Capítulo- XIV. Sentido
" Nada faz sentido sem você por perto. Nada é completo quando seus olhos estão longe."
Varuna
O motor do carro ainda ecoava no silêncio da estrada quando me dei conta do vazio que havia se instalado no banco ao lado.
Camila não estava mais ali e, mesmo assim, a presença dela continuava impregnada no ar — como se o perfume, o calor da pele e até o timbre da voz tivessem ficado grudados em mim.
A sensação de ausência era predominante, não só dentro do veículo, mas em meu peito também.
A despedida foi rápida — um beijo que roubei dela antes que descesse do carro.
A menina corou e me olhou com o calor da inocência. Ganhei um presente lindo: o brilho daquele olhar me refletindo, como se estivesse lá há tempos, esperando o momento certo para despertar.
Loucura? Um pouco. Talvez muita. Mas é isso que sinto. Não somente isso, mas uma infinidade de coisas que não sei nomear, explicar, tampouco definir.
Segui pela BR como quem anda dentro de um sonho. O rosto dela surgia a cada piscada, como se o vento trouxesse a lembrança de volta, insistente. Não só ele, mas também as estrelas, que começavam a surgir como amantes dos casais.
Sorri, atordoado. Algo em mim gritava: “Você a encontrou!” No entanto, nunca nos vimos. Como pode isso? Essa sensação de paixão, amor e pertencimento.
Não era só desejo, embora o meu corpo provasse de uma ardência como se tivesse sido aceso por um maçarico. Era outra coisa, mais funda, mais antiga, como se aquela menina tivesse atravessado mares e séculos para chegar até mim — e eu, sem saber por quê, a estivesse esperando todo esse tempo.
— É só impressão, Varuna — falei, querendo me convencer.
No entanto, a imagem dos olhos dela me perseguiu. Não eram apenas bonitos: eram um convite e uma promessa. Estranhamente, sentia que já tinha me afogado naquele olhar antes, talvez em outro lugar… talvez ela atravessando o meio do trânsito caótico de São Paulo, ou do Rio, onde estive diversas vezes a negócios… mas agora eu não tinha certeza se sobreviveria.
A lembrança do toque me fez apertar o volante com força. Um simples roçar de dedos havia incendiado cada nervo, como se o meu corpo inteiro reconhecesse o dela.
Era um fogo estranho — não o fogo que se apaga depois de satisfeito, mas o que queima mais quanto mais se tenta domar.
Eu não sabia explicar. Não sei o que pensar sobre isso… é tudo estranho e doce.
Só sabia que deixá-la na pousada tinha sido como arrancar um pedaço de mim mesmo e abandoná-lo lá, debaixo do teto simples e da luz amarelada.
O pior era a sensação absurda de que, se não a visse de novo, algo dentro de mim iria definhar.
Eu, que sempre me achei dono do meu próprio destino, senti, pela primeira vez, que havia forças movendo os meus passos — forças que se assemelham aos poderes dos antigos deuses, que não pedem permissão e não explicam nada.
A noite já tinha caído quando entrei em Barra do Rio.
O farol do carro iluminava as ruas estreitas, as fachadas simples, e o cheiro salgado vindo do mar misturava-se ao vento que cortava o meu rosto.
Cada quilômetro percorrido só aumentava aquela sensação incômoda em meu peito — como se tivesse deixado algo sagrado para trás.
Parei o carro na frente da casa do meu pai. A varanda estava iluminada, e pude ouvir o som baixo de um rádio tocando um forró antigo.
Meu avô estava sentado na cadeira de balanço, segurando nas mãos uma espécie de escapulário; Anice pintava uma tela, mirando o céu entre uma pincelada e outra. Era uma cena comum, tão familiar que sempre me traz paz… mas hoje não bastava.
Hoje, tudo parecia distante.
Desci do carro, um tanto insatisfeito de estar ali e não com a minha menina.
