Cheiro de Jasmim

2596 Words
Devia fazer uma hora que eu olhava para o espelho esperando me reconhecer por baixo daquelas roupas elegantes, maquiagem bem feita e cabelo alisado — com chapinha, pois me recusei a usar qualquer alisamento permanente —, mas não encontrando nada além da imagem distorcida da minha irmã gêmea. Precisei cortar um pouco o cabelo. Encaracolados meus fios ficaram no mesmo comprimento que os dela, mas alisados eram mais longos devido ao fator encolhimento. Também precisei aprender a fazer o que ela chamava de maquiagem natural, delineando meus olhos sutilmente e cobrindo todas as imperfeições da pele. Eu ainda não era igual a Sophia. Faltava uma cirurgia cardiovascular para tirar o meu coração. — Anda, Sophie — Sophia reclamou ao celular. Ela estava no viva-voz, ajudando-me a montar a personagem. — Vai se atrasar se continuar se olhando no espelho. Eu nunca me atraso. Suspirei. Tanto tempo sem falar com ela e de repente precisávamos falar o tempo inteiro. Estava cansada de tê-la por perto mesmo de longe. — Não estou ansiosa para conhecer o seu chefe — confessei, cabisbaixa. Sophia tinha me falado muito sobre o CEO da Arômata. Ele era sério, exigente e raramente falava mais do que o necessário. Não gostava de ser perturbado, odiava atrasos e o mínimo sinal de incompetência era ameaçado com demissão. Ela me confidenciou, a contragosto, que eles tinham um relacionamento contrastado pelo respeito e o desdém. O homem a detestava com todas as forças e, conhecendo minha irmã, devia ter bons motivos. Eu nunca tinha ficado de frente com uma pessoa poderosa como ele. Nervosa era pouco, estava surtando. — Não tem nada que eu faça que você não saiba fazer — Sophia me consolou. Foi estranho ouvir um elogio vindo dela, mas o elogio logo foi substituído pelo costumeiro discurso: — Estudamos nas mesmas escolas, fizemos a mesma faculdade. Só que você escolheu ser uma fracassada e eu não. — Sim, é verdade — concordei, cética. Caminhei até a cama onde o celular estava depositado e olhei a tela. Era o celular dela. Tínhamos trocado nossos aparelhos e redes sociais para tudo parecer mais real. — Vou desligar. Me deseje sorte. Ela não esperou que eu desligasse, desfazendo a chamada sem nenhum sinal de afeto. Que fofa. Guardei o celular na bolsa bege de alguma marca absurdamente cara. Com exceção dos sapatos, Sophia tinha escolhido minhas roupas, guiando meus passos enquanto eu andava pelo closet dela. Nunca tinha estado em um closet e fiquei chocada com o desperdício de dinheiro envolvido, entretendo minha irmã com a minha pobreza. Ela ficou com o meu apartamento e eu com o dela. Apesar de luxuoso, o lugar tinha aspecto de hospital. Irritantemente desprovido de cores, reservava poucos móveis e personalidade. Era como se ela só tivesse se mudado e colocado o que precisava em um espaço desnecessariamente grande para o pouco que tinha. Sabia que aquele era o conceito de riqueza. Muitas pessoas olhavam o que eu via como excesso de espaço e achavam moderno, lindo. Eu só podia imaginar a tristeza de caminhar por um ambiente sem cores. Com os saltos mais baixos que encontrei, andei a tropeços deselegantes até o elevador e solicitei a portaria. Deveria estar descendo para o estacionamento, mas era tão r**m dirigindo quanto era r**m andando de salto. Se aqueles sapatos não me matassem, poderia tentar o carro dela em outro momento. Solicitei um motorista e observei o céu. Nuvens escuras da chuva que ameaçava cair desde que cheguei na capital escondiam o sol. Era como se a natureza entrasse em consenso com o meu humor, fechada e melancólica. Não queria voltar para aquele lugar, não queria ser minha irmã e não queria estar com a vida ferrada. Ainda assim, se o desespero de ser outra pessoa para salvar minha sobrinha era tudo