Capítulo- V. Sinais.
" Sinais, me mostraram o caminho até você. Sinais me ajudam a perceber que meu caminho é você, mesmo vindos de um lugar distante, de uma outra vida."
Varuna
Um dia depois...
Ela cruzou meu caminho por alguns segundos. E, mesmo assim... parece que foi por dentro. A sensação foi a de um raio me rasgando, percorrendo meu corpo como quando cai dentro das águas de um rio.
Era uma manhã abafada. O sol já lambia o céu quando saí com Everaldo rumo à praia de Areia Preta. A cidade parecia suspensa no calor, com o vento do mar preguiçoso e úmido. Eu tentava manter o foco no motivo pelo qual viemos até ali — visitar o apartamento de alto padrão que meu avô tanto insistia em adquirir. Um lugar à beira-mar. Vista privilegiada. Estrutura de luxo. Não era um novo começo, mas uma forma de fazer o dinheiro ser impregnado em um bem durável. Dinheiro ganho por meios ilícitos? Talvez. Meu avô é o que chamam de velho lobo da política.
No entanto, nada me preparou para o que iria acontecer no caminho até a praia de Areia Preta. Eu sequer cogitava a possibilidade de me abalar tanto, de criar dentro de mim algo descomunal por alguém que vi por acaso.
Mas vi... eu a vi.
Não sei dizer de onde surgiu. Estávamos cortando a via principal. Ela caminhava distraída pela margem. Cabelos castanhos, soltos, dançando com o vento. Rosto pequeno, olhar de vidro — familiar, mas ao mesmo tempo estranho. Foi como uma colisão sem som. Um arrepio percorreu minha espinha, e por um segundo eu não soube mais onde estava. Meus olhos grudaram nos dela como se minha alma tivesse lembrado de algo que minha mente ainda não alcançava. Senti seu cheiro cada vez de mim mais perto. E então ela se foi, engolida pelo movimento da rua, pelo afastar do carro. Ela ficou para trás como se nunca tivesse existido.
Ela, uma menina que nem se aproxima do meu tipo. Sou adepto das loiras, biótipo de modelo, curvas marcadas, rosto esculpido e olhos claros.
— Tá vivo aí, Varuna? — Everaldo cutucou meu braço, rindo.
Assenti, tentando engolir em seco, mas o gosto era de areia.
A corretora já nos esperava em frente ao prédio. Uma mulher alta, de vestido social colado e salto fino demais para o calçamento da orla. Ela sorriu, cumprimentou-nos com firmeza e logo iniciou seu discurso profissional:
— Essa unidade tem cento e cinquenta metros quadrados. Três suítes, varanda gourmet, pé-direito elevado e possibilidade de ampliação da área de serviço.
Enquanto ela falava, meu corpo estava ali, mas minha cabeça... não. Eu via a boca da mulher se mexendo, ouvia palavras como “porcelanato”, “acabamento de alto padrão”, “hidráulica italiana”, mas dentro de mim o que ressoava era outra coisa: quem era ela?
A desconhecida que atravessou meu peito sem pedir licença.
— Se quiserem, posso providenciar o projeto de personalização com nosso arquiteto parceiro — continuava a corretora, entusiasmada.
Everaldo, claro, não perdia tempo. Encostado na bancada de granito da cozinha, flertava descaradamente com a mulher.
— O projeto pode incluir uma jacuzzi... com champanhe e companhia? — disse ele, com um sorriso torto.
A corretora riu, fingindo diplomacia, e seguiu com a apresentação, levando-nos para o quarto principal com vista para o mar.
Eu? Eu m*l vi a vista.
Quando a visita terminou, ela olhou para mim, esperando uma resposta. O apartamento era incrível, não havia dúvidas. Mas minha mente estava trancada num rosto que eu só vi por cinco segundos. Mesmo assim, respondi:
— Eu vou ficar com o imóvel. Meu advogado entrará em contato para tratar dos detalhes do contrato.
A mulher pareceu satisfeita. Everaldo lançou um olhar surpreso.
— Rápido assim, primo?
— Decidido. — respondi, seco.
No caminho de volta para o carro, Everaldo não resistiu:
— Você tá estranho, Varuna. Olhar perdido, distante... Tá sentindo alguma coisa?
— É só impressão sua. — cortei.
Mas não era. Nada estava normal desde aquele pulo no quebra-molas.
— Bora tomar uma gelada ali no quiosque? — sugeriu ele, apontando para o bar de madeira à beira da praia. — Tu tá tenso. Bora relaxar.
Topei. Talvez o problema fosse só cansaço. Minha mãe me acordou cedo demais. Talvez fosse só isso.
