Espera

3036 Words
Capítulo-III. Espera. " Vivemos a eterna espera de acharmos nossas almas gêmeas, aquelas pessoas que certa forma foram criadas para ser o nosso complemento e razão de existência. As vezes nós reencarnos e eles não, então vivemos uma vida nessa espera, porque ainda não é o momento." Varuna Após a chegada dos meus avós e do meu pai, o café da manhã se transforma em um verdadeiro 'festival' de conversas animadas. Os temas em destaque giram em torno de política e estratégias, enquanto eu prefiro me manter à margem, limitando-me a compartilhar minha modesta opinião apenas quando sou solicitado. Minha avó, com seu entusiasmo contagiante, fala sobre sua galeria, repleta de pinturas e esculturas. Ela se orgulha do que faz e, para ser sincero, possui um talento admirável. — Oi, família! Todos reunidos! — chega Everaldo, falando alto, esquecendo da saudação matinal. No entanto, sua voz soa animada. Sua atmosfera é alegre e descontraída, como sempre. Olho na direção do meu primo. Percebo quando minha mãe solta um comentário inaudível, enquanto meu pai lança um olhar de reprovação ao sobrinho. Kayros não suporta a falta de educação e considera deplorável que alguém interrompa uma conversa em andamento. Everaldo finge não entender — ou, se entende, prefere ignorar. Com sua educação refinada, minha avó o convida a se juntar a nós, como não poderia deixar de ser, sendo uma verdadeira dama da sociedade paulistana. — Aceito o convite, pois saí de casa às pressas. “Fazer hora” não era uma opção, e Varuna quer ir para Areia Preta. Pensei que seria melhor não perder tempo. — Protelar, sobrinho. Use palavras que estejam mais de acordo com o nosso vocabulário impecável — diz Kayros, balançando a cabeça em desaprovação. Ele não perde a chance de repreender Everaldo, que, por sua vez, faz ouvidos moucos, mais interessado no iogurte com damasco do que nas reprimendas do tio. Cumprimento Everaldo com um leve aceno de cabeça, e ele se senta à minha frente, começando a se servir. — Vamos na sua máquina ou no meu carango? — pergunta. — Tá difícil arrancar uma máquina quente da senhora vereadora, que eu conheço como minha mãe. Meu pai se engasga com o café, ficando vermelho como a geleia de cereja cujo pote está lacrado ao lado do meu prato. Sorrio ao ver como Everaldo consegue deixar Kairós em apuros; parece se divertir com isso. Meu pai sempre tenta demonstrar aos meus avós que está no mesmo nível que minha mãe, embora todos saibamos que isso não é verdade. Minha mãe herdou uma fortuna antiga, desde os tempos do meu tataravô, enquanto Kayros se ergueu na política, muitas vezes utilizando métodos questionáveis para enriquecer. Para ele, ver Everaldo agir sem o mínimo de educação é uma forma de expor as falhas da família. Desvio o olhar e encontro o do meu avô, que traz um carinho paternal, mas também uma tristeza quase palpável. Finjo não perceber — aquele olhar é familiar, conheço há tempos, não só dele, mas também da minha avó. Tentando mudar de assunto, deixo escapar: — Vou passar um pouco de geleia de tâmaras em uma fatia de queijo minas. Adoro a combinação do doce com o salgado e a suavidade que essa mistura proporciona ao meu paladar. Minha mãe me lança um olhar repleto de ternura e, fingindo não notar, desvio o olhar para Everaldo, que se delicia com uma fatia de bolo de coco gelado. — Deixo você dirigir — comento, enquanto corto o queijo e o levo à boca com a geleia. — Esse é o cara! Já declarei antes, se não, fique sabendo agora: dos meus primos, você é o meu favorito. Se eu não tinha dito, agora é do seu conhecimento. Sorrio, apreciando a autenticidade de Everaldo, a maneira como se expressa sem artifícios, sendo simplesmente ele mesmo, tanto para quem gosta quanto para quem não. — Quem te ensinou a comer geleia de tâmaras com queijo branco, meu neto? — pergunta minha avó, colocando o garfo de lado. — Sempre comi — respondo, surpreso com a emoção em seu olhar. Logo, um leve arranhar de garganta ecoava na mesa. Meu avô deixava o guardanapo ao lado do copo. — Com licença, preciso de um ar — disse ele. Minha mãe o acompanhou. Aproveitando a calmaria, Anice se senta ao meu lado. Seus olhos estão marejados, e ela desliza a mão enrugada pelo meu ombro. — Me