Capítulo-I. Retorno.
" Minha alma ganha uma nova roupagem, uma nova versão, não menos melhorada, apenas um espelho do que fui. Assim que chorei, que meus pulmões encheram de ar, eu sabia, estava de volta. "
Varuna
"Bom."
Uma palavra simples, mas que carrega um peso imenso.
"Bom."
Uma sílaba que se origina de “melhor”.
"Bom."
Esse termo de três letras não se aplica à minha família; aqui, “melhor” tem um significado colossal.
Na Bíblia, “bom” está ligado à bondade e à integridade. Porém, no meu clã, essas virtudes parecem ausentes quando se trata de alcançar objetivos. Dizem que a verdadeira bondade, que se traduz em integridade, não provém de nossas ações, mas é acessível apenas através do Espírito. Mas, para aqueles que já não têm mais esse Espírito, como poderiam acessar a tão falada integridade?
Sim, há muitas pessoas que perderam suas almas, vagando por este mundo como sombras, seres desalmados, pois uma parte — ou até mesmo a totalidade — de sua essência ficou presa em um vórtice: um ponto de energia concentrada, muitas vezes negativa. Um exemplo disso são as almas que se entregam ao desespero, aquelas que foram arrancadas de sua existência de maneira brutal. Ali, naquele instante, naquele local, forma-se um vórtice que funciona como um portal, aprisionando a alma e permitindo sua passagem entre os dois mundos, onde o material e o imaterial se encontram. É por isso que existem as chamadas assombrações.
Eu me considero um desalmado. Minha alma se perdeu há muito tempo. Meus atos destrutivos falam por si só.
Considerando a subjetividade do que significa ser “bom”, quem pode ser considerado bom, virtuoso, nobre ou agradável é incalculável. No entanto, nenhuma dessas designações se aplica aos Rockefeller. Em minha família, a regra é clara: todos que carregam esse sobrenome devem ser os melhores. Não importa o assunto, as questões ou os propósitos; devemos sempre ser o M.E.L.H.O.R.
Esse adjetivo, que se aplica a ambos os gêneros, pesa como uma âncora em cada um que nasce com o sangue azul dos Rockefeller. Somos ensinados desde pequenos a possuir o máximo de atributos para atender a certos critérios de apreciação, seja por parte dos outros ou da nossa própria família. A perfeição é a única opção aceita. Contudo, me pergunto, do crepúsculo ao entardecer: há alguma forma de perfeição na sujeira, no erro?
Talvez sim, talvez não. O fato é que meu avô educou minha mãe e meu falecido tio dessa maneira. E assim, minha mãe me transmitiu essa herança.
Sou filho único, pois anos após perder sua primeira filha, Anick não demorou para engravidar novamente. Contudo, sou fruto de um relacionamento extraconjugal. Sou o filho de um deputado do Rio Grande do Norte. Era para ser um escândalo, já que minha mãe era casada com um político de São Paulo. Porém, quando Anike procurou meu avô e confidenciou que estava grávida de um fruto de sua vergonha, ele encontrou uma solução rápida. Minha mãe se tornou viúva numa manhã chuvosa de sábado. A mídia não teve piedade.
A família Rockefeller recebeu a alcunha de amaldiçoados, pela horrível incidência de acontecimentos ruins envolvendo mortes de membros. Sim, nós fomos perdendo dentes... e por qual razão? Não sei dizer.
Meu tio faleceu num acidente de moto. Ele era jovem. Durante minha infância e adolescência, tive que conviver com as comparações físicas e de personalidade. No início, eu achava que era coisa de quem tenta ocupar o vazio deixado por um ente querido que morreu. Entretanto, esqueci que a vida prega muitas peças e não me atentei para esse lado cômico e misterioso.
Certa vez, remexendo em caixas cheias de objetos antigos que estavam no sótão da casa — eu queria uma bola de basquete — achei um álbum de fotos antigo, com capa de veludo azul e as iniciais V. R. bordadas em linha dourada. A curiosidade pega qualquer um pelo calcanhar, e o mesmo fez comigo. Com as sobrancelhas unidas e uma ruga enorme no meio da testa, sentei no chão empoeirado. Queria entender a razão de algo que registra lembranças de família estar jogado num lugar onde se depositam coisas que sobram — ou que se quer esquecer.
Deslizei meus dedos pela capa, vendo os pelos da camurça se soltarem. Esfreguei as digitais, sentindo a textura. Limpei os dedos na calça e abri a capa. Virei com um leve toque o retângulo reforçado e folheei página por página.
— Meu Deus! O que é isso?! — minhas mãos tremeram, meu coração disparou, senti meu sangue gelar.
Foi com susto e perplexidade que me vi naquelas fotos, em uma sequência cronológica de tempo. Era eu: criança, adolescente, adulto.
— Mas como? Como eu estou nessas fotos?
Minha cabeça girou muito rápido. Olhei para mim mesmo — apenas um adolescente.
— Como... adulto?!
Minha boca ficou seca, a língua grudada no palato. O suor frio começou a descer pelas costas e têmporas. Tinha algo de errado. Muito errado. Aquela pessoa não era eu... não podia ser! Eu sou eu! Então, como posso me ver em outros tempos registrados por fotos?