Entrei, cumprimentando-os com um sorriso rápido, tentando disfarçar o turbilhão que sentia.
— Retornou cedo. Acreditei que hoje não viria.
Suspirei. Retornar era o que eu menos queria.
— Ela precisava voltar… o pai iria ficar preocupado — sussurrei.
Anice comentou algo sobre a tinta preta presente no godê, mas não ouvi.
A mente estava longe, presa na imagem de Camila descendo do carro, o cabelo sendo bagunçado pelo vento, a boca meio aberta como se quisesse dizer algo — e não disse.
Subi para o quarto, fechei a porta e encostei as costas nela, respirando fundo.
O espaço cheirava a maresia e perfume, mas, para mim, tudo tinha o aroma dela, o sorriso dela e a forma como olhava.
Sentei na beira da cama, apoiando os cotovelos nos joelhos e passei as mãos pelo rosto.
O corpo ainda carregava o calor do instante em que estivemos próximos, como se a minha pele tivesse memorizado a dela.
E, quanto mais tentei afastar o pensamento, mais a presença de Camila se fazia viva, como um chamado impossível de ignorar.
Deitei-me, olhando o teto, mas o sono não vinha.
Cada batida do meu coração parecia dizer o nome dela.
Não sabia que história era aquela que estava começando, nem por que ela me deixava assim — aceso, inquieto, como se estivesse à beira de descobrir algo que mudaria tudo.
Só sabia que a queria perto.
Me virei, inquieto.
O som distante das ondas veio junto com um pensamento que não consegui evitar:
se existia alguma força movendo tudo aquilo, então ela não ia me deixar em paz até que eu encontrasse Camila de novo.
Foi com muito custo que adormeci.
O dia amanheceu com um céu pálido, quase branco. Acordei antes de todos, mas não por causa do barulho ou da claridade — e sim porque simplesmente não consegui dormir direito.
A noite inteira foi um vai e vem de imagens de Camila: o jeito como ela mexia o cabelo atrás da orelha, o sorriso rápido, quase tímido, o tom de voz que parecia feito para se encaixar no meu.
Sentei-me na cama, esfregando o rosto com as mãos.
Do lado de fora, ouvia o bater das folhas das árvores sendo sacudidas pelo vento e a voz de alguém que talvez estivesse correndo na praia, chamando cachorros, provavelmente.
Me arrastei até o chuveiro, depois saí do quarto. Todavia, a rotina da casa parecia “falar” em outra língua — algo que eu conhecia bem, mas que não estava conseguindo acompanhar.
Desci as escadas e encontrei a funcionária Eliete na cozinha, virando cuscuz na cuscuzeira.
Ela sorriu, me ofereceu café depois do bom dia que proferiu, mas apenas murmurei um “bom dia”.
O calor da bebida não afastaria o frio estranho que eu sentia no peito — um vazio misturado com urgência, como se tivesse deixado algo inacabado na pousada de Extremoz.
Saí para caminhar na praia. Queria um tempo para mim.
Passei perto de senhores que falavam sobre a maré e o melhor horário para sair com o barco. Me peguei olhando para o horizonte.
O céu já ganhava tons dourados, e imaginei Camila caminhando comigo naquele momento, deixando o vento da praia brincar com os seus cabelos.
Então pensei em mais: nos hóspedes. Quantos solteiros a cobiçariam? Quantos tentariam se aproximar? Quantos a queriam?
A ideia de outros homens perto dela me incomodou mais do que eu gostaria de admitir.
A brisa trazia o cheiro da água, mas também — de algum jeito impossível — o perfume dela.
Era como se o vento carregasse a lembrança de propósito, só para me cutucar.
Não sabia explicar o porquê de precisar tanto voltar a vê-la…
Mas sabia, com uma certeza estranha, que enquanto não a tivesse de novo diante de mim, nenhum lugar — nem mesmo na casa do meu pai — ia parecer completo.