abraça, meu neto — pede com a voz trêmula. — Claro, vó — respondo, envolvendo seu pequeno corpo em meus braços. — Você é lindo, meu menino. Sou muito grata a Deus e ao universo por estar viva para ver você chegar a este mundo. Achei que você demoraria mais para vir, meu amor. Não compreendo o porquê de tanta emoção. — Vó... — chamo, e Anice se afasta, segurando meu rosto. Seus dedos enrugados percorrem minha pele, como se quisesse confirmar que eu sou real. — Te amo, meu menino — sussurra. — Eu também te amo, Dona Anice — retribuo, com carinho sincero. Às vezes, ao olhar para ela, sinto um afeto intenso, assim como ao olhar para a minha mãe sinto um afeto fraternal que não consigo explicar — uma conexão intensa e inexplicável tenho com essas duas damas da minha família. Beijo suas mãos e, elevando o olhar, digo: — Preciso ir. Não quero passar o dia inteiro em Areia Preta. — Você não trouxe aquela moto, trouxe? — Não, vó. Minha mãe quase surtou quando a comprei. Se eu trouxesse, com certeza ela daria um jeito de sumir com a minha moto. Está guardada na garagem da minha casa em Itu. Adquiri a moto uma semana antes de virmos para Barra do Rio. Já fazia tempo que pensava em comprar uma igual à que vi em uma revista. Claro que omiti isso da senhora Anick — suas chantagens emocionais me dariam dor de cabeça. Quando era mais novo, sonhava com uma moto, mas minha mãe nunca permitiu. Na adolescência, meu maior desejo era uma de modelo esportivo deslumbrante. E obtive, no meu aniversário de 18 anos, meu pai — ciente da minha paixão — me presenteou com uma. Para minha mãe, foi uma tragédia. Ela surtou, discutiu com meu pai diante dos convidados, chorou copiosamente e olhou para a moto como se fosse uma guilhotina. Voltou para dentro de casa, regressou com uma garrafa de álcool e fósforos. Tentei impedir, mas ela ateou fogo no presente. A situação quase resultou em separação. Naquela noite, senti uma raiva imensa dela. Achava que não tinha o direito de decidir por mim. Hoje entendo que o trauma da morte do irmão dela num acidente de moto estava por trás da proibição — mas isso não amenizava meu ressentimento à época. Levanto da cadeira, precisando falar a sós com Everaldo.. Meu primo me observa enquanto toma um gole de café, faço um gesto sutil com a cabeça indicando o andar de cima. — Vamos, Everaldo, a corretora marcou. visita para às dez e vinte. — Espero que ela seja bonita — diz meu primo para dissabor do meu pai que lança um olhar cortante ao rapaz. — Everaldo! — quase grita. — Desculpa, tio. Não está aqui quem falou — responde, erguendo as mãos para o ar. Everaldo ergue-se, deixando à mesa. Subimos a escada, atravessamos o corredor e fecho a porta quando adentramos ao meu quarto. — Everaldo, preciso de um pouco de erva. Minha mãe jogou o que eu tinha fora.- sou direto sem rodeios, não tenho paciência para isso. — P*rra, não posso ficar arrumando essas coisas pra você! Se me pegam, quem se f*de sou eu! — Eu sei, mas não tenho nada, p*rra. Me diz quem tem e eu vou até ele. Everaldo me olha por alguns segundos, pensativo. — Vou dar um jeito — diz ele, e eu agradeço. Encarar as festinhas de cara limpa é complicado. Sexo, bebida, drogas — tudo rola solto nas rodas de amizade que Everaldo possui, e sem algo para energizar, o corpo pede arrego. C*caína, por exemplo, diminui a sensibilidade, prolongando o prazer. —O carnaval está chegando, e o fluxo de pessoas triplica. Com isso, surgem mais "aviõezinhos".- Everaldo se joga na minha cama, pega um travesseiro e arremessa em mim. Seguro a grande almofada e jogo de volta em sua direção. — Hoje vai ter festinha na casa da Lindayara. Ela pediu pra estender o convite até o Galego dos olhos claros— Ele sorri — Satisfeito com o apelido? O convite parece tentador, mas com meus avós por perto, é melhor manter a discrição. — O que vai ter lá? — pergunto. — Rodízio de bebida... e de mulher. Vai ter roleta russa, nossos p*us em ponto de bala e elas só vem sentando. Cara, só de pensar, que delícia... Sorrio da cara de cafajeste que ele faz. No entanto, recuso. —Agradeço o convite, mas declino. Lembro da primeira vez que voltei de uma dessas noitadas: bêbado, drogado e com o p*u pingando. Comi tanta mulher sem saber o nome. Anick me recebeu