Narrado por Rafael
Ela era insana. Corajosa. Brilhante. E absolutamente imprudente. A notícia de que Helena havia protocolado a denúncia contra Leonardo me atingiu como um raio, reverberando em cada fibra do meu ser. Meu primeiro e mais primitivo instinto foi correr até ela, protegê-la com meu próprio corpo, trancá-la em casa se fosse preciso, longe da mira dos perigos que essa atitude ousada certamente evocaria. Uma onda de pânico gelado se espalhou pelo meu peito, seguida de uma admiração quase dolorosa pela sua audácia. Ela não era apenas uma advogada; ela era uma força indomável da natureza, e essa constatação me aterrorizava tanto quanto me fascinava.
Mas não podia. E a frustração de não poder ser o cavaleiro de armadura brilhante que meu coração desejava ser era um tormento.
Helena não era uma mulher que se deixava proteger facilmente, muito menos uma que aceitaria ser enjaulada, por mais dourada que fosse a gaiola. Ela lutava. Com uma ferocidade silenciosa, uma determinação que se manifestava em cada traço do seu rosto, em cada músculo tenso do seu corpo esguio. E, por isso mesmo, eu sabia que não bastava protegê-la. Eu precisava lutar ao lado dela. Ombro a ombro, no mesmo campo de batalha, com a mesma intensidade e a mesma fúria. A ideia de que ela enfrentaria isso sozinha era insuportável.
De volta à delegacia, o ar parecia mais denso, carregado de uma tensão quase palpável. A adrenalina pulsava em minhas veias, um tambor constante que ecoava o ritmo acelerado do meu coração. Chamei Davi, meu parceiro, um dos poucos em quem ainda depositava minha total confiança em um ambiente onde a lealdade era uma moeda rara e muitas vezes falsa. Seus olhos, sempre perspicazes, captaram a gravidade da minha expressão antes mesmo que eu proferisse uma palavra.
— Temos uma guerra nas mãos — declarei, minha voz baixa e rouca, carregada de uma urgência que não deixava margem para dúvidas. — E vamos jogar sujo, se for preciso.
A frase não era uma ameaça vazia; era um juramento. Uma promessa solene de que ultrapassaríamos qualquer limite, que nos aprofundaríamos nas sombras se isso significasse proteger Helena e desmascarar a verdade. A justiça, para mim, nunca fora um conceito abstrato, mas naquele momento, ela se materializava no rosto dela, na sua vulnerabilidade oculta e na sua inabalável coragem.
Montamos uma equipe discreta, um punhado de homens e mulheres em quem podíamos confiar cegamente, cujos olhos não trairiam nossos movimentos e cujas mãos seriam firmes. A cada passo, a cada descoberta, a teia de intrigas e corrupção parecia se expandir, revelando tentáculos que se estendiam muito além do que imaginávamos. Recolhemos provas digitais, mergulhando no labirinto de dados que a vida moderna deixava para trás. Cruzamos dados do celular de Leonardo, sua movimentação bancária, cada transação, cada ligação, cada mensagem, cada migalha de informação que pudesse nos levar ao cerne da podridão.
Tudo indicava que ele tinha um protetor maior por trás, uma sombra influente que o mantinha seguro e impune. Um figurão da política, a figura mais perigosa de todas, alguém que possuía o poder de mover montanhas e de esmagar vidas com um simples aceno. Aquele tipo de conexão que podia derrubar uma cadeia de corrupção inteira, expondo a podridão que se enraizava nas mais altas esferas do poder. Mas a ironia c***l era que essa mesma conexão, essa mesma revelação monumental, podia nos enterrar.
Podia nos custar tudo, inclusive nossas vidas. O risco era gigantesco, a aposta, altíssima. Mas recuar não era uma opção. Não para mim. E, eu sabia, não para Helena.
A noite caiu, e com ela, a escuridão trouxe consigo um pressentimento funesto. Meu celular vibrou, a tela iluminando meu rosto na penumbra do carro. Uma mensagem anônima, sucinta e arrepiante:
“Hoje era pra ser o fim dela. Proteja-a. Ou ela será o próximo corpo.”
Um calafrio percorreu minha espinha. Era uma ameaça direta, crua, um aviso velado de que o perigo estava mais perto do que imaginávamos. E então, o telefonema que eu temia: invadiram o apartamento da Helena.