O bar tinha aquele estilo rústico de litoral: coberto de sapé, bancos de madeira, cheiro de peixe frito no ar. Sentamos. Pedimos uma porção generosa de peixe e duas cervejas.
Everaldo, como sempre, começou a observar as mulheres na areia.
— Olha aquela ali, de biquíni verde... Que pecado... — disse, rindo. — Eu fico doido com essas mulheres da praia. Tudo parece propaganda de cerveja.
Ri, por educação. Por fora, eu fingia atenção. Por dentro, o nome dela — que eu nem sabia — queimava como ferro quente.
— E aí, como tá a prefeitura? — perguntei, tentando mudar de assunto.
Everaldo sorriu, malicioso.
— Tá tudo do mesmo jeito... Ou seja: esquema rolando solto. Verba da saúde desviada, educação então nem se fala. Tu acha que tem escola com lousa digital? Tem nada. Mas o dinheiro tá vindo. Só que mamãe não me libera pra comprar o carro que eu quero. Diz que vai chamar atenção demais.
Assenti, mas metade das palavras dele nem entrou na minha cabeça. Eu só conseguia ver aqueles olhos me olhando por dentro.
Quando a cerveja terminou, voltamos para Barra do Rio. Cada um seguiu seu caminho. Eu estava me sentindo estranho, com algo berrando dentro de mim, algo me arranhando as entranhas. Passei pela sala em silêncio, ninguém me viu. Subi, precisando ficar sozinho, tentando entender o que estava acontecendo comigo.
No meu quarto, joguei o corpo na cama. Liguei a música, retirei os sapatos e me deitei. Senti o frio vir, um arrepio que começou na espinha e se espalhou pelos braços. Encolhi-me.
Estava tremendo.
O som da música virou um ruído distante. A imagem dela... aquele rosto... voltou. E ficou. Como se estivesse tatuado no escuro atrás das minhas pálpebras. Minhas mãos ficaram geladas. Meus dentes começaram a bater. Fechei os olhos, a cama balançava conforme meu corpo sacudia com a febre. Apertei os olhos com força. Não era abstinência por causa das drogas — eu me controlava no uso para não passar por isso.
Um ruído vindo do corredor me fez abrir os olhos. A porta se escancarou. Era minha mãe.
— Varuna?! — a voz dela estava em pânico. Se aproximou, me tocou e ofegou: — Você tá queimando de febre, meu filho!
Correu até o banheiro, voltou com uma toalha molhada e colocou sobre minha testa. Seus olhos estavam assustados, buscando respostas que nem eu tinha.
— Eu vou buscar um remédio. Fica quieto. Deve ser alguma virose... Você tava bem hoje de manhã... Não entendo isso!
Anick saiu apressada, e logo voltou com um comprimido e um copo d’água. Ajudou-me a beber, depois sentou-se na beirada da cama, acariciando meus cabelos.
— Vai passar, meu filho. Vai ficar tudo bem — repetia, suavemente.
Fechei os olhos, levado por um torpor quente e denso. Dormi... ou delirei, não sei.
E então veio o sonho. Ou um quadro pintado pelo meu cérebro, fruto de uma ilusão inexistente.
Eu estava numa casa estranha, com paredes pintadas e móveis antigos cobertos de poeira. De repente, uma família inteira entrou, como se a casa fosse deles. Um homem de olhar calmo por trás dos óculos, uma mulher de fala impenetrável, duas crianças e uma jovem.
— Saiam! — eu gritava. — Essa casa é minha!
Mas eles não me ouviam. Continuavam andando, mexendo nas minhas coisas. Fui tomado por uma fúria absurda.
— Vocês não pertencem aqui! — eu berrava.
E ninguém escutava.
Acordei de supetão, com o coração aos saltos no peito.
Anick ainda estava ao meu lado, segurando minha mão.
— O que foi, meu filho? Teve um pesadelo?
Assenti com a cabeça, sentindo o suor escorrer pelas têmporas.
— Um sonho estranho...
— Coisa da febre. Você precisa descansar mais um pouco. Eu vou trazer seu almoço, tá?
Ela saiu do quarto, deixando um silêncio cheio de tensão atrás de si.
Então, sozinho outra vez, sussurrei:
— Quem é você?
E o arrepio voltou.
Assim como ocorre agora, enquanto mergulho dentro do mar, tentando distrair a cabeça. Dou algumas braçadas rumo à imensidão azul, tentando cansar o corpo. O gosto da água salgada invade minha boca.
Puxo o ar.
"Quem é você, menina? Quando vou te ver de novo?"
E mesmo sem nunca ter a tocado, a sensação desperta em mim e de que me pertencia– bem lá no fundo.