Thais Narrando
Meu nome é Thais Maria, mas daqui pra frente vou ser só Maria. Engraçado pensar nisso, né? Passei vinte anos sendo chamada de Thais, e agora preciso me agarrar ao meu segundo nome como se fosse a minha salvação. Às vezes ainda me pego repetindo em voz baixa, só pra acostumar: Maria, Maria, Maria. como se fosse um mantra.
Nasci em Itatiaia, uma cidade pequena encravada na divisa do Rio de Janeiro com São Paulo. Lá, todo mundo conhece todo mundo. Cresci numa família estruturada, cheia de princípios e com aquele orgulho que os pais têm quando acreditam que criaram bem os filhos. Sempre ouvi dos vizinhos que eu era uma boa menina, estudiosa, dedicada, que seria “alguém na vida”. Isso sempre me encheu de responsabilidade, porque eu queria, de verdade, ser um orgulho pros meus pais.
Tenho um irmão mais novo, o Lucas. Ele tá com dezessete anos agora, ainda terminando os estudos. A gente sempre foi muito unido, principalmente depois que nossa mãe adoeceu. Lembro como se fosse hoje: eu tinha só quatorze anos, sonhando com meu baile de debutante, vestido rodado, aquela noite mágica que todas as meninas da minha idade sonham. Mas aí minha mãe teve um problema sério na perna. Foi um baque pra todo mundo. Meu pai já estava atolado em dívidas, e o tal baile nunca aconteceu.
No começo doeu, mas logo entendi: saúde vinha em primeiro lugar. Enquanto minha mãe passou um tempo em São Paulo fazendo tratamento, eu assumi as rédeas de casa. Cuidava do Lucas, do meu pai, das tarefas do dia a dia. Foi pesado, mas aprendi cedo a ser responsável.
Sempre fui alegre, gostava de cozinhar, de ouvir música, e tinha um amor enorme por crianças. Sempre sonhei em ter uma família só minha, com risadas de criança correndo pela casa. Mas a vida, ah, a vida é cheia de surpresas amargas.
Fui casada, sim. Hoje me considero viúva, mesmo que na certidão não conste isso. O homem com quem me casei, um delegado de Itatiaia. No começo parecia perfeito: educado, carinhoso, um bom partido aos olhos da sociedade. Só que por trás daquela farda e daquele sorriso, se escondia um monstro. Ele tentou me matar. Simples assim, como quem descarta um objeto velho. E tudo porque queria se casar com outra.
A morte foi forjada no hospital da cidade. A médica, com pena de mim e sabendo do risco que eu corria, ajudou a me dar uma nova chance. Declarou a minha morte. Enterraram um caixão com o corpo de uma moradora de rua, jurando ser o meu, e eu precisei enterrar junto minha identidade, minha história, meu passado inteiro.
Agora sou Maria. A mulher que sobreviveu.
Desci do ônibus na rodoviária do Rio de Janeiro com uma mochila nas costas, umas roupas que a doutora me conseguiu e o coração disparado. Chamei um táxi e, com a voz mais firme que consegui, pedi:
— Moço, me deixa no Morro do Falcão, por favor.
O motorista arregalou os olhos pelo retrovisor.
— No Falcão? — repetiu, meio desconfiado. — Olha, até posso te levar, mas só até a entrada. Lá dentro eu não entro de jeito nenhum.
Assenti em silêncio. Sabia que seria assim. O Morro do Falcão tinha fama, e fama não era boa. Quando o carro parou no pé do morro, respirei fundo, paguei a corrida e desci. O lugar já tinha aquele clima pesado de território demarcado. Uma barreira de contenção com homens armados, olhares desconfiados, e eu, sozinha, tentando parecer firme.
Me aproximei com calma.
— Eu vim procurar a dona Vânia, ela mora na rua dois.
Um rapaz mäl-encarado me mediu dos pés à cabeça. O olhar dele era tão frio que me gelou por dentro. Depois fez um sinal pra outro cara.
— Vai lá chamar alguém da casa da Vânia — ordenou.
Minutos depois, surgiu uma mulher forte, com semblante sério mas acolhedor. Reconheci logo: só podia ser a tal dona Vânia. Ela abriu um sorriso discreto quando me viu.
— Você deve ser a Thais... ou melhor, a Maria.
Balancei a cabeça.
— Sou eu.
Ela se aproximou, me abraçou de leve e disse no meu ouvido:
— Fica tranquila. Minha sobrinha já me contou tudo. Aqui você tá protegida.
Um alívio percorreu meu corpo, mas não completamente. Porque, no fundo, eu sabia: proteção no morro tinha dono, e esse dono não era dona Vânia.
Ela me puxou pelo braço e completou:
— No Morro do Falcão só entra quem o King autoriza. E se ele disse que você pode ficar, então pode acreditar: ninguém vai encostar um dedo em você.
King. O nome ecoou na minha cabeça como um aviso. Não sabia quem ele era de verdade, mas já tinha entendido que era o dono dali, o homem que comandava tudo. Meu destino, a partir daquele momento, estava atrelado a ele, gostando ou não.
Enquanto caminhávamos pra dentro do morro, vi crianças correndo descalças, senhoras sentadas nas portas, homens observando das esquinas. Todos me olhavam como se quisessem adivinhar quem era a forasteira. Engoli em seco, segurando firme a alça da minha mala.
Dona Vânia quebrou o silêncio:
— Aqui é diferente do que você conhece, Maria. Tem regras, tem respeito, mas também tem perigo. O importante é que você não tá sozinha.
Olhei pra ela com gratidão.
— Obrigada por me receber. Eu... eu não tenho mais ninguém.
Ela parou, me encarou com firmeza e respondeu:
— Tem a gente agora. E pode ter certeza: aqui na comunidade todo mundo se ajuda. Eu vou te ajudar no que você precisar, não se preocupe.
Essas palavras me fizeram refletir. Eu, uma menina de família, educada, criada longe da violência, agora entrando num morro carioca com a promessa de uma nova vida. Era como atravessar um portal: do lado de lá, a Thais morta; do lado de cá, a Thais Maria viva.
No fundo do peito, a esperança pulsava tímida. Quem sabe, nesse recomeço, eu encontrarei de novo o sentido de viver?