Meu coração deu um salto, gelou, e a única coisa que me impediu de sucumbir ao pânico absoluto foi a lembrança: ela não estava lá. Ela estava comigo. Em meu apartamento, segura, por enquanto. Mas a imagem do que poderia ter acontecido se ela estivesse sozinha, se o destino tivesse sido mais c***l, me sufocava.
Corremos até o local, a sirene do carro rasgando o silêncio da noite. A cena era um pesadelo materializado. A porta arrombada, pendurada nas dobradiças como um convite mórbido. O interior do apartamento, um caos devastado. Roupas rasgadas, espalhadas pelo chão como trapos, cada peça um símbolo da profanação da sua i********e. Documentos roubados, a prova de que não era apenas um ato de intimidação, mas um saque direcionado, em busca de algo específico, algo que talvez pudesse incriminá-la.
O sofá onde havíamos compartilhado a noite anterior, um breve refúgio de paz em meio à tempestade, estava manchado. Marcas escuras de sangue, um vermelho vívido que contrastava horrivelmente com o tecido claro. Sangue de aviso. De ameaça. Uma mensagem brutal, sem palavras, mas com um impacto devastador. Meus músculos enrijeceram, meu maxilar travou. A raiva borbulhava em meu peito, fervendo.
Helena tremia ao meu lado, um tremor quase imperceptível que eu só notava por estar tão sintonizado com cada nuance dela. Mas ela não disse nada. Seus olhos estavam secos, fixos nas marcas de sangue, na devastação ao seu redor. A ausência de lágrimas era mais assustadora do que qualquer choro. Era um sinal de que a dor estava se transformando em algo mais, algo mais profundo e perigoso. Seu peito arfava de raiva contida, uma fúria silenciosa que prometia explosão.
— Isso foi por sua causa — ela finalmente disse, sua voz um sussurro rouco, quase inaudível, mas carregado de uma verdade amarga. — Eles estão nos observando.
A acusação, embora carregada de dor, não era para me ferir. Era uma constatação fria, um lembrete do perigo iminente. E, no fundo, eu sabia que ela estava certa. A denúncia contra Leonardo a havia colocado na mira, e eu, ao me aliar a ela, me tornara um alvo junto.
— E nós vamos observar de volta — respondi, minha voz firme, um contraponto à sua vulnerabilidade momentânea. A promessa era um escudo, uma barreira que eu tentava erguer entre ela e a escuridão.
Ela me olhou, e naquele instante, algo mudou entre nós. Um silêncio carregado de significados se instalou, preenchendo o espaço entre nossos corpos. Seus olhos, antes cercados por uma frieza protetora, estavam agora abertos, vulneráveis. Percebi que Helena já não era a mulher fria e distante do início do caso. As máscaras, tão cuidadosamente construídas ao longo dos anos para protegê-la das feridas do mundo, estavam se desprendendo, uma a uma. Ela estava se despindo das camadas de autodefesa, enfrentando os próprios fantasmas que a assombravam desde a infância. E eu, ao vê-la tão exposta, tão humana, compreendi que também precisava encarar os meus. Os medos, as hesitações, as cicatrizes que carregava.
Porque aquilo não era mais apenas um caso a ser resolvido, uma investigação rotineira. Era pessoal. Era guerra. Uma batalha que se desenrolava não apenas nos tribunais e nas ruas escuras, mas também dentro de nós. E nós dois estávamos no meio do campo de batalha, com a poeira e o sangue do confronto nos atingindo.
Mais tarde, de volta ao meu apartamento — agora o único lugar seguro, um refúgio improvisado contra o caos exterior —, a exaustão nos abraçou como um manto pesado. Caímos no chão da sala, cercados por pastas recheadas de provas, garrafas vazias de vinho que haviam servido para atenuar a tensão, e a adrenalina que ainda zumbia em nossos ouvidos, um lembrete constante do perigo iminente.
A luz fraca da sala, combinada com a penumbra da noite lá fora, lançava sombras dançantes sobre nossos rostos. Ela me fitou, seus olhos ainda carregados de cansaço, mas com uma firmeza que me surpreendia a cada dia. Havia algo inabalável nela, uma rocha em meio ao turbilhão.
— Rafael, se algo acontecer comigo... — Sua voz era um fio tênue, mas a seriedade de suas palavras perfurou o cansaço.
