As Gêmeas

2996 Words
Recomeçar. Olhando para os quadros aquarelados ao meu redor, pensava que aquele momento podia ser facilmente o mais crítico da minha vida: fazia dois meses que não vendia minhas obras ou iniciava uma nova. Em cacos, meu coração não me inspirava a começar projetos ou continuar os que estavam em andamento. As vozes dos meus familiares ecoavam na minha cabeça, dizendo-me que viver da arte não me traria bons frutos e que eu precisaria pedir auxílio financeiro um dia. Eu não poderia culpá-los. Eles tinham como comparar meu rumo decadente com o da minha irmã, a cópia perfeita da minha aparência. Aos vinte e quatro anos, Sophia era secretária do proprietário de uma das maiores empresas do país. Inovadores nas fragrâncias, os engomadinhos da marca de perfumes Arômata forneciam mais dígitos na conta da minha gêmea em um mês do que eu tinha em três. Deveríamos manter uma relação de amor como fazem os filhos univitelinos, mas eu compartilhava com ela pouco menos de um palmo de afeição. Embora a comparação deixasse um gosto amargo na minha boca todas as vezes que a citavam para pronunciar minhas más escolhas, eu não a invejava — o motivo pelo qual eu a detestava era bem mais profundo do que nossas contas bancárias. Torci o nariz para o meu apartamento bagunçado. — Sophia — interceptou o corretor de imóveis, aproximando-se. Eu o conhecia havia poucas horas e ele estava me dando nos nervos pela vogal errada no final do meu nome. Deve ter percebido meu olhar de censura, pois corrigiu-se: — Perdão… Sophie, certo? — Certo — falei, áspera. Eu não queria tratá-lo m*l, mas ser chamada pelo nome da minha irmã enquanto vendia meu apartamento para refazer minha vida não me deixava feliz. Ela riria se soubesse, debochando fervorosamente dos quadros pendurados ao meu redor. Céus. Precisava tirá-la da cabeça. — Bem, Sophie, tenho boas notícias — anunciou o corretor, por fim. Balancei a cabeça para ele. — Por favor, fale. Preciso mesmo de algo bom. Ele me entregou um sorriso breve. — Conseguirei o dobro do que sugeriu por esse lugar. O custo de vida na área está alto e o trabalho que fez com as paredes… — O corretor balançou as mãos, indicando meus desenhos nos arredores. — Isso é único. Valorizou o imóvel. Suspirei, grata pelo elogio. Eu tinha decorado o lugar com cores vibrantes em um estudo que fiz sobre a influência dos tons no humor, utilizando arte espiritual que afirmavam que ajudaria na concentração. Mesmo que nada daquilo estivesse me ajudando a ficar bem humorada, pelo menos conseguiria uma grana. Agradeci e dispensei o corretor carinhosamente. Ele me perguntou a respeito do anúncio que deveríamos fazer para vender o imóvel e eu desviei do assunto; queria saber quanto valia, mas não estava pronta para definir minha data de saída. Meu último ano mais feliz desde que eu resolvi me afastar da minha cidade e fazer minha carreira artística se passou ali. Entre aquelas paredes, fiz quadros que vendi por valores exorbitantes antes de me sentir vazia a ponto de não conseguir mais tocar telas com a alma. Sentei-me novamente no tapete do meio da sala com lágrimas salpicando os olhos. — Tenho esperança nos dias melhores que conquistarei através dessas mãos — sussurrei, observando meus dedos calejados pelo trabalho manual. Trêmula, repousei as mãos por cima dos olhos. — Eu acredito em mim e no amor que existe aqui dentro. Só queria um sinal, um bendito sinal de que esse é o caminho certo. E, como se o universo tivesse se alinhado com as minhas expectativas, o som da campainha preencheu meus ouvidos. Levantei-me num pulo, febril pelas preces ouvidas. Não era muito dada a acasos, muito menos acreditava em destino, mas o desespero me fazia insana. Atendi o interfone rapidamente. — Quem é? Um instante se passou. Depois outro. Franzi a testa, desanimada. Deve ter sido algum pestinha brincando de tocar a campainha e sair correndo, pensei. Fiz menção de desligar o interfone. Poucos centímetros antes do gancho, um ruído ecoou do outro lado. Levei-o de volta ao ouvido. — Pois não? Mais um instante de silêncio. Revirei os olhos. Quem quer que fosse, estava me dando nos nervos. Desliguei o aparelho e caminhei apressadamente pela sala, pegando minhas chaves no caminho. Atravessei os corredores raivosamente, disparando do elevador até a portaria. O porteiro destravou o