o que tinha, não hesitaria. Gostava de pensar que minha irmã faria o mesmo por uma filha minha, embora soubesse que não. Eu estava sozinha no mundo e lamentavelmente assumindo a face de outra pessoa. O apartamento dela, o carro dela, as roupas dela, o emprego dela e a aparência dela: em um final de semana, tudo o que era dela se tornou meu e tudo o que era meu se tornou dela. Para todo mundo, eu não era mais Sophie, a irmã que não deu certo e ainda recebeu a vogal menos atraente no fim do nome. Eu era Sophia, a mais bem sucedida da família e a gêmea com o melhor nome. Desviei os olhos do céu e me deparei com o motorista chegando. Entrei no carro com a ansiedade esquentando meu sangue. Percebendo meu nervosismo, o homem perguntou: — Quer que eu coloque alguma música? Balancei a cabeça com um sorriso azedo. — Não, obrigada. Ele assentiu e continuou o caminho. Só de pensar que naquele horário Sophia estava de férias no meu apartamento e em outra cidade, minha ansiedade aumentava gradualmente. Sentia saudade da minha vida antes mesmo de começar uma nova. Ela queria que eu fosse imprevisível. Fizemos planos para garantir a segurança das três — nós duas e a bebê —, mas todos os planos dependiam dos outros. Precisavam acreditar que eu era ela. Ninguém sabia que éramos gêmeas ou que Sophia tinha uma irmã, já que ela preferia queimar meu rosto para sermos diferentes a deixar que eu continuasse vagando por aí com a aparência dela. Era aquilo que me deixava mais preocupada: minha irmã estava desesperada a ponto de pedir minha ajuda mesmo não gostando da minha existência. E aquele CEO… O que esperar dele? O homem não gostava da pessoa que eu representaria. Qualquer erro meu levaria minha irmã para o olho da rua, tendo em vista os sentimentos negativos que ela cultivou nele antes de trocarmos de lugar. Soltei um grunhido ao mesmo tempo em que o carro parou. — Chegamos — anunciou o motorista. Inclinei-me no banco. — Mas já? O homem pareceu achar a pergunta divertida. — A senhora mora bem perto. Dá para ir a pé. Sophia gastava gasolina para chegar numa empresa a poucas quadras de casa quando dava para ir a pé? Bufei. Se pelo menos morasse longe, teria tempo para preparar o psicológico antes de lidar com o carrasco que me esperava. A troca foi muito rápida. Eu topei, Sophia me passou infinitas instruções, entregamos nossas chaves e senhas, compramos minha passagem e eu voltei para a minha capital natal em um final de semana. O dinheiro que ela tinha guardado pagou os meses de contas atrasadas no meu nome e sobrou para manter a estadia dela no meu apartamento durante meses. Minhas pendências foram resolvidas e ela levou a melhor, enquanto eu… Bem, eu estava olhando para o maior prédio dos arredores, sentindo-me uma formiguinha corporativa no mundo de negócios que me esperava. Retirei-me do carro, despedindo-me do motorista com um agradecimento sem jeito. Se soubesse como era perto, nunca o teria incomodado com uma corrida inútil. Na minha frente, o prédio escultural era completamente de vidro. Uma escrita delicada em formato de pétala vinha do topo em letras ornamentadas do jeito que se espera de uma empresa de perfumes. Arômata, o nome da minha desgraça. Choraminguei. — Quero morrer — sussurrei. Passando por mim, uma mulher que parecia ter minha idade parou e cerrou os olhos. — Sophia? Você está atrasada. Meu coração disparou. Olhei a hora rapidamente no relógio de pulso, assustando-me com os dez minutos de atraso indicados pelos ponteiros. Disparei para a porta. — Obrigada por avisar! Ela seguiu atrás de mim, os saltos maiores que os meus tiquetaqueando pelo piso branco. Parecia ter acabado de ver um fantasma, os lábios apertados e a expressão assombrada. Com a voz nasalada, perguntou: — Está zombando da minha cara? Quem é essa