A Filha e o Pai

1172 Words
Lohana Eu sou Lohana, vinte e seis anos, filha mais velha do Coroa. Morena, cabelo liso preto até a b***a, olho puxado da mãe, corpo que eu malho todo dia pra manter em forma porque aqui no morro ou tu é forte ou tu vira poeira. Tenho um salão lá embaixo, ofereço serviços como unha, cabelo, sobrancelha, extensão de cílios, depilação, e de quebra ouço tudo que rola na comunidade. Sou o radar da família. Nada passa por mim. Minha mãe morreu tem dezoito anos. Câncer no peito, rápido e c***l. Ela era o equilíbrio da casa: doce, meiga, ingênua até demais pro mundo que a gente vive. Sempre com um sorriso, sempre acreditando que no fundo as pessoas são boas. Meu pai amava ela de um jeito que eu nunca vi homem amar mulher. Depois que ela foi embora, ele fechou o coração a sete chaves. Teve umas minas sim, umas aventuras, umas que ele dormia de vez em quando, mas nada sério. Nenhuma ele trouxe pra tomar café da manhã, almoçar ou jantar com a gente. Nenhuma ele olhou do jeito que olha pra essa gringa que caiu do céu. Sienna. Quando a Jordana me ligou falando “Mana, o papai trouxe uma loira australiana pra casa”, eu quase caí dura. Pensei que era zoeira. Aí eu vim aqui e vi com meus próprios olhos: uma menina branca que nem leite, magrinha, olho azul chamativo, vestidinho de crente, tropeçando nas palavras em português como se fosse criança aprendendo a falar. Dezenove anos. Dezenove, p***a! Meu pai tem mais de cinquenta. Ele agora fica com cara de quem levou tiro no peito toda vez que ela sorri. No começo eu achei que era só proteção. Ele salvou ela de tiroteio, trouxe pra casa porque o morro tava pegando fogo, blá blá blá. Mas não. Não é só isso. Eu vejo o jeito que ele olha pra ela quando acha que ninguém tá prestando atenção. Olhar de homem apaixonado. Olhar que ele só teve com a minha mãe. E o pior: Sienna tem o mesmo jeito da minha mãe. Não a cara — minha mãe era morena, baixinha, brasileira raiz. Mas o jeito. Aquele jeito meigo, de quem acredita que o mundo pode ser salvo com um abraço e uma oração. A ingenuidade, a doçura na voz, o sorriso tímido que ilumina tudo. É como se Deus tivesse mandado uma versão loira e australiana da minha mãe pra bagunçar a vida do meu pai de novo. Eu fico olhando ela o dia inteiro, tentando entender. O que ele viu nela além desse jeito? Porque, vamos ser sinceras, ela é nova demais. Nova demais pro morro, nova demais pra ele, nova demais pra entender o peso que carrega um homem como o Coroa. Ela olha pra ele com aqueles olhos azuis cheios de admiração, medo e uma pitada de outra coisa que eu conheço bem. Mas ela não sabe o que tá pisando. E ele… ele tá se afundando. Eu tenho medo. Medo dela se machucar. Aqui não é lugar pra princesinha. Um dia errado, uma operação policial, um alemão subindo a ladeira… e ela vira estatística. E medo dele se machucar também. Porque se ele se apegar de verdade e algo acontecer com ela, ele não aguenta. Ele já perdeu a mulher da vida dele uma vez. Não vai sobreviver a segunda. Hoje eu vim pegar dinheiro pro salão, como sempre. Cheguei e ouvi voz em inglês vindo do quarto dela. Porta entreaberta. Meu pai lá dentro. Eu parei no corredor, fingindo mexer no celular, mas escutando tudo. Ela tava chorando. Chorando baixinho, falando com os pais na Austrália. Contando que tá bem, que tá morando na casa de um “homem bom”. Eu quase ri. Homem bom? Meu pai? O rei do morro, o cara que manda matar sem piscar? Aí os pais dela começaram a perguntar, desconfiados pra c*****o, e ela desconversando toda atrapalhada. Aí meu pai apareceu no vídeo. Sem camisa, tatuado, gigante, com aquela cara de quem come gente no café da manhã. Eu vi a expressão dele pela fresta da porta: primeiro tenso, depois quase rindo quando os pais dela congelaram na tela. Ele falou pouco, mas falou firme. “Eu cuido dela. Prometo.” Prometo. Meu pai não promete pra qualquer um. Quando desligou, ela chorou mais. Ele abraçou ela. Abraçou de verdade, daqueles abraços que engolem a pessoa inteira. Ela enterrou o rosto no peito dele e ele fechou os olhos como se doesse e fosse bom ao mesmo tempo. Eu saí de fininho, desci pra cozinha, fingi que tava chegando só agora. Mas meu peito tava apertado. Aper-ta-do. Porque ali eu vi que não é brincadeira. Não é proteção passageira. Não é t***o de homem velho por mina nova. É sentimento. Sentimento grande, daqueles que destroem tudo se der errado. Mais tarde, no fim da tarde, eu voltei. Precisava falar com ele. Encontrei ele na varanda, fumando, olhando pro nada. — Pai… — comecei, sentando do lado. Ele nem olhou pra mim. — Fala, filha. — Sobre a Sienna… Aí ele virou. Olhar pesado. — O que tem ela? — Pai, ela é nova. Nova demais. Ela não é daqui, não entende nada desse mundo. E tu… tu tá se envolvendo. Eu vejo. A gente vê. Ele tragou o cigarro devagar. — E daí? — Daí que ela vai se machucar. Ou tu vai. Quando ela for embora, quando a missão acabar, quando os pais dela botarem ela num avião… o que tu vai fazer? Ele ficou quieto um tempo. Depois soltou a fumaça pro alto. — Eu cuido dela enquanto ela tá aqui. Ponto. — Não é só cuidar, pai. Tu tá apaixonado. Apaixonado pra c*****o. E ela lembra a mamãe. O jeito dela… é igual. Ele travou. Eu vi. A mão dele apertou o corrimão com força. — Não fala da tua mãe. — Mas é verdade! E por isso que tá doendo ver. Porque tu tá revivendo uma coisa que já te matou uma vez. Ele se levantou de repente, jogou o cigarro no chão, pisou com raiva. — Lohana, eu te amo, mas não se mete. Isso é coisa minha. — Pai… — Acabou o papo. Ele entrou. Bateu a porta da sala com força. Eu fiquei lá fora, olhando pro morro acendendo as luzes. Meu coração pesado. Subi de novo, devagar. Passei pelo corredor. A porta do quarto dela tava entreaberta de novo. Ouvi um som baixinho. Choro. Choro abafado no travesseiro. Ela tava encolhida na cama, de costas pra porta, ombro tremendo. Eu parei. Olhei pra ela um tempo. Aquela menina perdida, tão longe de casa, tão frágil nesse ninho de cobra que é o morro. E, pela primeira vez, eu não senti raiva. Senti pena. E um pouco de admiração, porque ela ainda tá aqui. Ainda sorri. Ainda acredita. Respirei fundo. Levantei a mão. Bati na porta devagar. — Sienna? … Posso entrar? ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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