portão ao me ver. Virei-me para agradecer enquanto puxava a maçaneta dobradiça pelas grades, abrindo o portão para revelar o condenado a palavrões que brincava com a minha paciência. Os próximos segundos passaram em câmera lenta. Meus olhos voltaram para a frente, meu corpo girou para segurar a grade atrás de mim e eu tive a sensação de que olhava outra versão minha na frente do espelho. Alisado, o cabelo dela deslizava pelos ombros e pelas costas, cobrindo-a como um manto brilhoso de castanho escuro. Os olhos profundos, redondos e esverdeados estavam ligeiramente cerrados com o desdém sempre evidente. O rosto dela era pequeno como o meu, envolto por uma fina camada de maquiagem bem feita que destacava as maçãs rosadas. Sophia. — Minha querida irmã, que saudade — soprou ela, provocativa. Soltei um suspiro, incrédula. Ao redor dela havia três malas grandes e uma bolsa de viagem. Certo, pensei. Devo ter enlouquecido. Minha irmã gêmea definitivamente não era um presente do universo, mas um castigo enviado diretamente do quinto dos infernos. Voltei para dentro e fechei o portão. O porteiro me lançou um olhar de confusão. Devo ter devolvido a ele o mesmo olhar perdido, porque o homem segurou a própria curiosidade e fingiu estar interessado em monitorar os corredores. — Como ousa fechar o portão na minha cara?! — Sophia vociferou de lá de fora. — Eu viajei por duas horas para te ver! Da última vez que nos vimos, jurei que nunca mais falaria com ela novamente. Sophia tentou queimar meu rosto enquanto eu dormia, alegando que uma fracassada como eu não podia se parecer com ela. Graças ao meu sono leve, despertei antes que a colher quente de metal atingisse minha bochecha. A queimadura deixaria uma cicatriz que eu carregaria por toda a vida. Enjoada, recobrei meus sentidos e voltei a caminhar pelo corredor. Não conseguia pensar no que ela queria. Preferia deixar de lado para fingir que não a vi na minha frente. Pouco antes de solicitar o elevador, entretanto, o grito dela preencheu meus ouvidos: — Não me deixe no sol! Eu estou grávida! Travei no lugar onde estava. Mas que diabos… Podia ser mentira. Queria acreditar que era. O timbre da voz dela, porém, estava repleto de um choro de desespero incomum à mulher perfeita que eu conhecia. Chorar para ela era sinal de fraqueza. Estremeci. — Will, por favor — chamei, minha voz muito baixa. O porteiro me olhou lá de cima, atento. — Abra o portão. A trava estalou imediatamente. — Feito, senhora — anunciou ele. Indicando minha irmã com a cabeça, acrescentou: — Quer que eu ajude com as malas? Assenti. Covardemente, entrei no elevador e solicitei meu andar. Se minutos entre ela solicitar novamente o elevador e subir com o porteiro fossem tudo o que eu tinha, usaria para me recompor. Apressei-me em pegar um copo d’água, surpreendendo-me com minha mão trêmula. A ansiedade me devorava, sufocando-me com as mãos firmes ao redor do pescoço e tirando da minha alma o pouco de felicidade que restava. Não podia estar acontecendo tudo de uma vez. Com os meus cacos eu sabia lidar, mas com a pressão de receber insultos e desdém da minha família por ter chegado ao fundo do poço? Não conseguia lidar com isso. Seja forte, ordenei-me em meus pensamentos. É só sua irmã. A minha irmã grávida. Fiz uma careta ao engolir a água. O líquido passou pela garganta como pedra, doendo em contato com o choro que se formava. Ouvindo o elevador e os passos se aproximando, arrepiei-me. — Então é nesse buraco que está enfiada? Mas o que… Sophia parou, os olhos esverdeados percorrendo as inúmeras cores do apartamento. Ela apertou os lábios, parecendo enojada. — Quantas cores. Parece que estou olhando um dos vestidos horrendos da mamãe. Percebi que ela estava mais redonda. Uma protuberância se formava na barriga malhada e geralmente plana, proporcionando a ela um aspecto quase inofensivo. Quase. — Eu acho incrível — interveio Will chegando atrás dela com as malas. Assenti para ele, agradecendo silenciosamente. Ele olhou de uma para a outra e brincou: — Espero não confundir as duas a qualquer hora. — É só você procurar a mais brega — assobiou Sophia. Suspirei. — Eu te aviso se confundir — consolei-o. Ele nos deixou com os ares de quem tinha a melhor fofoca do ano para contar aos outros moradores. Um silêncio perturbador tomou o ambiente. Nenhuma das duas