Erros

2415 Words
Capítulo- II. Erros " É como um ciclo, toda vez que se ganha uma oportunidade para fazer diferente e você persiste no erro, é evidente que não aprendeu nada. " Varuna O barulho irritante dos ilhoses da cortina deslizando pelo varão, junto com a claridade e o vento frio que golpeava o meu rosto, era o tapa que a senhora Anike estava me dando. Era o meu bom dia de uma manhã de sábado. — Fecha essa janela! Minha cabeça está me matando! — puxei o lençol tentando cobrir meu rosto. No entanto, o tecido foi retirado do meu corpo com certa urgência e violência. Minha pele ficou exposta ao vento frio da manhã, meus olhos à claridade, que mais parecia alfinetes perfurando meus glóbulos. E toda essa ação era resultado da fúria da deputada de São Paulo. — Eu tô só de cueca, mãe! — Eu te pari, sei muito bem o que tem no meio das pernas. Levanta! Seu avô está chegando. Se fizer corpo mole, o banho vai ser na cama, com direito à porta da varanda aberta — ameaçou, impedindo que eu retornasse ao sono. — A senhora já ouviu falar em privacidade? — indaguei apertando os olhos. — Esse conceito, abrangendo o meu filho, não funciona pra mim. De pé, Varuna — disse se aproximando. Recebi um tapa no braço e um beijo no rosto. A sensação era que ela estava dividida entre me punir ou ser carinhosa. No entanto, eu não queria levantar. Minha cabeça estava explodindo e minha língua parecia pesar uma tonelada. Sentei, a contragosto. Esfreguei os olhos. Minha visão estava totalmente embaçada. Era uma tentativa — muito da falha — de minimizar a ardência que os acometia. Minha garganta parecia conter areia, a saliva era insuficiente, não dava conta de limpá-la. Por isso, recorri à jarra de água em cima de uma mesinha. Ao esticá-la, minha mão resvalou no aplique de metal que adorna as quinas do móvel, fazendo minha pele arrepiar com o breve contato. Dona Anick pegou uma almofada que estava na poltrona e lançou em minha direção. — Cobre essa erosão matinal, Varuna — disse cruzando os braços. Foi o seu modo de expressar que não sairia até eu estar pronto para descer. Seu olhar determinado era o lembrete: se eu não acatasse suas ordens, ela me arrastaria do quarto pelos cabelos. Devolvi o copo ao tampo da cômoda. Ainda não estava totalmente desperto. Meus olhos seguiam semicerrados, as pálpebras pesadas, e a intensa claridade fazia a dor de cabeça ferrar com tudo. — Eu vou descer, mãe. Ele já chegou? — resmunguei, tombando a cabeça para trás. — Ele está a caminho, Varuna. — Ela olhou para o relógio. — Faz exatamente 15 minutos que o voo dele pousou no aeroporto principal de Natal — respondeu. — Tem algum tempo... — murmurei, sem vontade alguma de me levantar. — Vinte e três minutos para tomar banho e se mostrar apresentável — a fala dela me irritou. Estava se impondo, me tratando como se eu fosse uma criança de seis anos. — Droga! Quando vocês irão parar de tentar me manobrar? Eu sou um homem feito! — Quando eu puder ver melhor isso no seu comportamento — minha mãe rebateu com uma resposta meio ácida. Não tive outra alternativa. Me levantei de mau humor, passei as mãos pelo rosto e fui até a cômoda atrás da erva. Precisava de umas baforadas para relaxar e encarar o que estava por vir. Ficar frente a frente com meu avô nem sempre era um dos melhores encontros de família. — Ponto do capeta essa hora ele tá olhando junto com as merdas expelidas pelos corpos dos moradores desse lugar — Anick revelou, cruzando os braços e me olhando com frieza. — C*ralho! Quem deixou a senhora mexer no que não lhe pertence? — O estado deplorável com o qual você chegou aqui ontem à noite. Seu pai está de cara quente, Varuna. E eu não quero essas porcarias perto de você — disse suave, sem perder a educação. Não pude contestá-la, uma vez que ontem foi a maior farra, regada a s*xo, dr*gas, bebidas e o som martelando nossas cabeças. No entanto, eu precisava. Estar sob pressão, quando todos da sua família querem te agregar a um partido político, não é fácil. Tendo em vista que esse “todos” exclui dona Anick — porém, meu pai e meu avô ficam duelando entre si para saber qual deles vai me arrastar primeiro para a política. No entanto, não quero isso pra mim. Não tenho desejo nem aspirações referentes a fazer parte de partido. Ponto final. Inclusive, toda vez que eles começam a falar sobre isso perto de mim, sinto algo se contorcer em meu âmago. Uma sensação r**m domina o meu ser. Quando isso ocorre, rapidamente arrumo uma desculpa qualquer e me afasto. Ou então dou