O silêncio era absoluto.
Não o silêncio comum, mas aquele que parece devorar o som — denso, vivo, pulsante.
Elena abriu os olhos.
Estava caída no chão da sala, o rosto frio contra a madeira.
A vela apagada ao lado.
A casa envolta em penumbra cinzenta, iluminada apenas pela luz fraca da lua atravessando as janelas.
Demorou alguns segundos para perceber que o relógio havia parado novamente.
3:42.
Tentou se levantar, mas o corpo pesava.
Os joelhos doíam.
A mente latejava.
O ar tinha cheiro de ferro e **.
Por um instante, acreditou que tudo havia sido sonho.
Até ver o chão.
A rachadura aberta durante a madrugada ainda estava lá, estreita, mas real.
Da f***a subia um leve vapor, frio, quase imperceptível.
E no centro dela, um ponto escuro brilhava.
Elena ajoelhou-se.
Era metal.
Algo pequeno, enterrado entre as tábuas.
Puxou com cuidado.
O objeto veio coberto de poeira e ferrugem.
Quando limpou, o formato ficou nítido.
Uma chave.
O coração acelerou.
O mesmo metal, o mesmo peso, o mesmo som.
A chave da cela.
Ela a segurou firme.
O toque era familiar, quase íntimo.
O frio do metal parecia reconhecê-la.
Fechou os olhos, e por um instante, sentiu o ferro das algemas nos pulsos novamente.
O chão estalou.
Elena abriu os olhos.
A rachadura havia desaparecido.
O piso estava intacto.
Ficou de pé, trêmula.
A casa inteira estava imóvel, mas algo nela havia mudado.
O ar era outro.
Mais espesso.
Mais velho.
Subiu as escadas devagar, a chave presa entre os dedos.
O corredor estava mergulhado em sombras.
Os retratos observavam.
O de Sarah, coberto pelo lençol, parecia mais inchado, como se a pintura crescesse sob o tecido.
Elena passou direto.
Entrou no quarto.
As cortinas estavam abertas, a luz da lua banhando o espelho rachado.
As marcas de mãos continuavam na parede, mas agora havia algo novo — símbolos riscados à unha, idênticos aos do diário de Sarah.
Ela guardou a chave no bolso.
Tentou convencer-se de que não significava nada.
Mas o peso dela era um lembrete constante: a cela existia.
Em algum lugar, ainda estava lá.
Sentou-se na cama.
O som distante do vento atravessava as frestas.
E então, veio o barulho.
Baixo, metálico.
Um trinco girando.
Elena se levantou devagar.
O som vinha do final do corredor.
Do quarto de Sarah.
Aquele que sempre ficava trancado.
O ar esfriou.
O corredor escureceu mais.
O relógio voltou a marcar 3:42.
Elena avançou.
Cada passo ecoava como se fosse o último.
Quando chegou diante da porta, viu o impossível.
A fechadura girava sozinha.
Lenta.
Precisa.
Até o estalo final — o clique seco do destrancar.
Elena prendeu a respiração.
A maçaneta desceu sozinha, e a porta se abriu alguns centímetros.
Do interior, um vento gelado soprou.
Cheiro de terra, ferrugem e cera antiga.
Ela empurrou a porta com a ponta dos dedos.
O quarto estava intacto, mas não parecia o mesmo.
As cortinas se moviam devagar, embora não houvesse vento.
As paredes, cobertas de símbolos apagados.
No centro, uma cama antiga, coberta por um lençol branco.
Elena entrou.
A madeira gemeu sob seus pés.
O lençol tremia, sutilmente.
Deu um passo mais perto.
O som de respiração veio debaixo do tecido.
Parou.
O coração batia tão forte que doía.
A chama da vela que segurava quase se apagou.
Com a mão trêmula, puxou o pano.
Debaixo, nada.
Apenas o colchão antigo, manchado de umidade.
Mas o som de respiração continuava.
Agora, atrás dela.
Elena se virou.
O espelho do quarto — grande, oval, moldura dourada — estava coberto por um pano cinza.
O pano tremia como se algo respirasse de dentro.
Ela se aproximou devagar.
— Sarah?
Nada respondeu.
A chama da vela oscilou.
O pano se moveu mais forte.
Algo batia do outro lado, lento, ritmado, como um coração.
Elena ergueu a mão e puxou o tecido.
O espelho estava escuro, profundo, sem reflexo algum.
Mas o vidro pulsava.
Vivo.