queria ser a primeira a falar. Se tomasse as rédeas, preocupava-me que Sophia entendesse como permissão para ficar na minha casa como visivelmente planejava. Não a queria ali e só podia imaginar os motivos sórdidos para a visita. Ela podia ter se endividado com um agiota para custear a vida luxuosa. Podia, também, ter se envolvido com um mafioso para subtrair verba da empresa. Nada no mundo me fazia confiar no caráter da minha irmã. Quando se tratava de dinheiro, Sophia podia fazer tudo. Mas aquela barriga… E se tivesse a ver com a criança? Como eu poderia recusar qualquer ajuda, se a criança no ventre dela era meu sangue? Sophia me olhou com desconfiança. Eu devolvi o olhar. Finalmente, ela disse: — Você sumiu. Depois de você tentar mutilar meu rosto. Tinha muito a dizer, mas balbuciei um simples: — É. Ela trocou os pés. — Senti sua falta. Uma mentira. Quase ri. — Não posso dizer o mesmo. Ela revirou os olhos. — Sophie, não precisa me tratar assim. Sou sua irmã. Não estou aqui para brigar. — Mas por um bom motivo não deve ser — retruquei. A expressão dela vacilou por um breve momento, revelando-me que eu não estava errada: ela queria me pedir alguma coisa e não sabia como. Sophia caminhou até o sofá e se sentou entre tubos de tinta e telas em branco. — Estou com fome — disse. Analisando a cozinha americana como se fosse um lixão, perguntou: — Tem comida aqui? Meus olhos me traíram, recaindo na barriga dela. Eu queria retrucar, dizer que tinham restaurantes e hotéis nas proximidades para comer e se hospedar, mas o meu infeliz coração mole jamais me permitiria tal coisa. Deixei o copo de água no balcão e abri a geladeira. — O que as grávidas comem? Ela me deu uma lista de coisas que não podia comer, recitando com tamanha precisão que compreendi a realidade da coisa. Recolhi os ingredientes para uma panqueca com a respiração dificultada e o pânico aumentado. A irmã que eu conhecia não saberia do que um bebê precisava se ele não estivesse dentro dela — ela estaria ocupada demais com ela mesma. Peguei-me perguntando, preocupada: — A mamãe sabe? Ela balançou a cabeça. — Ninguém sabe. Ninguém pode saber. Por isso estou aqui, sei que ninguém procura você há um ano. Uau. Fiquei impressionada com a dor que o conhecimento me proporcionou. Ela estava certa, nenhuma alma sensata procuraria o sucesso da família na casa do fracasso. Mudando de assunto para disfarçar a dor, quis saber: — Está com quantos meses? Ela estalou a língua. — Sete. Quase deixei um ovo cair. — Você conseguiu esconder uma gravidez por sete meses?! E a barriga… Como poderia estar daquele tamanho? Sophia arqueou uma sobrancelha. — Andei comendo muito. Acharam que eu tinha engordado. Assenti. — Faz sentido, mas… — Mas nada. Gravidez não é doença para ficar evidente assim. Engoli a seco. É claro que ela não entenderia o que eu estava pensando. Podia ser dureza para mim esconder os sentimentos que uma gravidez proporciona, mas para Sophia era ok. Nem sabia se ela tinha sentimentos. — Então você está aqui para se esconder — voltei ao assunto, fingindo casualidade. Ela não disse nada e eu continuei: — Infelizmente, não posso ajudar. Estou muito ocupada ultimamente… — Falindo? — Sophia interrompeu. Uma facada doeria menos. Senti meus olhos se alargarem. — Como sabe disso? Ela sorriu. Um sorriso convencido. — Eu investiguei tudo. Aquele seu namorado está namorando com outra, vi nas redes sociais. Procurei sua última obra vendida e soube que faz um tempo. Fiquei surpresa por não encontrar um anúncio desse apartamento à venda. Queria me sentar, mas o único lugar era ao lado dela. Meus joelhos estavam fracos, quase incapazes de sustentar o peso do meu corpo. Extremamente controladora e inteligente. Sophia não tinha mudado nada. — Posso te ajudar a sair dessa — disse minha irmã, a voz perigosamente mansa. — Tenho muito dinheiro guardado. Estremeci. Ela me deixava assustada toda vez que tentava me manipular. Era como se o meu reflexo malvado me olhasse de volta, mostrando-me a pior face que eu poderia ter. O pior de tudo era saber que ela estava só começando. — O que você planejou para mim? Sophia sorriu. — Eu só quero te ajudar. Apertei o cabo da frigideira. — Fale de uma vez o que está tramando ou eu a expulso daqui. Ela recuou, pouco intimidada. — É uma proposta bem interessante, na verdade. Aposto que você