A Casa do Dono

1516 Words
Sienna Acordo com um tranco, como se tivesse caído de algum lugar alto, sabe? O coração já tá batendo rápido antes mesmo de eu abrir os meus olhos. Por um segundo acho que tô em casa, em Gold Coast, com o cheiro de panqueca da mamãe. Aí eu vejo o teto branco com sanca de gesso, a luz forte entrando pela janela enorme, o céu azul se juntando ao mar atlântico e aí eu me lembro: eu tô no Brasil, no Rio de Janeiro no morro. Na casa do Coroa. Trancada. Ele me arrastou quando chegamos aqui ontem, segurando meu braço tão forte que ainda sinto a marca dos dedos. Eu tentei falar, tentei me soltar dele, disse “you’re hurting me” e “me solta, por favor”, mas ele só me olhou com aqueles olhos azuis gelados e continuou puxando pro andar de cima. Abriu uma porta no fim do corredor, me empurrou aqui dentro e… clic. Trancou. Pelo lado de fora. Primeira coisa que passou pela minha cabeça foi tráfico humano. Eu já vi o documentário produzido pela Netflix na minha cabeça: "O sumiço da Loira australiana" de Bíblia na mão, jovem missionária some num morro do Rio de Janeiro e aparece em site de leilão na dark web. Meu Deus. Depois pensei: não, calma, Sienna, talvez ele me queira como escrava s****l. Aí eu me lembrei do tamanho dele, do corpo musculoso, do jeito que ele me olhou ontem… e pensei: bom, se for pra ser escrava s****l de alguém como ele, até que o pacote é bonito e gostoso pra caramba. Aí eu gritei mentalmente “SENHOR JESUS, PERDOA ESSE PENSAMENTO IMUNDO” e comecei a orar em voz alta, ajoelhada no tapete, até cansar e dormir vestida mesmo. Como eu disse, agora já é manhã. A porta tá… aberta. Só um pouquinho, mas aberta. Levanto devagar. Meu celular está descarregado. O quarto é grande, simples, cama king, criado-mudo, frigobar, guarda-roupa embutido. Tem até banheiro só pra mim. Luxo demais pra prisão, né? Abro o frigobar: água gelada, suco de laranja, Red Bull. Pego uma água, bebo tudo de uma vez. Minha boca tava um deserto. Saio no corredor de fininho. Meus pés descalços no piso frio. O som vem lá de fora: funk pesado, grave batendo no peito, risada de mulher, criança gritando, cheiro de churrasco. Parece festa, mas eu sei que não é. Ando na ponta dos pés. Vejo câmera no teto. Outra. Outra. Caramba, ele vigia a casa inteira o tempo todo? Passo por uma sala enorme, sofá branco, TV do tamanho de parede, piscina lá fora brilhando azul. Tudo muito lindo e tudo... muito perigoso. — Ei, gata! Tá perdida? Dou um pulo tão alto que quase bato a cabeça no lustre. Uma moça de uns vinte e poucos anos tá encostada na parede, braços cruzados, sorrindo torto. Cabelão cacheado preto, piercing no nariz, short jeans rasgado, cropped mostrando a barriga tanquinho. Linda de doer. — Oi, meu nome é Sienna — falo, tentando soar firme. Ela ri alto. — Relaxa, gringa. Eu sou a Jordana. Filha do Coroa. — Ela aponta pro próprio peito. — Tu fala português igual dublagem de novela mexicana, sabia? Eu fico vermelha na hora. — É… eu tô aprendendo ainda. — Vem, vem cá. Tô morrendo de curiosidade de ver a "Barbie" de perto. Ela me puxa pela mão. Não tem jeito de fugir. Me leva pra cozinha espaçosa, toda de inox e mármore. Tem uma mulher mais velha fritando ovos, outra finalizando o café. Jordana pega duas xícaras. — Senta aí. Café brasileiro é forte, prepara o coração. Eu sento. Bebo. Queima a língua, mas é bom. — Então… você é filha dele? — pergunto. — Filha caçula, a princesinha do papai. — Ela revira os olhos, mas dá pra ver que gosta. — Tenho mais dois irmãos. A Lohana é a mais velha, chata pra c*****o, já já ela aparece. E o Lucca… esse tu vai conhecer e vai querer correr. — Por quê? — Porque ele come qualquer coisa que se mexe e tem pepeca. — Ela ri. — Mas relaxa, meu pai corta o p*u dele se ele encostar em tu. Eu engasgo com o café. Não entendi totalmente o que ela disse, mas a linguagem corporal foi clara. — Jesus amado! — Isso aí, chama "Ele" logo, você vai precisar. A gente ri. Ela é… legal. Debochada, mas legal. Em dez minutos já tô ensinando “Jesus te ama” pra ela, e ela responde “Jesus te ama, mas eu te amo mais, delícia”. Eu corrijo, mas acabo entendendo que ela erra de propósito, a gente ri mais ainda. Aí entra a Lohana. Cabelo liso, preto, até a b***a. Olho puxado, mas não asiático, é algo brasileiro mesmo, algo dessas misturas de raças, boca carnuda, corpo de academia. Vestido colado vermelho. Ela me mede de cima abaixo como se eu fosse uma barata no prato. — Quem é essa aí? — pergunta, com voz fria, um tom de desprezo. — A Barbie missionária, mana. Papai trouxe ontem. Linda né? É australiana. Lohana arqueia a sobrancelha. — Papai trouxe? — Ela olha pra mim como se eu fosse culpada de algum crime. — Interessante. Logo depois entra o Lucca. Alto, tatuado, cabelo raspado nas laterais, brinco e correntes de ouro. Olha pra mim e… meu Deus. Os olhos dele não tinham fé. Tinham fogo. Fogo puro e muita maldade. Ele sorri de canto, lambe o lábio. Eu abaixo o olhar na hora, sentindo o rosto queimar. — E aí, loirinha? — ele fala, voz grossa. — Dormiu bem? — Sim… obrigada — sussurro. Jordana dá um tapa na nuca dele. — Para de olhar pra ela assim, seu tarado. Papai te mata. Eu fico impressionada que o Coroa contou pra todos os filhos que eu dormi na casa dele, que ele me trouxe pra cá a força, mas ninguém parecia impressionado com isso. O almoço é na mesa grande. Churrasco, arroz, feijão, saladas, farofa. Eu nunca comi tanta carne na vida. O Coroa não aparece. Os filhos dele ficam me olhando com curiosidade o tempo todo. Lohana com raiva, Lucca com vontade, Jordana rindo da minha cara toda hora que eu falo do jeito errado. Depois do almoço os três saem. A casa fica mais quieta. Eu fico na sala, sem saber o que fazer. Aí ele aparece. Coroa entra pela porta dos fundos, sem camisa, suor escorrendo no peito, cicatrizes brilhando. Olho roxo começando a formar no supercílio, sangue seco. Meu coração dá um pulo. — Meu Deus, você tá machucado! — levanto correndo, pego um pano na gaveta da cozinha, umideço na pia sem nem pensar dias vezes. Ele segura meu pulso no ar. Forte. Dói um pouco. — Não encosta — rosna, voz tão baixa que arrepia. Eu travo. Ele tá tão perto que dá pra sentir o calor do corpo dele, o cheiro de suor de homem. Meu joelho fraqueja. — Eu… eu só queria ajudar — sussurro. Ele me encara. Muito tempo. O olhar desce pro meu lábio, sobe de novo. Solta o pulso devagar. — Eu quero ir embora! — digo cansada dessa brincadeira estranha. — Tu tá mais segura aqui do que em qualquer outro canto do Rio agora — fala, limpando o sangue com as costas da mão. — Quanto ao pastor… amanhã eu mesmo levo tu até ele. Hoje tu ainda vai ficar aqui, debaixo do meu teto. — Mas eu… — Sem mas. — Ele corta. — Aqui tu obedece. Ponto. Ele sai. Bota a arma na mesinha, sobe a escada rápido. Eu fico parada, coração batendo na garganta. A noite, tomo um banho, ainda estava com o vestido da viagem sujo. Visto um pijama de panda, que a minha mãe mesma comprou pra eu trazer. Eu tô no quarto, deitada de bruços, pés pra cima, tentando ler a Bíblia, mas as letras dançam. Não consigo parar de pensar nele. No cheiro. No jeito que ele segurou meu pulso. Na cicatriz nova no rosto. Eu deveria orar, mas a única coisa que consigo fazer é pensar no cheiro dele. Ouço o portão abrindo. Motor de carro. Passos pesados. Nem sabia que ele tinha saído, deve ter sido na hora que tomei banho. Ele entra no quarto sem bater. Ainda suado, ainda sem tratar o ferimento. Sem camisa de novo. Olha pra mim como se eu fosse um problema que ele ainda não resolveu. — Amanhã tu desce comigo — fala, voz rouca de cansaço e de outra coisa que eu não sei nomear. — Quero ver se tua fé aguenta o meu morro de verdade. Ele fica na porta um segundo a mais. Olhar pesado. Depois sai, batendo a porta. Eu fico lá, deitada, peito subindo e descendo rápido. Medo. Raiva. Curiosidade. E um calor estranho que eu nunca senti antes. Senhor, me ajuda. Porque amanhã eu desço o morro com o próprio d***o. E eu não sei se vou conseguir resistir. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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