da minha desgraça. A música já não era mais o que importava. Nem as luzes, nem a galera suando ao nosso redor. Era só ele. O jeito que me olhava como se enxergasse por dentro. O calor da mão dele na minha cintura. A batida do meu coração fora de compasso. A dança foi virando algo menos sobre passos e mais sobre espaço. Ou a falta dele. — Tá ficando quente aqui — ele murmurou, perto do meu ouvido. — E o problema é meu? — Pode ser. — Ele sorriu de canto. — Ou pode ser nosso. Antes que eu respondesse, ele puxou minha mão de novo. Saiu me guiando por entre as pessoas com a naturalidade de quem já nasceu no meio do caos. Atravessamos um corredor lateral, meio escuro, onde a música era só um eco distante. Subimos uma escada apertada, com paredes de tijolo à mostra. Tinha um portão enferrujado, dois moleques sentados fumando, e mais um beco. Lá em cima, silêncio. Só a cidade respirando lá embaixo. Ele encostou na parede, acendeu outro cigarro, e me olhou como se já soubesse que eu não ia embora. — Vai fugir agora? — ele perguntou, soltando a fumaça devagar. — Eu deveria. — Então foge. Eu fiquei. Ele se aproximou. Devagar. Como se cada passo fosse uma pergunta muda. Quando ele chegou perto o suficiente, encostou o cigarro num tijolo e largou ali, ainda aceso. As mãos tocaram minha cintura com firmeza, mas sem pressa. O rosto quase colado no meu, mas sem encostar. — Se não quiser, fala agora — ele disse, voz baixa, densa. Mas eu não disse nada. Eu beijei ele. Ou ele me beijou. Não sei. Só sei que, quando aconteceu, foi como abrir uma caixa que devia ter ficado trancada. Beijo quente, urgente, cheio de raiva disfarçada de t***o. Me prensei contra a parede e senti o corpo dele inteiro colado no meu. As mãos firmes, mas respeitosas. A boca dele sabia o que fazia. Me perdi por um segundo. Dois. Quando percebi, minha mão já tava na nuca dele, e a dele subindo pela lateral da minha coxa. — Cê quer ir pra minha casa? — ele perguntou, entre um beijo e outro. A voz era um sussurro rouco no meu ouvido. Meu corpo queria. Minha boca também. Mas minha cabeça… minha cabeça gritava. Você tá ficando louca. Você nem sabe o nome completo dele. Ele tem uma arma. Ele manda em um morro. E mesmo assim… — Quero — eu disse. Baixinho. Sem força. Quase arrependida antes mesmo de terminar de falar. Ele sorriu. Aquele sorriso perigoso, meio satisfeito, meio predador. — Então vamo. E foi assim que eu virei estatística. E o começo do fim começou.
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