um jeito de sair despercebido. No entanto, eu prefiro continuar no ramo que estou: administrativo, gerindo a holding, exportando commodities e produtos de alto valor agregado como café gourmet orgânico certificado (que possui marca própria de origem das fazendas de café Rockefeller), madeiras nobres, carnes premium, minérios refinados, etanol e derivados bioenergéticos. Essa empresa esteve durante gerações na minha família, no entanto o único que conseguiu tocá-la para frente fui eu, criando canais diretos com compradores árabes, chineses e europeus — tudo isso graças à rede de influência que construímos. E também pela estratégia de manter parcerias com pequenos produtores para, assim, corroborar com a imagem de responsabilidade social. Além das subsidiárias discretas que temos em Dubai, Zurique, Xangai e Nova York. Todavia, o que muitos não suspeitam é que a fé serve como plataforma de influência geopolítica silenciosa, com interesses que vão além do comércio: investimentos secretos em infraestrutura, vigilância digital e energia estratégica. Nosso faturamento é estimado em 3,8 bilhões por ano. O meu negócio está muito bem para que eu tenha que abandonar tudo e abraçar a política desse país, que não é nada mais do que corrupta. Abracei minha mãe, tocando em seus cabelos. Ela gosta desse gesto, desse carinho. Uma vez, deixou escapar que o meu tio tinha esse mesmo hábito quando a acarinhava. Ao ouvir isso, eu me afastei. Fiquei por meses sem abraçá-la, até que ela veio, me pediu desculpa e disse que se confundiu. Fingi acreditar e passei por cima de mais essa comparação. —Um banho e estou novo para o café — falei, aspirando o seu perfume floral. Ela me deu tapinhas nas costas, como se eu fosse um bebê. — Juízo, Varuna. Juízo! — disse ao beijar meu rosto e apontar para a direção do banheiro. Recebi um tapa estalado no braço, feito um menino pirracento. Me arrastei até o banheiro enquanto ouvia os saltos de Anike batendo contra o piso de porcelanato. — Não sei o que viemos fazer aqui em Barra do Rio. Estou desperdiçando minhas férias no meio de areia, praia e esse evento — reclamei, porque na realidade meu destino era a Suíça, e não um cantinho localizado no Rio Grande do Norte. — Não me parece que sua fala é verdadeira. Ontem você chegou aqui praticamente carregado, virou a noite na farra, Varuna — ouço o tom de voz de repreensão que minha mãe usa para falar comigo. — Preciso 'pastar', mãe. O Everaldo conseguiu algumas menininhas... eram bem bonitinhas — falo, sabendo que isso a irrita. Se tem uma coisa que a senhora deputada detesta saber é sobre a minha vida íntima. — Esse garoto só te leva pro mau caminho — reclamou ela. — Garoto não, mãe. Everaldo tem 25 anos. Sou apenas dois anos mais velho — ela resmungou, fez um muxoxo e estalou a língua. — Vocês são dois desvirtuados. Não sei qual é o pior! — Engraçado, a senhora não fala desse modo quando estou sentado na presidência da empresa — fui sarcástico. —Às vezes, eu me pergunto onde você encarcerou o homem tenaz de negócios e deu vez a esse que se joga de cabeça na bagunça. — Sei separar o prazer do dever, senhora Rockefeller. Sorrio. Ela já estava nervosa. Sem demora, retirei a cueca e me joguei debaixo do chuveiro, recebendo a água morna em meu corpo. Coloquei um pouco de shampoo na palma da mão e esfreguei o cabelo. Foi quando minha mãe atravessou a porta. Por sorte, o blindex do box possui a parte inferior jateada, o que impede qualquer visão da linha da minha cintura para baixo. — Sei que seus planos eram Europa, meu filho. Mas tente prestigiar a terra do seu pai. Ele nasceu aqui, gosta desse lugar e fica satisfeito quando estamos todos em família. Ele sempre querendo representar a família tradicional comercial de margarina... escondendo as sujeiras que há por trás. — O que está me segurando aqui é que o carnaval está chegando. Por isso mantenho meus anseios contidos dentro dessa casca, de outra forma nem sombra minha vocês iriam ver nesse lugar. — Por Deus, Varuna! Detesta tanto a terra do seu pai? — ela exclamou, estalando as mãos abertas nas coxas, fazendo as pulseiras balançarem. — Não é questão de gostar. É questão que eu não me enquadro nesse ambiente. Eu gosto de São Paulo. Lá eu sinto que é meu lugar. Aqui, não. Anick parou, me observou. Enquanto eu mergulhava a cabeça debaixo do chuveiro para retirar o shampoo e esfregava a esponja em meu corpo, ela suspirou. E quando olhei, a expressão que tinha era de saudade. Virei de costas. Sabia que ela estava