Então, o reflexo apareceu.
Não era o dela.
Era Sarah.
Pálida, imóvel, os olhos abertos e brancos.
Atrás dela, a Mulher de Preto.
Elena recuou, tropeçando na cama.
A vela caiu e apagou-se.
A escuridão tomou o quarto.
Mas a voz de Sarah permaneceu.
Baixa.
Rígida.
Sem emoção.
— A chave te escolheu.
— E a cela te espera.
O espelho brilhou com luz pálida.
A imagem de Sarah moveu os lábios.
— Você precisa trancar o que foi aberto.
Elena procurou a chave no bolso.
O metal estava quente.
Quase queimava.
O símbolo dos Willon brilhava fraco, pulsando no ritmo do coração dela.
De repente, o quarto inteiro começou a tremer.
As paredes rangiam, o chão vibrava.
O espelho estalou, rachando de cima a baixo.
E a voz da Mulher de Preto atravessou o som do vidro:
— Ela não quer fechar.
— Ela quer sair.
O lençol da cama se ergueu sozinho, como se algo invisível se levantasse debaixo dele.
As cortinas bateram.
As janelas se abriram com força.
O vento entrou em rajadas, espalhando ** e velas.
Elena gritou e correu para a porta.
Mas o batente fechou-se sozinho, trancando-a.
Do espelho, veio o som de vidro se abrindo — como carne rasgando.
Um braço pálido, fino, atravessou o vidro.
O toque congelou o ar.
Elena segurou a chave com força, sem pensar, e gritou:
— Volta!
A luz explodiu em branco.
O espelho rachou por completo.
O braço sumiu.
O vento cessou.
**************
Quando Elena abriu os olhos, estava sozinha.
O quarto em silêncio.
O espelho em pedaços no chão.
E no meio deles, a chave.
Brilhando.
Límpida.
Sem ferrugem.
Ela a pegou.
A superfície agora refletia o rosto dela.
Mas o reflexo sorria.
Um sorriso lento.
E frio.
O relógio da casa marcou 3:43.
O minuto seguinte.
O minuto em que o quarto de Sarah se abriu — e não se fechou mais.
Elena deixou a chave cair.
O som metálico ecoou pelo quarto vazio, reverberando de maneira impossível — como se houvesse espaço demais entre as paredes.
O sorriso do reflexo continuava, mesmo sem ela mover um músculo.
O espelho rachado devolvia fragmentos do rosto dela, cada pedaço distorcendo uma expressão diferente.
Em um, parecia triste.
Em outro, furiosa.
Em outro, o sorriso do reflexo era largo demais, humano de menos.
Elena recuou.
O ar cheirava a vidro queimado e ferro.
A casa, silenciosa até então, soltou um gemido longo, como se o próprio chão sentisse dor.
De repente, um som seco.
O diário de Sarah caiu da estante, abrindo-se no chão.
As páginas se moveram sozinhas, virando rápido demais, até parar numa folha manchada.
As letras surgiram lentamente, uma após a outra, como se alguém as escrevesse ali, naquele momento.
“Ela saiu.”
O coração de Elena disparou.
O frio subiu-lhe pelas pernas.
Olhou para o espelho — as rachaduras ainda brilhavam em tom vermelho.
Atrás do reflexo, uma sombra atravessou o fundo do vidro, lenta, sinuosa, como se andasse dentro da superfície.
Elena recuou até a porta.
A madeira estava quente, vibrando sob o toque dela.
Girou a maçaneta.
Nada.
Travada.
Empurrou com força.
Nada.
A chave em sua mão brilhou, e o trinco girou sozinho.
A porta se abriu com um estalo.
O corredor estava escuro.
Somente o som distante do vento.
Elena saiu, ofegante, e desceu as escadas quase correndo.
Na sala, as velas estavam acesas — mas ela não as havia acendido.
E sobre a mesa, o retrato de Sarah.
Não o original, mas uma cópia menor, emoldurada, virada para baixo.
Aproximou-se.
Virou o retrato.
A imagem estava alterada.
Sarah olhava para frente, mas atrás dela havia algo novo: o contorno de árvores, sombras e um reflexo de lua.
A floresta.
Elena sentiu o corpo estremecer.
O coração batia como um tambor abafado.
Do lado de fora, o vento começou a uivar — um som que parecia vir de muito mais fundo que o bosque.
Entre o som das folhas, havia outro ruído.
Risos.
Baixos, curtos, infantis.
