Capítulo- IX. Ruínas
"Entre as ruínas do tempo, nossos amores de vidas passadas ecoam como sussurros, lembrando-nos de que o coração nunca esquece o que realmente ama."
Varuna
As meninas estão na frente da pousada tecendo uma conversa aparentemente animda. Eu presto atenção em cada detalhe do rosto dela. A forma como move as mãos em gestos, o movimento da cabeça e os cabelos caindo pelas costas feito uma cascata.
"Olha pra cá. Por favor, olha pra mim."
Tô inquieto, mesmo com os olhos fixos na menina de cabelos compridos e levemente ondulados.
As outras duas não me interessam. Mas pra Everaldo...
— Ei, boy... eu conheço aquela morena ali, viu?
Olho pra ele, que estica o pescoço, tentando enxergar melhor.
— Oxente, é ela mesmo, boy! Eu sabia que num era coisa da minha cabeça, nós estudemo junto lá em Parnamirim, visse?
Se Kairos estivesse com a gente agora, com certeza já teria lançado um olhar torto só por conta do jeito dele falar.
— Ela quem, Everaldo?
— Aline... morena bonita. Eu tive uns rolinho com ela. Pense numa morena gostosa e braba que nem uma jaguatirica, boy!
A frase me interessa de sobremaneira. A garota pode ser a ponte entre a minha menina e eu.
— Ainda fala com ela?
Desvio o olhar no instante em que um carro para perto das três. A irritação me invade. Aonde ela vai?
— Não tanto quanto eu queria. Eu sou todo enrolado nos problema, boy, e aquela morena num merece um c***a embaraçado feito eu, não.
Na voz, no modo de falar, no olhar... é nítido o pesar e a saudade. Meu primo carrega essa mulher dentro do peito.
— Bora atrás, Varuna! Ele se mandou foi pra pista!
Ligo o carro, começo a seguir o veículo discretamente.
— Viu quem tava dirigindo?
— O motorista. É carro de aplicativo.
— E essa direção aí, leva pra onde?
— Vários lugar: Paróquia de São Miguel Arcanjo, Ruínas da igreja dos Jesuíta, Casa Multicultural, Balneário... Ruínas da Igreja de São Miguel...
Continuamos seguindo o carro, mantendo uma distância segura. No som, toca uma música que nem consigo prestar atenção. Meus olhos estão vidrados no carro vermelho à frente, que cruza lentamente a cidade.
Meu maior medo é que a menina esteja indo se encontrar com algum homem. Ao mesmo tempo em que a sigo, minha mente rabisca um jeito de me aproximar. Essa necessidade vai além do físico. Algo grita dentro de mim, implora por ela. E eu, assustado, porque nunca senti isso antes, tento encontrar explicações pra esse furacão que me atravessa.
— Você tem o contato dessa tal de Aline, tem não?
Pergunto pra Everaldo, que tá com o celular na mão, olhando alguma coisa.
— Tenho. O que tu tá mirabolando aí?
— Você vai nos apresentar.
— Como é, mermão? Eu tô me arrastando feito um jumento cansado, num tenho cara pra isso não.
— Vai ter.
Abro o porta-luvas, pego uma garrafinha d'água que sempre levo comigo.
— Bebe isso aí e coloque um óculos escuro pra esconder essas olheiras.
— Ôxe, tu é muito abusado, viu, Varuna? Só num te mando pra casa do carai porque sou teu parceiro, boy! Vou rir e muito se a galeguinha sentar a mão na tua lata!
— Para de dizer asneira. Começa a elaborar na tua cabeça um jeito de se aproximar da tal Aline.
Everaldo me lança um olhar estreito antes de abrir a garrafa e dar um gole. Continuamos seguindo o carro por mais alguns minutos até que ele encosta. As meninas descem. Atravessam a rua e seguem na direção de um espaço com gramado natural e algumas ruínas.
— Num falei? Vieram nas Ruínas da Igreja de São Miguel Arcanjo — diz Everaldo, antes de beber mais um gole.
Tiro o cinto. Não perco a desconhecida de vista.
— Tu vai aonde, Varuna?
— Nós vamos. Lá pras Ruínas.
— Tá com a moléstia! Eu num vou nada! Toda vez que piso lá me sobe um arrepio. Acho que São Miguel tá ali, só espreitando os bons e os ruins que pisam naquele solo. E tu não é bom, mermão...
— Anjos, se existirem, tão presos no céu. Não junto de pecadores, Everaldo. Agora desce.
— Vá pra p*rra com um negócio desse!
Mesmo resmungando, meu primo desce com cara de poucos amigos. Seguimos em direção às ruínas. Pela visão periférica, vejo as meninas paradas na calçada oposta, conversando animadas, mas não entram no espaço onde estão os restos da antiga igreja.
Everaldo e eu nos aproximamos da entrada. O local é cercado por uma cerca baixa.
"Não entendo o encantamento que o que sobrou de paredes carcomidas pode causar. Não vejo nada de simbólico, a não ser o fato de estar incluso no passado desse lugar."
— Vai tu. Eu fico de longe espiando as meninas. Quando abrir uma brecha, eu falo com a Aline.
Olho pra trás. As três continuam conversando. Faço um leve aceno com a cabeça para Everaldo e entro, assumindo o papel de turista.
A curiosidade me cutuca:
"Como será que a igreja era antes de ser consumida pelo tempo?"
Tiro o celular do bolso, pesquiso. Vejo fotos antigas, assisto um vídeo que explica que o lugar foi vítima de vandalismo por conta da lenda de que as paredes eram revestidas de ouro. Gente da época acreditou que havia um tesouro ali — mas não havia nada.
