SIENNA
O carro de aplicativo freia bruscamente no pé do morro. O motorista, um homem de uns quarenta anos, com a camisa de um time de futebol e olhar desconfiado, encara o retrovisor.
— Aqui eu não subo, moça. Perigoso demais.
Eu suspiro, conferindo o celular pela décima vez. Nenhuma mensagem.
Nada.
Sou Sienna Hope, dezenove anos, australiana de Gold Coast. Loira, cabelo liso até a cintura, olhos azuis e uma pele branca que nunca viu sol de verdade — porque passo a vida dentro de igreja ou biblioteca. Magrela, desastrada e com o coração cheio de fé.
Meu pastor dizia que a fé só é provada no deserto. Eu só não sabia que o deserto ficava num morro do Rio de Janeiro e que meu guia me abandonaria na entrada.
— O Pastor Carlos… ele disse que viria — murmuro para mim mesma em inglês, sentindo o pânico arranhar minha garganta.
Havia combinado tudo por e-mail. Ele deveria estar no aeroporto. Depois, disse que me encontraria aqui, na entrada da comunidade. Mas o sinal do celular é fraco e a última mensagem dele foi há três horas.
— Out, moça. Sai — insiste o motorista, apontando para a rua movimentada.
— Tá bom, obrigada! — falo em meu português ensaiado.
Pego a mala e desço. O carro arranca rápido, cantando pneu, como se fugisse de uma praga.
O calor me atinge como um soco físico. O sol queima. O ar tem uma textura densa, um cheiro de mar misturado com fumaça suspeita e carne assada.
Olho pra cima. A escada é longa, estreita e parece me encarar de volta, desaparecendo entre vielas e tijolos expostos.
Minha mala pesa.
O meu coração também.
No primeiro degrau, tropeço. A mala abre. Um vestido branco cai na poeira vermelha.
— Droga! — xingo baixinho, e logo peço perdão a Deus.
Recolho tudo, sentindo os olhares nas minhas costas. Subo.
Cada degrau é uma batalha. O vestido gruda nas pernas, o suor desce pelas costas, o cabelo vira um ninho de rato. Tento traduzir as pichações no muro enquanto recupero o fôlego:
“AQUI É DO COROA.”
Uma coroa desenhada com tinta vermelha, escorrendo. Parece sangue.
Meu estômago revira. Coroa. Crown. O rei desse lugar?
Mais acima, chego a uma espécie de praça apenas com bancos caindo aos pedaços. Vejo homens armados — armas grandes, que eu só vi em filmes. Um rádio toca uma batida repetitiva e alta. Crianças correm descalças no meio disso tudo, como se fosse normal.
E então eu vejo ele.
Encostado numa pilastra, fumando.
Sem camisa. Apenas uma bermuda jeans gasta e tênis pretos de marca.
Cabelo grisalho, curto, bagunçado com estilo. Pele bronzeada, brilhando de suor e oleosidade.
Deve ter quase cinquenta anos, mas o corpo... Deus, perdoe meus pensamentos impuros, mas o corpo é o pecado esculpido. Músculos definidos, veias saltadas nos braços.
Tatuagens cobrem sua pele como um mapa de guerra — caveiras, rosas, nomes, datas.
Um cigarro descansa atrás da orelha.
E os olhos.
Azuis. Frios. Perigosos.
O olhar dele me atravessa, me despindo sem nem tocar um dedo em mim. Ele traga o cigarro devagar, solta a fumaça para o alto e sorri de canto.
Um sorriso de lobo prestes a atacar.
— Barbie? — pergunta.
A voz dele é rouca, arrastada, grave.
Eu travo no lugar. Entendi a palavra, mas o tom me assusta.
— S-sim. Quer dizer... não! Eu.. chamo Sienna. — Tento formular a frase em português, gaguejando. — Eu... ajudar. Vim ajudar no... na igreja.
Ele dá um passo à frente. Eu dou um para trás instintivamente.
O cheiro dele me envolve. É uma mistura de maconha, perfume masculino e homem perigoso.
— Aqui não precisamos de ajuda, Barbie. — Ele fala em português, rápido demais para eu acompanhar tudo, mas entendo o tom de aviso. — Aqui você precisa de proteção.
Meu coração dispara. Ele percebe minha confusão com o idioma e arqueia uma sobrancelha, mudando a chave.
— Protection — ele diz em inglês, um sotaque carregado, mas perfeitamente compreensível. — You don’t need to help here. You need protection.
A surpresa me atinge. Ele fala inglês.
— Eu... trouxe a Palavra de Deus. — Ergo a Bíblia como quem ergue um escudo medieval.
Ele solta uma risada curta, seca e debochada.
— Deus não sobe morro, gringa. — Ele volta para o português, depois traduz para garantir que eu entenda a ofensa: — God doesn’t come up here. Here, I am the boss.
De repente, um estalo alto.
Um tiro. Depois outro.
Gritos. Correria.
O caos explode ao nosso redor.
Tropeço nos meus próprios pés e caio de joelhos no cimento quente.
Braços fortes me puxam para o chão com violência. O corpo dele me cobre. O peso, o calor, o som do coração dele batendo contra minhas costas — tudo perto demais, intenso demais.
— Stay down! — ele rosna no meu ouvido, em inglês. — Fica quieta.
Outro tiro rebate na pilastra onde estávamos.
Ele levanta num movimento fluido, puxa uma pistola prateada da cintura da bermuda e atira de volta sem nem piscar. Um homem cai lá embaixo, na escadaria onde eu acabei de passar.
Silêncio.
O zumbido no meu ouvido é ensurdecedor.
Ele se vira para mim. Um filete de sangue escorre do braço dele, manchando a pele bronzeada. Os olhos continuam frios, mas agora queimam com adrenalina.