Ela se aproximou da janela.
A névoa cobria o jardim, espessa e leitosa.
Mas entre as árvores, uma silhueta.
Alta.
Imóvel.
A Mulher de Preto.
O reflexo do vidro se duplicava.
Por um instante, Elena achou ver duas figuras — uma fora da casa e outra dentro.
Pisou para trás.
O chão gemeu.
O relógio da lareira bateu três e quarenta e dois.
De novo.
Elena agarrou a chave com força.
O metal pulsava, quente.
Uma voz soou atrás dela.
Baixa.
Suave.
— Você abriu o que ela não conseguiu fechar.
Elena virou-se rápido.
Margaret estava parada no canto da sala, o rosto meio oculto pela sombra.
Os olhos marejados.
— Mãe…
— Sarah tentou selar o espelho, mas o sangue a impediu — disse Margaret, com voz rouca. — Agora a casa pertence a ela.
— A quem?
A mãe desviou o olhar para o vidro da janela.
A silhueta ainda estava lá fora.
— A mulher que foi antes de nós.
— Antes de nós? — Elena se aproximou.
Margaret deu um passo atrás.
— Ela não é apenas uma visão, Elena. É o reflexo do primeiro olhar. O que viu o futuro e enlouqueceu.
O vento bateu com força nas janelas.
As velas se apagaram.
E, no escuro, a voz da mulher de preto ecoou por toda a casa — vinda de dentro das paredes, do teto, do chão.
— O tempo acabou.
O som foi seguido de um golpe seco na porta da frente.
Uma batida pesada, como se algo enorme empurrasse o batente.
Depois outra.
E outra.
Margaret correu até o retrato.
Virou-o de cabeça para baixo e o cobriu com um pano.
— Ela está tentando entrar.
Elena segurou a chave com força.
— O que ela quer?
A mãe olhou para a filha com os olhos arregalados.
— Você.
Um estrondo fez a casa estremecer.
As janelas se abriram de uma vez, e o vento encheu o corredor com folhas e cinzas.
Elena e Margaret recuaram.
No meio do caos, a porta do quarto de Sarah bateu.
Uma, duas, três vezes.
Depois, se abriu sozinha.
Da escuridão lá de dentro, um sussurro.
— A chave…
Elena olhou para a mãe.
Margaret balançou a cabeça.
— Não entra lá.
Mas algo — talvez o dom, talvez a voz que a guiava — a empurrou para frente.
Subiu as escadas, cada degrau ecoando como um aviso.
Quando chegou ao corredor, o ar estava parado.
O pano do retrato havia caído.
E onde antes havia duas figuras, agora havia três.
A terceira era ela, parada ao lado da mulher de preto, segurando a chave.
Elena engoliu o medo e avançou até o quarto.
A porta se fechou atrás dela com um baque seco.
A chave na mão queimava.
Do espelho rachado, o reflexo sorria novamente.
As rachaduras se moveram, desenhando o símbolo dos Willon.
Mas havia um quinto traço.
Novo.
Brilhando em vermelho.
Elena entendeu.
O símbolo havia mudado desde que ela tocara a chave.
Agora, ela fazia parte dele.
A voz de Sarah surgiu atrás dela, fraca, como um eco distante:
— Tranque o que foi aberto.
— Antes que ela saia inteira.
Elena olhou para o espelho.
As rachaduras se expandiam.
Um som metálico ressoou.
E do vidro, algo começou a emergir.
A Mulher de Preto.
O corpo se formando, primeiro os braços, depois o rosto.
Olhos vazios.
Um sorriso humano demais.
Elena levantou a chave, sem saber o que fazer.
A mulher avançou.
O quarto inteiro escureceu.
E quando o metal da chave tocou o vidro, uma luz intensa encheu o ambiente.
O som das correntes ecoou, profundo, arrastado, até cessar.
Silêncio.
Elena abriu os olhos.
O espelho estava intacto.
Sem rachaduras.
Sem reflexo.
A chave, fria em sua mão.
Mas dentro do vidro, algo se moveu — uma sombra breve, recuando para o fundo, como se tivesse sido empurrada de volta.
Elena caiu de joelhos, exausta.
O relógio marcou 3:43.
Um minuto além do tempo.
Um minuto em que ela acreditou ter vencido.
Até ouvir.
Baixo.
Atrás da parede.
— Você só me trocou de lugar.
O espelho vibrou.
O chão gemeu.
E a casa respirou outra vez.