sempre quis isso. Pisquei, confusa. — Quis o quê? — A minha vida — ela sibilou. De relance, Sophia encarou meus quadros. — Meu status. Meu sucesso. Você sempre quis ser eu, Sophie. Um segundo de silêncio se passou. Depois dez. Depois vinte. E então a minha gargalhada preencheu o ambiente. Ri com vontade até a barriga doer, meus pulmões pedirem socorro e o engasgo chegar. — Você não pode estar falando sério — falei, brincalhona. Sorrindo, soltei a frigideira e coloquei as mãos na cintura. — Pensa isso mesmo? Que eu quero ser você? Por Deus, Sophia, você não pode ser tão prepotente. Ela simplesmente deu de ombros. — Se não quer isso, faça por ela. Confusa, repeti: — Por ela? Sophia acariciou a barriga, indicando-me que falava da bebê. Como a tola que eu era, amoleci. — É uma menina? Sophia sorriu. Eu não conhecia aquele sorriso, fazia parte de uma nova coleção. Deduzi que era um dos manipuladores. — É, sim. Senti uma animosidade indesejada. Saber que seria tia era a única coisa que despertava meu coração em meses. Talvez fosse uma das características de gêmeas, sentir a maternidade ao mesmo tempo que minha irmã. Um instinto protetor atingiu com força minha corrente sanguínea. — Está fazendo o pré-natal direitinho? Ela fez que sim com a cabeça. — É uma gravidez de alto risco. Me estressei muito. Depositei a panqueca que fiz distraidamente no prato. — Coisas da empresa, imagino. Ela não respondeu. Preparei um suco livre de conservantes e recolhi talheres. Enquanto distraída, não percebi que minha irmã tinha assumido um semblante preocupado. Ela parecia perdida quando a ofereci o lanche, piscando várias vezes para voltar ao lugar. O inesperado aconteceu no mesmo momento: assisti minha irmã chorar pela primeira vez. — Ei — falei. Coloquei o lanche por cima de uma tela e me abaixei para olhar nos olhos dela de perto. Senti a dor dela passar por mim pelo fio que nos ligava e os terríveis soluços que ela soltou foram como agulhas me perfurando. — Está tudo bem. Estou aqui se precisar falar. Sophia limpou o rosto. — Você não entende — declarou ela. Não entendia mesmo. A irmã que eu conhecia não chorava. Nunca. Tinha alguma coisa muito errada acontecendo. — A bebê corre perigo. Eles estão me ameaçando. Eu fiz besteira, Sophie. Ela me empurrou, passando por mim como um furacão. Não tive tempo de registrar o que me dizia. Ela já estava do outro lado da sala, abrindo a bolsa que deixou por cima da mala e jogando fotos e bilhetes no chão. Caminhei até ela. Minha primeira reação foi de estranheza e, em seguida, terror. Vou matá-la. Você está acabada. Eu sei onde você mora. Você vai sangrar. Os bilhetes eram escritos com recortes de revistas e jornais, não revelando o remetente. Junto com eles, inúmeras fotos da minha irmã em situações cotidianas como jogar lixo fora, olhar o correio e entrar na empresa estavam dispostas, tiradas de ângulos que ela não tinha como ver. Prendi a respiração. — O que você fez? Ela sentou no chão, em prantos. — Eu me meti com gente perigosa, Sophie. Minha única esperança é você. Fechei minhas mãos em punhos, sentindo-me congelar. — Você disse que eu teria sua vida — lembrei-me. Ela assentiu, frenética. — Eles sabem tudo o que faço. Tudo o que sou. O único jeito de me livrar deles é sendo imprevisível e mostrando o resultado negativo no teste de gravidez. Quase ri. A situação toda era cômica de tão trágica. — Eles vão me matar no seu lugar, isso sim. Ela segurou minha mão. — Não se você não estiver grávida. Isso tudo é da esposa dele. Ela me viu na clínica de pré-natal. Empertiguei-me. — Esposa de quem? Ela abaixou os olhos. — Do irmão do meu chefe. Ele é o sócio da Arômata e a pior pessoa que eu já conheci. Se minha irmã, uma das piores pessoas que já conheci, tinha conhecido uma pessoa pior do que ela… Bem, as coisas estavam mesmo muito ruins. Olhei mais uma vez para a barriga dela. O que eu poderia perder, no final das contas? Minha vida era indiferente a ponto de não receber nenhuma ligação da minha mãe, não conseguia mais pintar, a pessoa que eu amava tinha me traído e eu estava falida. Não tinha nada e nem ninguém no mundo que sentiria minha falta, mas tinha uma vida nova na barriga da minha irmã que eu precisava proteger. Apertei firme a mão dela. — Diga-me o que preciso fazer.
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