com uma bofetada forte que me fez cair no chão. Ela gritou, me comparou ao irmão morto, disse que não deixaria eu acabar como ele. Que não permitiria que eu desperdiçasse a minha segunda vida. Fiquei furioso. Quebrei tudo, gritei que odiava o nome que ela me deu, que eu não era ele. Foi um caos. Sai furioso entrei dentro do carro. Anick gritou ordens para os seguranças que me puxaram à força de dentro do veículo, me arrastaram pra dentro de casa. Acredito que foi um dos piores dias da minha vida. — O que houve? Nem acredito que você está rejeitando mulher! — Everaldo vai até a janela, com os olhos perdidos no mar. — Meus avós estão aqui. Preciso me impor limites. — Você que sabe — responde, dando de ombros. Mudo de assunto. — Consegue a erva pra quando? Ele me olha de soslaio, encostado no batente da janela. — Engraçado... Você tem receio de sair pra comer umas b*cetas, mas não tem medo que seus avós sintam o cheiro do bagulho? Aquela m*rda fede demais. Suspiro, vou até a mesinha e pego a pulseira que tirei antes da noitada. —Fumo na praia ao fim da tarde, mas por aqui vou ter que me contentar só com cigarro. — Hoje entro em contato com um conhecido e te dou um toque — diz ele. — Certo. Estou na expectativa.- coloco a pulseira e ergo meu olhar para Everaldo- Vamos pra famosa Areia Preta. — Prefiro chamá-la de praia de Miami. Saímos do quarto rumo à garagem. Meu pai passa por mim e dá leve tapas em meu ombro. Chegamos na garagem, os olhos de Everaldo se arregalam ao ver meu carro. — C*aralho! Não acredito que vou dirigir essa belezura! Quando você não quiser mais a lata do lixo , fica bem em frente ao portão da minha casa. Sorrio. Ele desliza a mão pelo carro como uma criança diante de um brinquedo novo. — Quanto custou esse Aston, Varuna? — Cerca de 250 mil dólares. — Eita! Essa máquina é pra quem tem grana! Ignoro o comentário. Minha cabeça lateja. Aperto o controle, desativo o alarme e Everaldo assume o volante. O portão se abre, e deslizamos pela avenida. O vento com cheiro de maresia invade o carro, misturando-se ao couro dos bancos. Ele sorri. — Podemos dar umas voltas e deixar o motor roncar? Faço um gesto com a mão, dando sinal para que acelere. Seguimos pela RN 306. No rádio, toca uma música sobre promiscuidade e vida desregrada — perfeita para o clima de Barra do Rio: festas, mulheres e as responsabilidades guardadas numa caixinha, trancadas até o fim do recesso. — Vai voltar pro fim de ano? — pergunta Everaldo. — Não. Tenho viagens programadas. Provavelmente passo a virada fora. — Que pena. Estou organizando uma festa de réveillon. — Fica pra próxima. Sei bem como são as festas dele. Só a elite frequenta. Lá, as pessoas se soltam, mostram quem realmente são — e depois ele grava tudo e entrega nas mãos da mãe e do meu pai, figuras influentes são coladas nos bolsos e na forca. Escândalos são o que todos mais temem. — Desculpas ou medo de ficar chapado e alguém acabar te empurrando fundo, grande CEO? Ele ri, zombando. — Quem tentar, se f*de. Você sabe disso. Ele perde o sorriso. Uma palidez sobe ao seu rosto. — Não quero lembrar daquela m*da. Foi um banho de sangue. Você não é uma boa pessoa, cara — ele murmura. Ia retrucar, no entanto levo um susto quando meu corpo, de repente, começa a arrepiar com uma corrente de vento gelado que toca minha pele. Franzo a testa e olho para meu braço os pelos estão ouriçados. Passo a mão pelo meu pescoço e sento as pequenas bolinhas. Um aperto invade meu peito, como se algo muito importante tivesse sido esquecido. Mas o quê? Meu coração começa a bater acelerado, sem que eu saiba o motivo. Uma eletricidade percorre meu corpo. Então, de repente, sinto um cheiro familiar, algo trazido pelo vento, um perfume que não consigo explicar. Uma leve vertigem me atinge, fecho meus olhos. Quando abro-os , uma sensação percorre minha espinha, gelando meus ossos. Estou inquieto, remexeo-me no assento, sem entender o que está acontecendo. Os pelos dos meus braços se eriçam mais, minha nuca formiga e minha garganta está seca. Aperto as mãos, que estão suadas e frias. Olho rapidamente para Everaldo, que está alheio a tudo que estou sentindo. Me pergunta se isso é coisa da minha cabeça ou se é abstinência por falta de maconha. Não