"Quanta ignorância."
— Com licença...
Uma voz doce soa atrás de mim. Um arrepio me percorre inteiro. Viro-me devagar.
É ela.
A menina que atormenta meu sono, os meus pensamentos. Tiro os óculos pra vê-la melhor, sem barreiras.
— Desculpa incomodar, mas o senhor poderia tirar uma foto minha?
Um sorriso escapa dos meus lábios. Ela fala com tanta delicadeza. Tem algo que me prende, que me cativa. Quero tocá-la, senti-la. Meu corpo estremece. A respiração falha.
"Achei você. Nos reencontramos, minha menina."
— Se me chamar de senhor outra vez, eu não vou fazer a gentileza de fotografar uma flor em meio às Ruínas.
Ela parece apreensiva, mas quando escuta minha resposta, um sorriso lindo se abre em seu rosto. Ajeita uma mecha de cabelo atrás da orelha esquerda. Seus olhos encontram os meus. Um vinco sutil surge na testa. Ela me analisa... e depois desvia o olhar.
— Onde vai querer que eu fotografe você?
Ela engole em seco, tira o celular da bolsinha e me entrega. É um modelo simples, muito diferente do meu.
— Próximo às ruínas... e depois naquele balanço — responde, olhando pra entrada.
Meus olhos percorrem seu corpo: jeans claro, blusa branca, sapatos também brancos. A simplicidade canta nela.
Ela passa por mim. O cheiro de crisântemo invade minhas narinas.
— Seu nome? — pergunto, tomado por uma ansiedade que não sei explicar.
— Camila.
Levo um choque. Uma vertigem me toma. Quase me ajoelho. Reúno forças pra não cair. Por dentro, é uma explosão.
"Esse nome... eu já ouvi esse nome... onde?"
— E o seu? — ela pergunta, com um calor no olhar.
— Varuna — respondo, sentindo o vento morno atravessar nós dois.
— É bonito... Varuna...
Ela repete meu nome. Meu coração arde. Algo se inquieta em mim. Talvez... minha alma.
Caminhamos juntos rumo às antigas ruínas, parando na linha que delimita a área restrita. Não é permitido chegar muito perto das paredes, por razões óbvias. Camila, com um olhar curioso, busca um ângulo e então fixa os olhos em mim.
— Você acha que aqui tá bom? Por favor, quero as ruínas como fundo pra foto.
A voz dela é suave e macia. O timbre carinhoso e tranquilo me envolve — é um prazer ouvi-la.
— Não se preocupe, o fundo vai ser as ruínas — respondo.
Pego meu celular, abro a câmera e busco um ângulo melhor, me movendo um pouco para a direita.
— O que você tá fazendo? — ela pergunta. — É pra tirar com o meu celular, não o seu.
— Você quer uma foto perfeita, né? Meu celular tem uma câmera melhor. Fica tranquila, depois eu te envio tudo.
Na verdade, essa é a minha desculpa pra conseguir o número dela. Mesmo com um olhar meio desconfiado, Camila ajeita os cabelos, colocando-os de lado. Levanta levemente a cabeça e, nesse instante, registro a primeira imagem. Ela fica linda, com os olhos fechados e um sorriso leve, completamente natural. Eu me encanto. E desejo mais.
De repente, alguém grita o nome dela. Quando Camila vira a cabeça na direção do chamado, eu fotografo de novo. A imagem sai perfeita: os olhos brilhando, o cabelo balançando suavemente com o vento, os lábios entreabertos. Ela acena com a mão, e percebo que é uma das amigas dela.
— Preciso ir. Muito obrigada pelas fotos! Você pode me enviar agora?
— Melhor … me diz seu número que eu envio tudo pelo aplicativo de mensagem.
Camila estende a mão, e eu entrego seu celular. Ela me olha por um instante, como se ponderasse se deve ou não fazer isso. Então, com um suspiro resignado, diz:
— Tudo bem. Grava meu número no seu celular.
Minhas mãos tremem. Meus dedos também. Não entendo o que tá acontecendo — meu corpo reage de um jeito que nunca reagiu com ninguém. E ela… ela é só uma menina, mas tá mexendo com tudo dentro de mim.
— Desistiu da foto no balanço? — pergunto, querendo ouvir mais da sua voz, puxar conversa, estender o momento.
— Não vai dar tempo. Meu pai tá me esperando na pousada. Não posso chegar fora do horário que ele estipulou.
— Pode dizer— ela fala, e eu aperto o teclado do celular com os dedos trêmulos, quase esmagando a tela.
— Você é daqui? — pergunto, mesmo sabendo que não, pelo sotaque dela.
Camila solta uma risadinha tímida e responde:
— Não… Assim como você também não é.
Sorrio e entrego os pontos:
— Realmente. Sou de São Paulo. E você é do Rio, não? Seu jeito de falar entrega.
Ela balança a cabeça, concordando. Os olhos dela brilham. A pele do rosto é suave. Então, num impulso, estendo a mão e toco o rosto de Camila.
— Vou te enviar as fotos. Foi um prazer te conhecer, Camila.
Ela sorri.
— Adeus, Varuna.
Essa palavra… adeus… faz meu estômago gelar.
— Não diga adeus. Diga até breve.
Ela aperta os lábios, como se segurasse algo dentro dela.
— Até breve...- sua voz é um sussurro
Camila se vira e caminha rumo à saída. Eu fico ali, parado, ainda sentindo o calor do rosto dela na palma da minha mão.