mulher? Não sabia se Sophia tinha alguma amiga na empresa e ela não parecia ter um carinho especial pela minha irmã. Felizmente, porém, não aparentava estar notando diferença nas nossas aparências. Olhei rapidamente para ela. Ela caminhava ao meu lado como se estivéssemos indo para o mesmo lugar. Percebi, para minha felicidade, que trabalhávamos mesmo juntas. Que bom. Tinha me esquecido para qual andar deveria ir. Diminui o passo e a acompanhei até o elevador. — De jeito nenhum — esclareci, por fim. Entramos ao mesmo tempo no cubículo opressor. Vários engomadinhos vieram juntos. — Eu perdi a hora escolhendo meus sapatos — menti. Conseguia imaginar minha irmã se atrasando por algo fútil assim, caso por um milagre se atrasasse. — Essa obrigação de andar de salto está acabando com os meus pés. Precisei de um confortável. A mulher contorceu os lábios numa risada fingida. — Não sei quem te deu essa obrigação. Sua vaidade, talvez. Pisquei. Não era obrigatório? Olhei para os saltos nos meus pés já vermelhos pelo esforço. Se não era parte do código de vestimentas, por qual motivo Sophia só tinha sapatos daquele tipo? Erguendo os olhos para a mulher, li o nome dela no crachá. Elaine. Ela ocupava a posição de design no setor principal. Minha farsante posição na hierarquia era, entretanto, muitíssimo maior que a dela. De repente, senti-me sufocada. A porta abriu três ou quatro vezes e vários funcionários saíram. Esperando Elaine sair, segurei um surto nervoso com as mãos apertadas em punhos. Qual direção eu teria que percorrer quando as portas abrissem? Se me perdesse, que desculpa daria? Se alguém notasse algo estranho em mim, como eu disfarçaria? O que eu precisava fazer para ser como Sophia? — O que você tem? — Elaine resmungou. — Ainda não me mandou para o inferno pelo comentário que fiz. Ah. É claro que Sophia faria algo assim. Balancei a cabeça. — Estou sem clima, Elaine — falei, tentando soar grosseira. Elaine soltou uma risadinha. — Estou sem clima, Elaine — repetiu em tom infantil. Senti vontade de rir do modo como ela falou. Elaine era descolada, com os cabelos vermelhos e os olhos sombreados por maquiagem escura. Eu fui com a cara dela e gostei de saber que tratava minha irmã daquele jeito. Ela não era o tipo que abaixava a cabeça para os outros. Irritante, mas destemida. A porta abriu e Elaine saiu. Segui atrás dela, cautelosamente observando o lugar. O celular vibrou com o som de uma notificação. Meu nome estava na tela e a mensagem chegou com atraso pela falta de sinal dentro do elevador. Para minha salvação, Sophia previu o momento em que eu ficaria perdida e mandou o passo a passo: Siga até o fim do corredor. Entre na sala, mas não abra a segunda porta. Você só pode entrar lá quando ele chamar. Fiz o que ela mandou, evitando absorver o ambiente por mais tempo. Não queria esbarrar com mais ninguém que eu devesse conhecer e não conhecesse. Fui golpeada pela magnitude do lugar assim que atravessei a porta. Com uma mesa de escritório minimalista, eu trabalharia com a vista inteira da cidade ao meu redor. As paredes tinham aspecto de vidro, frágil como se qualquer vento pudesse varrer a sala para longe. Tudo, exceto pelo piso e o teto, era transparente. Apertei a maçaneta, prendendo a respiração. É claro que minha irmã não sabia que eu tinha medo de altura. Se soubesse, teria me avisado que eu ficaria plenamente consciente de que estava a mais de vinte andares do chão. Trêmula, agarrei-me à alça da bolsa e andei até a mesa. Só precisava me estabilizar até fechar as persianas para esconder a visão da cidade… O celular tocou, me assustando. Saquei ele da bolsa com tanta pressa que quase o derrubei no chão. — Sim? Um instante de silêncio. E então, a voz grave e cortante de um homem ecoou do outro lado: — Está