Passei mais algumas fotos e encontrei uma da tal pessoa montando a cavalo. Naquele tempo, ele — seja quem for — era idêntico a mim, até na maneira de sorrir.
Em choque. Era isso que eu estava: preso num campo de energia e envolto por milhões de pontos de interrogação.
Aquela pessoa, usando outras roupas, capturado em festas e em lugares que nunca estive, era eu! Eu senti a sensação de ter frequentado aqueles lugares: esqui nos Alpes Suíços, velejando em algum ponto do oceano, numa competição de hipismo, dentro de uma piscina de um sítio...
— Mas que sítio é esse? Não temos sítio algum. Minha mãe detesta sítios!
Essa foi uma das muitas indagações que ecoaram na minha cabeça de adolescente. Eu tinha meus dezessete anos na época. Como a maioria dos garotos da minha idade, já tinha beijado na boca e feito outras coisas mais, inclusive experimentado drogas.
Recordo que saí do local trôpego, incrédulo e assombrado. Quem era aquele que se parecia tanto comigo?
Corri escada abaixo feito louco. Um suor frio percorria minhas costas, molhando a malha da camisa esporte fino.
Entrei no escritório da minha mãe feito um furacão. A deputada estava sentada com seus óculos de leitura apoiados na ponte do nariz.
— Isso são modos de entrar, Varuna? — perguntou com a voz baixa.
Não respondi. Joguei o álbum em cima da mesa.
— O que é isso? Sou um clone? — lembrei de um filme em que o homem perde a filha e, não aceitando sua partida, consegue — a partir de algum material genético — a proeza de fazer um clone da morta. No entanto, estando muito velho para ser chamado de pai, ele se passa por avô. A única que sabe da história toda é uma empregada.
Reparei no leve tremor que dominou sua pálpebra esquerda. Ela tinha levado um susto e tentava manter a máscara de frieza.
Anick respirou fundo, retirou os óculos e os colocou sobre o tampo da mesa.
— Não, você não é um clone. Mas, como pode comprovar, tem muita semelhança com o seu tio falecido.
Sua voz não sofreu alteração alguma, enquanto eu queria gritar de pavor.
— Semelhança?! Parece que estou me olhando num espelho retrógrado! Meu rosto, meu corpo com roupas de anos passados! Quem era ele?
Sempre soube que tive um tio que faleceu. No entanto, nome, fotos ou qualquer coisa que fosse dele ou sobre ele nunca chegou até mim. Não, até aquela tarde.
Agora sei a razão.
— Seu tio — respondeu, e eu ri com escárnio, erguendo um pouco o rosto.
— Até nisso vocês são idênticos. Varuna era o nome dele. Meu único irmão. Meu herói. Minha metade. Meu príncipe... metade de mim morreu quando ele se foi... — seus olhos marejados não camuflaram a emoção.
— Tá brincando comigo! Me deu o nome de um morto! — me senti usado, como se eu fosse uma folha de papel em branco, onde minha progenitora espelhou e desenhou tudo o que queria recuperar do seu trágico passado: seu irmão morto.
— Foi uma homenagem, meu querido. Algo lindo! Varuna não vai mais retornar, no entanto, você carregará consigo o nome daquele que significou — e ainda significa — muito para mim.
— Por que não pediu a pata de macaco? Não foi esse o presente que pediu para o seu sócio?
— Varuna! — seu grito ecoou junto com o tapa forte que acertou na mesa.
Anick se ergueu um pouco do assento.
— Não serei a sombra de um morto! A vida dele é uma, e a minha será outra! — gritei a plenos pulmões.
Saí do escritório com meus pulmões ardendo em fúria. Minha mãe tinha me colocado à sombra de alguém que não existia entre os vivos.
Até os dias de hoje é assim, cada coisa que faço, cada palavra que digo, vejo Anick me olhando com um olhar que extrapola o maternal e adentra ao fraternal.
Apesar do meu pai ser do Rio Grande do Norte, Anick fez questão que eu fosse criado e educado em São Paulo. Meu sotaque é paulistanês, muitíssimo diferente do meu pai que possui o sotaque conhecido como potiguar. Essa forma de falar o português no Nordeste do Brasil possui traços singulares que a diferenciam de outros sotaques da área. É repleta de expressões e gírias características, além de ter particularidades na pronúncia e na entonação, que revelam a rica história e a cultura vibrante do estado.
O que se passava pela mente de Anick? Não sei, apenas o que é certo é que depois de ter descoberto que sou um redobro, caricatura triste, um engodo do verdadeiro Varuna. Me senti por tempos usurpando a vida, o nome e a identidade de alguém. E pior, um alguém morto.
Durante muito tempo tentei ser diferente, agir de uma forma que evitasse comparações. Não adiantou muito, sempre tinha os olhares dos meus familiares pairando sobre mim, dizendo em árduo silêncio:" nós já vimos isso."
A tentativa de ser diferente, aparentemente tinha fracassado, então me ocupei em viver e sobreviver ao caos de ter nascido marcado. Por qual razão eu vim ao mundo feito uma cópia? Não sei e até os dias de hoje, muito raramente, me pego pensando nisso.
Porque estou aqui?
Porque ?