Entre Dois Mundos

1328 Words
Sienna Eu não consegui dormir direito depois daquele jantar. Fiquei rolando na cama até altas horas, olhando pro teto, sentindo o coração bater descompassado toda vez que lembrava da voz dele baixa no meu ouvido: “Tu achou ele bonito, Barbie?” Não, eu não achei o Saul bonito. Quer dizer, ele é bonito, objetivamente falando. Mas não daquele jeito que faz meu estômago revirar, que faz minha pele arrepiar só de pensar. Esse efeito só um homem provoca em mim ultimamente. E esse homem tá do outro lado da parede, provavelmente fumando na varanda, olhando pro morro como se fosse dono do mundo inteiro. Porque é. No dia seguinte, acordo cedo. O sol já tá invadindo o quarto, o funk lá embaixo já tá tocando, e eu ouço a voz da Jordana rindo de alguma coisa na cozinha. Desço de pijama, cabelo bagunçado, cara amassada. Coroa tá lá, de costas, fazendo café. Sem camisa, claro. Sempre sem camisa. Costas largas, tatuagens que contam histórias que eu nem quero imaginar, cintura fina, bermuda baixa no quadril. Eu paro na porta só olhando. Ele sente, vira devagar. — Bom dia, Barbie — fala, voz rouca de sono. — Dormiu bem? — Mais ou menos. Ele serve café pra mim sem perguntar, coloca na minha frente. Sento no balcão alto. A gente fica em silêncio um tempo. Silêncio que pesa, mas que também é… confortável? Não sei explicar. Aí eu resolvo encarar o elefante na sala. — Coroa… — digo o nome que sai como um sussurro. Ele dá um riso seco, encosta no balcão do meu lado, braços cruzados. O braço dele roça no meu de leve e eu sinto um choque. — Fala Barbie... Eu fico vermelha, mas não baixo o olhar. — Você ficou com ciúmes? Ele me encara. Muito tempo. Aí sorri de canto, aquele sorriso perigoso. — Ciúmes? Eu mato por menos, Barbie. Meu coração dispara. Eu gosto. Gosto demais disso. Gosto de saber que ele sente alguma coisa, que eu mexo com ele do mesmo jeito que ele mexe comigo. A verdade é que essa nossa relação é estranha pra caramba. Não é amizade — amigo não olha pra amigo do jeito que ele me olha. Não é prisão — prisioneiro não sente borboletas no estômago quando o carcereiro chega perto. Não é namoro, não é paixão, não é nada que eu consiga nomear. Mas é alguma coisa forte. Forte demais. Eu mudo de assunto antes que eu faça alguma besteira, tipo pular em cima dele ali na cozinha. — Eu… eu preciso ligar pros meus pais. Faz dias que não falo com eles. Vão estar preocupados. Ele assente, sério. — Usa o Wi-Fi da casa. O sinal é bom. Subo pro quarto, pego o celular. Mãos tremendo. Ligo em vídeo. Na Austrália já é noite, mas eles atendem no segundo toque. — Sienna! Oh meu Deus, querida! — a voz da mamãe explode no alto-falante, olhos cheios de lágrima na hora. — Oi, mãe! Pai! Sinto muita saudade de vocês! — eu já começo a chorar também. Meu pai aparece do lado, cabelo desgrenhado, óculos tortos. — Querida, estávamos preocupados! Onde você tá? Por que demorou tanto pra ligar? Eu respiro fundo, seco as lágrimas e limpo o nariz. — Eu tô bem, juro. Tô… tô no Rio. A missão começou, mas teve uns probleminhas no começo, sabe? O pastor não me encontrou, mas agora tá tudo certo. Mamãe franze a testa. — Probleminhas? Que tipo de probleminhas, Sienna Hope? Eu dou risada nervosa. — Nada grave! Só… atrasos. Mas agora eu tô morando na casa de um homem bom. Ele me protegeu, me acolheu. As pessoas aqui são incríveis. Silêncio do outro lado. Meu pai pigarreia. — Morando na casa de um homem? Que homem? Onde exatamente? Quem é ele? — É… um líder da comunidade. Ele cuida de tudo aqui no morro. É seguro, juro! Tem creche, igreja, tudo. Mamãe parece que vai ter um treco. — Morro? Sienna, você tá numa favela? Com um homem que você nem conhece? — Ele é bom, mum! Ele salvou minha vida, literalmente. Tem filhos, família, tudo direitinho. Meu pai endurece a voz. — Endereço. Agora. E queremos falar com esse “homem bom”. Eu engulo em seco. Olho pro lado. Coroa tá encostado na porta do quarto, braços cruzados, sem camisa (claro), tatuado, gigante, olhando pra mim com uma expressão que é metade diversão, metade tensão. Ele arqueia a sobrancelha como quem diz “vai chamar ou não?”