com o pensamento no meu tio falecido. — É, meu filho... lá é o seu lugar. No entanto, temos que fazer as pessoas da nossa família felizes. E seu pai ficará muito feliz de saber do esforço que você fez para estar aqui. Mudando de assunto, onde seu avô disse que é o imóvel que o interessou? — minha mãe pergunta, passando pente-fino nas gavetas do armário do banheiro. Ela queria dar cabo das minhas ervas. Estava feito cão farejador, seguindo o rastro — e eu só à espreita, de olho. — Areia Preta. Apartamento de frente para o mar. Ele tem bom gosto. De repente, a voz dela ficou altiva dentro do banheiro: — Droga, mas você tem prazer em fumar esse mato fedido? Então vou separar pra você os cocôs da gata, entendeu, Varuna? Gargalhei quando minha mãe correu para o vaso. Sacramentado o fim do meu pequeno estoque de relaxamento. — A senhora está dando cabo da minha terapia. Uma dose de uísque, uma tragada e sinto que a paz está sendo devolvida pra mim. Coisa que a rotina pesada me suga. — Quando eu digo que você é igual ao... Olhei em sua direção, meus olhos ficando duros. — Ao meu tio. Eu já sei. Já decorei. Me poupe de ser recordado que sou cópia fiel de um morto — redargui, ácido, com a voz cortante e até áspera. Vi minha mãe empalidecer. Rapidamente, ela puxou uma respiração profunda. — Cópia? Às vezes eu acho que você é...— Ai! Você tá mexendo com o meu raciocínio. Termina esse banho logo, garoto, e desça! — a Anick saiu do quarto apressada. Escutei somente a porta bater — um sinal de que ela já tinha ido. Suspirei, frustrado por não conseguir desvincular a minha imagem com a do meu tio. Talvez eu tenha que carregar essa cruz por toda a minha vida. Saí do box, puxando uma toalha para cobrir meu corpo. Minha mente trazia flashes da noite deliciosa — e isso foi o suficiente para que eu jogasse de lado e desse um pontapé no que acabou de acontecer aqui dentro do banheiro. Começo a enxugar meu corpo, vejo que minha mãe deixou a roupa preparada em cima da cama. Me aproximo, olho pela janela, me deparo com o imenso mar azul. É lindo, mas prefiro o recanto de uma área rural. Suspiro derrotado. Preso nesse pedaço do Brasil que parece que vai se acabar em areia e praia. Preciso realmente arrumar alguma coisa para espairecer minha cabeça no tempo que irei ficar aqui. Por mais que meu inteiror fique agitado. Essa sensação que me invade de não pertencimento ocorre muito quando me afasto de São Paulo. No entanto, quando estou fora do Brasil, eu ligo isso a estar fora da minha nação. Porém, quando estou dentro do Brasil, fico tentando buscar a razão, o porquê de sentir que estou fora do meu habitat natural. Por isso, é raro eu pisar no Rio Grande do Norte — ainda mais em Barra do Rio. Contudo, dessa vez, meu pai praticamente me intimou. Ele deseja comemorar o aniversário com toda a família. O que renderá alguns cliques nas páginas dos jornais. A imagem sempre foi a alma do negócio, não importa se é dentro ou fora da política. Assim que confirmei a minha vinda pra cá, não tardei em entrar em contato com o Everaldo, meu primo pelo lado paternal. Pedi para ele vir em minha direção e me contar das novidades do local. Precisava manter minha mente ocupada e trazer algumas "comidinhas" novas para o meu paladar. Antes era ele que ia sempre para São Paulo; me encarregava de fazer ele sentir-se bem acolhido. Entretanto, os papéis se inverteram. E, dessa vez, é ele quem faz esse gesto de gentileza por mim. Everaldo é um homem muito simpático, conversador, de fala fácil — e isso faz com que as meninas se aproximem dele. Eu já faço mais o gênero observador e calado. Algumas mulheres com quem eu saí exprimiram que eu tenho uma áurea de mistério. Que os meus olhos não parecem ser meus, e sim de outra pessoa. Quando ouvi isso, certa vez, gargalhei. Só faltava essa: alguém ver em mim o olhar de outra pessoa. Era como se eu fosse uma montagem. Uma réplica. No entanto, acho que a companhia do meu primo será muito bem-vinda. Inclusive, ele se prontificou a ir comigo até Areia Preta para visitar o apartamento. Me visto, sigo até o meu celular, dou uma olhadinha e tem algumas mensagens de Everaldo. Abro o aplicativo e lá está: "Se arruma aí, Varuna, que eu tô chegando." Abro um pequeno sorriso. Se eu vim obrigado para este lugar, trancafiado dentro de casa é que eu não vou ficar. Depois de trocar meia dúzia de palavras com meu avô... vou à caça. Preciso de alguma coisa para tentar espantar esse cansaço.
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