atrasada. Pelos céus. Era ele. Meu coração deu um salto nervoso e meus olhos encheram d’água. O medo que estava da altura veio em dobro, a cidade se tornando um borrão. O que eu fiz? Onde diabos estou me metendo? Aquele era um dos homens mais ricos do país. Um CEO. Ele estava do outro lado daquela sala onde eu praticamente me desfazia em pânico. Eu precisava interpretar o perfeito papel da minha irmã se quisesse salvar minha sobrinha, mas não passava de uma artista desconhecida em hiatus. Levei a mão gelada até a testa, encontrando-a molhada. — O trânsito estava r**m — falei, por fim. Ele certamente não sabia que Sophia morava a duas quadras dali. Não podia saber. Eu não tinha nenhuma desculpa melhor para dar. Ele ficou em silêncio por mais um instante. — Prepare a sala de reuniões — disse, ignorando completamente a mentira. E desligou. Fiquei olhando a tela, incrédula. A potência da voz dele era precisa a ponto dele não precisar falar muito para intimidar. Algo me dizia que ele sabia que eu estava mentindo sobre o trânsito, mas não se importava. Digitei apressadamente uma mensagem para Sophia perguntando como deveria preparar a sala de reuniões e onde seria a tal sala. Ela me mandou rapidamente o passo a passo, como se estivesse esperando por isso. Resistindo ao medo, fechei as persianas e deixei uma fresta de luz natural. O primeiro passo era imprimir o arquivo que a equipe de projetos me mandou. Fiz tudo no computador dela, rapidamente grampeando os arquivos e os ordenando. Depois disso, o segundo passo era colocar as folhas no centro da mesa de reuniões que ficava no outro extremo do corredor externo. Passei por vários funcionários que se calaram ao notar minha presença, o desprezo evidente nos narizes torcidos. Coloquei os arquivos onde deveriam ficar, liguei os computadores, organizei copos em cada lugar vago e preparei uma jarra de água fresca. O último passo era esperar. Deveria ficar de pé atrás do CEO, encostada na parede. Ficaria atenta a qualquer sinalização dele, esperando que me chamasse. Meia hora se passou. Nem ele e nem qualquer outro m****o da equipe apareceu para a reunião. Quarenta minutos. Os saltos estavam me matando e meus pensamentos ameaçavam me fazer chorar. Cada vez que pensava em desistir, lembrava-me da barriga da minha irmã e das ameaças de morte que me mostrou. Cinquenta minutos. Pensei em me sentar para lamentar. Uma hora. Movi-me no lugar, sentindo minha coluna doer. Decidi trocar a água para o caso de já estar quente. Caminhei aos tropeços de volta para a mesa. Ouvi a porta abrir atrás de mim, mas mantive a postura para não demonstrar nervosismo. Sophia não devia ficar nervosa ao ser pega trocando a água, afinal. Meio passo de agarrar a água, cambaleei nos saltos e tropecei. A sala rodopiou e fechei os olhos ao me deparar com o aço da cadeira prestes a mutilar meu queixo. A pancada nunca veio. Mãos fortes seguraram minha cintura, levando-me para cima com precisão absoluta antes que o golpe da cadeira chegasse. Eu me firmei no lugar com facilidade, segurando firme o tecido que envolvia os braços musculosos que me erguiam. O aroma amadeirado de sândalo preencheu minhas narinas. Levantei os olhos, fixando-os nas órbitas de um mel profundo estranhamente familiar. A beleza perturbadora do homem que me segurava foi uma surra maior do que a que eu levaria na queda. Nunca tinha visto uma pessoa tão bonita. O cabelo escuro escorria pela testa dele, lembrando-me o efeito nanquim que eu usava nos desenhos. Era como se eu olhasse uma obra de arte, procurando com afinco uma imperfeição para corrigir e não encontrando nada além de maestria. Apertando-me com mais força do que o necessário pela cintura, ele franziu a testa. — Você cheira a jasmim.
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