. Eu suspiro. — Tá… espera aí. Viro o celular. Coroa se aproxima devagar, se inclina pra entrar no enquadro da câmera. O peito tatuado, os braços musculosos, a cicatriz no abdômen, o olhar azul gelado. Tudo ali, na tela, pra meus pais verem. Silêncio absoluto do outro lado. Mamãe solta um “oh…” baixinho. Papai fica branco que nem papel. — Hi… — Coroa fala em inglês carregado de sotaque carioca. — Eu sou o Coroa. Cuido da Sienna aqui. Mais silêncio. Papai recupera a voz primeiro. — Jovem... quantos anos você tem exatamente? Coroa ri baixo. — Old enough. — ele responde em inglês que tem idade suficiente. Mamãe visivelmente entra em pânico. — Sienna, querida, o que está acontecendo? Esse homem… ele… ele parece… — Perigoso? — Coroa completa, sorrindo de canto. — Sou mesmo. Mas com ela, não. Eu quero morrer. Quero entrar num buraco. — Mãe, pai, ele tá brincando! Ele é protetor, só isso! Papai me ignora, fala direto com ele. — Nós queremos nossa filha em casa. Agora. Vamos comprar passagem hoje mesmo. Coroa endurece o olhar, mas não fala nada. Só fica me olhando de lado. Eu entro na frente. — Não! Eu não vou voltar agora. A missão tá só começando. Eu tô bem, juro. Eu amo vocês, mas eu preciso ficar. Mamãe começa a chorar. — Sienna, please… isso não tá certo. Você sozinha aí, com… com esse homem… esse homem nu. — Eu não tô sozinha! Tem a igreja, o pastor, as crianças… eu tô fazendo o bem, mum! Papai respira fundo. — Sienna, venha pra casa AGORA. A voz dele é aquela voz de pai que não aceita não. A voz que me fazia obedecer desde os cinco anos. Eu sinto as lágrimas escorrendo. — Eu… eu não posso. Ainda não. Coroa coloca a mão no meu ombro, aperta de leve. Só pra me dar força. Eu olho pra ele. Ele assente, quase imperceptível. — Eu cuido dela — ele fala pros meus pais, voz firme. — Prometo. Papai olha pra ele por muito tempo. — Se acontecer qualquer coisa com minha filha… — Não vai acontecer — Coroa corta. Desligamos. Eu fico olhando pro celular preto, chorando baixinho. Coroa fica do meu lado, sem falar. Depois de um tempo, ele pega o celular da minha mão, coloca no criado-mudo. — Vem cá. Ele me puxa pro abraço. Abraço de verdade. Braços fortes em volta de mim, peito quente, cheiro de homem que me deixa tonta. Eu enterro o rosto no ombro dele, choro tudo que tava engasgado. — Eles têm razão de ter medo — sussurro. — Talvez — ele responde, voz baixa, rosto enterrado no meu cabelo. — Mas eu tenho mais medo ainda de te deixar ir. Eu levanto o rosto. Olho pra ele. Tão perto. Boca perto. Olho azul me engolindo. — Por quê? Ele não responde com palavras. Só aperta mais o abraço. E eu entendo. Eu tô entre dois mundos agora. O mundo lá de baixo, seguro, com panquecas no domingo e pais que me amam. E o mundo aqui de cima, perigoso, quente, com um homem que me olha como se eu fosse o único ar que ele respira. E, pela primeira vez, eu não sei pra qual lado eu quero ir. Porque o lado errado tá começando a parecer muito certo. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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