— Welcome to my hill, Barbie. — Ele diz, sarcástico. — Bem-vinda ao meu morro.
Ele me puxa pelo braço com força, me colocando de pé.
— Ei! Let me go! Eu vim em paz! — grito, misturando os idiomas no pânico.
— Paz? — Ele ri, limpando o sangue do braço. — Peace is a luxury, baby. Paz é luxo.
Ele me arrasta até uma casa de tijolo aparente ali perto. Dois caras armados abrem o portão pesado de ferro assim que o veem.
Lá dentro, o cenário é cru: um sofá rasgado, uma TV enorme passando futebol, cheiro de cerveja.
— Sit. — Ele aponta para o sofá.
Obedeço, minhas pernas tremendo tanto que m*l me sustentam.
Ele pega uma garrafa de água de cima de uma mesa bamba e me joga.
— Drink.
Tomo um gole. A água está quente, mas desce aliviando minha garganta seca.
— Como é teu nome mesmo? — pergunta, sentando na mesa de centro bem na minha frente. Ele abre as pernas, ocupando espaço, o olhar pesado sobre mim.
— Sienna. Sienna Hope.
— Hope? Esperança? — Ele traduz, um sorriso irônico nos lábios. — Bonito. Mas inútil aqui.
— E o seu? — pergunto, num fio de voz.
— Coroa.
— Tipo... Crown? Rei?
— Tipo dono, dono desse morro. Owner the hill.
O silêncio pesa entre nós. Ele se inclina devagar, invadindo meu espaço pessoal.
— Sabe por que te salvei, Barbie?
— Porque é o certo? Because it's right?
— Não! — A negativa é brusca. — Porque agora você me deve. You owe me.
Meu estômago se contrai num nó doloroso.
— Eu não devo nada! O pastor Carlos... ele vai vir me buscar!
Ele solta uma gargalhada que não chega aos olhos.
— Teu pastor não entra aqui sem minha permissão. E ele não pediu.
Ele se aproxima ainda mais. Tão perto que sinto a respiração dele no meu rosto. Os olhos azuis me prendem como uma armadilha. É um predador analisando a presa antes do abate.
— Aqui tudo tem preço, Sienna — ele sussurra, o inglês rouco arrepiando minha nuca. — Everything has a price. Even help.
Um garoto magrelo entra correndo, esbaforido.
— Coroa! Os alemão tão subindo a ladeira dois! É operação, viado!
Ele se levanta num pulo, a postura mudando de predador para general. Verifica a munição da pistola.
— Fica aqui. Stay.
— Não! Eu vou embora!
Ele se vira na porta, o olhar fuzilando o meu.
— Você não vai a lugar nenhum. Lá fora você morre em dois minutos.
Ele sai. O portão de ferro bate com um estrondo. Fico sozinha.
Olho ao redor, o pânico tomando conta. Vejo uma porta nos fundos, entreaberta.
Não penso duas vezes. Corro.
Desço as escadas de trás, tropeçando em latas de lixo, rasgando a barra do meu vestido num prego solto. O coração bate na garganta.
Só quero sair daqui.
Chego na rua de baixo, ofegante. É uma viela estreita e escura.
De repente, um carro preto, blindado e imenso, freia bruscamente na minha frente, bloqueando a passagem.
A porta do motorista se abre.
Coroa desce. Ele me encara com um sorriso sombrio que faz meu sangue gelar. Como ele chegou aqui tão rápido? Ele conhece esse labirinto como a palma da mão.
Eu sou só um rato perdido.
— Get in, Barbie. — Ele ordena.
— No! — Cruzo os braços, tentando parecer corajosa, embora esteja tremendo.
— Entra. Ou eu te jogo aqui dentro. — Ele diz, a mão pousando na arma que está na cintura.
Engulo em seco. Entro no carro.
Ele entra logo em seguida, tranca as portas e acelera. Os olhos dele estão fixos na rua estreita, mas sinto sua raiva preencher o veículo.
— Você é louca, Barbie. Crazy.
— E você é um criminoso! — rebato, em inglês.
— E agora você é minha responsabilidade.
— Eu quero ir embora! I want to go home!
— Aqui ninguém vai embora quando quer.
Ele freia bruscamente numa rua vazia, no topo do morro. Ele se vira para mim.
— Olha pra mim, c*****o! Look at me! — Ele grita.
Eu olho.
O ar dentro do carro fica denso, elétrico. Os olhos dele queimam os meus. Por um segundo, achei que ele fosse me bater. Por outro, achei que fosse me beijar, de tão próximo que chegou.
A tensão é palpável, vibrante.
— Você ainda não entendeu — ele diz, a voz baixando para um tom perigosamente suave. — Aqui, Barbie, ou você se adapta... ou o morro engole você viva. Adapt or die.
Ele acelera de novo, subindo por caminhos que parecem desafiar a gravidade.
— Pra onde estamos indo? — pergunto, a voz falhando.
— Pra minha casa. A verdadeira.
— Eu não quero! Tá louco?
— Não perguntei se queria.
Chegamos no ponto mais alto. Um portão automático se abre, revelando uma casa que destoa de tudo. Grande, moderna, com piscina e vista para o mar. O castelo do rei. Ele desce, dá a volta e abre minha porta.
— Welcome to hell, Barbie.
"Bem vinda ao inferno"
Eu desço, tremendo, abraçando meu próprio corpo.
O morro inteiro parece piscar suas luzes lá embaixo, observando.
Ele pega meu queixo com os dedos calejados, forçando-me a olhar para ele. O toque é firme, possessivo.
— Aqui quem manda sou eu. E você vai me obedecer, tá ligada?
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