— Cala a boca — interrompi, minha voz mais dura do que o pretendido, mas impulsionada por uma negação visceral. A simples ideia de algo acontecer a ela era insuportável, um pensamento que eu me recusava a dar voz.
— Estou falando sério — ela insistiu, sem desviar o olhar. A coragem para falar sobre a própria mortalidade diante de tal ameaça era um testemunho da sua força. — Se eu cair, você precisa seguir com isso. Você precisa garantir que a verdade venha à tona.
Prometa-me.
Aquelas palavras me atingiram com a força de um soco. A imagem dela caindo, a ideia de continuar sem ela, era um cenário que eu me recusava a contemplar. A dor da possibilidade era excruciante.
Me aproximei, a gravidade do momento nos envolvendo. Minhas mãos, grandes e firmes, seguraram seu rosto, os polegares traçando delicadamente a linha dos seus ossos da face. Nossos olhos se encontraram, e no silêncio que se seguiu, senti a conexão que havia se aprofundado entre nós, um laço invisível, mas inquebrável, forjado no fogo do perigo e da confiança mútua.
— Nada vai acontecer com você — afirmei, minha voz baixa, mas carregada de uma convicção feroz. Era uma promessa, um juramento, um decreto. — Não enquanto eu estiver respirando. Não enquanto eu tiver força para lutar.
E então, ela chorou. Pela primeira vez desde que a conheci, as lágrimas escorreram livremente pelo seu rosto, um rio de emoções contidas que finalmente encontravam sua vazão. Eram lágrimas de medo, de alívio, de uma vulnerabilidade que ela raramente permitia a si mesma. Eram lágrimas de uma mulher que, apesar de toda a sua força, estava se permitindo ser frágil, apenas por um instante, nos meus braços. E eu a abracei, apertando-a contra o meu peito, sentindo o calor do seu corpo, a maciez dos seus cabelos contra o meu ombro, o tremor do seu choro que se tornava o meu.
Naquela noite, fizemos amor. Não foi apenas físico; foi uma comunhão de almas exaustas, de corpos que buscavam consolo e reafirmação em meio ao caos. Foi um ato de desafio contra a morte, contra o medo, contra a incerteza do amanhã. Fizemos amor como se o mundo pudesse acabar ao amanhecer, como se cada toque, cada beijo, cada suspiro fosse o último.
Foi um ato lento, cada movimento deliberado, cada carícia uma exploração profunda dos nossos corpos e das nossas almas. Intenso, a paixão se manifestando em cada célula, em cada nervo exposto. Sem pressa, saboreando cada segundo, estendendo o tempo, tentando parar o relógio que corria em nossa direção. Como se quiséssemos gravar um no outro a única certeza que tínhamos: a de que existíamos, naquele momento, um para o outro, em meio à tempestade.
Nossos corpos se entrelaçaram, cada toque uma promessa, cada beijo um juramento silencioso. A sensualidade contida que sempre existira entre nós, um fio invisível que nos conectava, finalmente se desfez em uma entrega total. Nossos dedos percorriam a pele um do outro, mapeando cada curva, cada cicatriz, cada linha, como se estivéssemos desenhando um mapa para a sobrevivência, um refúgio um no outro.
Os sussurros, as respirações ofegantes, os gemidos abafados eram a única melodia em nosso mundo temporariamente suspenso.
Nossos lábios se encontraram e se separaram, apenas para se reencontrarem com mais intensidade, como se buscassem absorver a essência um do outro. A tensão crescente que nos cercava o dia todo se dissipava naquele ato de união, substituída por uma paz temporária, uma bolha de serenidade em meio à tempestade.
Os laços íntimos que havíamos construído, tecidos com confiança, respeito e uma admiração mútua, se solidificaram. Não era apenas atração física; era uma conexão profunda, uma compreensão tácita que transcendeu as palavras. Nossos corpos falavam uma linguagem própria, uma que só nós dois entendíamos. Cada movimento era uma resposta, cada toque uma pergunta e uma afirmação. A forma como ela se aninhava em meus braços, a maneira como meus dedos se enroscavam em seus cabelos, tudo era uma expressão das nuances emocionais que nos ligavam.
A verdade estava vindo. Sentíamos isso no ar, na tensão que vibrava em nossos corpos. E com ela, o caos. Mas naquela noite, naquela cama improvisada no chão, sob o olhar das estrelas invisíveis, estávamos juntos. E isso era tudo o que importava.