sei. Pisco, tentando focar, pois minha visão começa a ficar embaçada. Acho que as lentes dos meus óculos escuros estão sujas, então os tiro do rosto. — Tudo bem, Varuna? — Everaldo pergunta, lançando um olhar rápido. — Sim. — Respondo, virando o rosto em direção à janela do carro, que está aberta, busco por ar. Meus olhos observam a paisagem; as casas que passam e algumas pessoas conversando, cada uma vivendo sua vida. Pisco mais uma vez e olho para o asfalto que desliza sob nós. Respiro fundo e, de repente, levanto o olhar. Meus olhos se fixam em uma menina que caminha sozinha pela beira da rua. Um desespero imenso surge, uma vontade louca sem explicação, um desepero; meu corpo fica agitado. Não consigo entender. Meu coração aquece e dispara, levando meu fôlego junto. De repente, sinto que a conheço, que ela me é muito familiar. Quem seria? — Diminui! — ordeno. — Como assim? — Eu disse pra diminuir a velocidade! — peço, com o estômago embrulhando. — Tá bom, c*ralho! Meus olhos não a abandonam, examinando-a de cima a baixo, como se estivesse fazendo um raio-X. Suas coxas não são finas nem grossas, seus s***s são pequenos, a barriga é plana, e o cabelo vai até a cintura. Ela usa um short jeans, uma regata branca e chinelos, tudo muito simples. Entretanto, não consigo vislumbrar seu rosto, que está concentrado no celular que segura nas mãos. "Levante o olhar", mentalizo em silêncio, e como se pudesse me ouvir, a pequena ergue a cabeça. Nesse instante, sinto que me perco, esquecendo quem sou, mergulhando em seu rosto, em seus olhos, como se já a tivesse reconhecido de algum lugar. Mas de onde? Ela para de andar, seus lábios se abrem em um sorriso sutil, e nossos olhares se encontram, como se houvesse uma conexão mágica entre nós. Não respiro, não posso, algo me impede. Meu corpo treme, sinto como se estivesse puxando um fio de alta tensão em meio a uma tempestade, prestes a ser eletrocutado. "Linda!" O carro avança lentamente sobre o quebra-molas, quase parando, e nesse momento, uma força inexplicável me impulsiona a estender a mão para tocá-la, mas, num piscar de olhos, recuo. Foi uma vontade insana que quebrou algo profundo dentro de mim. É uma sensação estranha, nunca agi assim. O veículo continua seu caminho, e ela olha para trás, seus cabelos castanhos dançando ao vento. O aperto no meu peito se intensifica. Dr*ga! — Eita p*rra, achei que ia devorá-la com os olhos. A voz de Everaldo me tira do transe, e viro a cabeça em sua direção. —Quem é ela?- pergunto, sentindo meu corpo aquecer, enquanto uma sensação estranha serpenteia por mim, como uma cobra de fogo. — Como vou saber? Deve ser nova na região ou uma turista. Nessa época do ano, o que mais aparece são mulheres e homens diferentes que vêm curtir o carnaval, passar férias... as praias daqui atraem muita gente.Por que você se interessou? —Sim, consegue descobrir quem é? Te pago bem por isso, mas quero um nome e onde aquela menina está hospedada. —Opa, se vai rolar grana, vou me esforçar mais. — Everaldo ri e me lança um olhar — Mas que loucura, Varuna! Com tantas se jogando no seu colo, você vai se encantar por uma estranha que está andando na rua? E se ela tiver alguém? — Descobre primeiro, depois vejo o que faço. —Ih, não tô gostando disso, não. Não posso me meter em enrascada. —Não vai. Meu primo me observa com desconfiança, levantando uma sobrancelha e fazendo uma careta. — Não confio muito na sua palavra, não. Da última vez, você me chamou para resolver um negócio rápido e voltei com a roupa cheia de sangue. Quase me c*guei quando você puxou o gatilho e matou o cara na minha frente. Olho para meu primo, que fala sem pensar, enquanto a sensação gostosa ainda mexe com meu coração, meu corpo e minha mente, repleta de interrogações. Ao mesmo tempo em que me sinto perdido, uma calma incomum me envolve, como se finalmente tivesse me reencontrado. É algo difícil de explicar, algo que transcende o que conheço. Durante o trajeto, estou mais uma vez vasculhando minha mente, perdido nos traços daquele rosto bonito da menina desconhecida. "Me espera." Essas duas palavras brotam do fundo do meu ser, como se eu estivesse enviando um recado silencioso para ela.
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