Levanto do sofá com o corpo ainda tremendo de adrenalina. O café da manhã esquecido está frio na bancada. O sol já subiu mais alto, mas nenhuma claridade consegue iluminar o que sinto agora: um misto de preocupação, raiva e confusão. O Heitor sempre foi grande, forte, metódico... e, ainda assim, conseguiu se meter em algo que terminou com ele atrás das grades.
Visto me rápida, tênis confortável, mochila com documentos e tudo o que posso carregar sem perder tempo. No caminho pra delegacia, o trânsito da Barra parece lento demais. Cada sinal vermelho dura uma eternidade, e eu me pego respirando fundo, tentando acalmar a ansiedade que bate forte no peito.
Ao chegar, a fachada cinza da delegacia não parece intimidadora, parece hostil. A recepção está movimentada, pessoas aguardando em silêncio ou conversando baixinho. Mostro meu documento e explico que sou irmã do Heitor Ferreira. Uma policial anota tudo e me encaminha para a delegada Marta, que me espera com uma mesa cheia de papéis e um semblante firme, profissional demais pra qualquer conforto.
— Senhora, vamos precisar que assine algumas declarações e forneça informações sobre o Heitor — diz Marta. — Há alguns procedimentos legais que devem ser seguidos antes da transferência.
Sento e começo a assinar formulários, preencher dados, fornecer contatos de emergência. Cada papel parece pesar mais que o anterior. Enquanto faço isso, Marta explica que a operação que levou Heitor à prisão foi uma consequência de um conflito interno no morro, nada grave ainda, mas precisava ser contido. Palavras frias, quase técnicas, que não traduzem o aperto que sinto no peito.
Depois de horas (que na realidade parecem minutos) resolvo tudo o que é necessário: assinaturas, procurações, contatos de advogados.
Perguntas, documentos, confirmações. Um problema se resolve, outro surge, e eu sigo enfrentando tudo com a calma que aprendi a cultivar nos dias de faculdade. Preciso ser prática. Preciso ser eficiente. Preciso agir como se não estivesse prestes a desmoronar.
No fim, Marta entrega um resumo:
— Ele ficará detido temporariamente, mas não há riscos à integridade física dele. Todos os trâmites estão em andamento.
Assinto, tentando não desmoronar ali mesmo.
Saio da sala, e lá fora, o mundo continua. Pessoas entrando e saindo da delegacia, carros passando, sol no rosto. É estranho: tudo tão normal, e eu sentindo como se estivesse presa numa dimensão própria, onde nada mais faz sentido.
No caminho de volta pra casa, passo na padaria da esquina. Compro um café forte e um pão quentinho, quase sem perceber. Enquanto caminho, sinto que minha cabeça não para: resolver documentos, lidar com burocracia, tentar entender o que aconteceu, pensar no que devo fazer. Cada passo é uma tentativa de controlar algo que, naquele momento, está completamente fora do meu alcance.
Chego em casa exausta, sento no sofá com o café e começo a organizar mentalmente todos os problemas que preciso enfrentar agora: advogados, visitas, informações sobre a transferência. Mesmo cansada, não posso me permitir desmoronar. O Heitor confiou em mim, e agora eu tenho que manter tudo sob controle.
O apartamento parece maior do que nunca. Cada canto, cada sombra, parece me lembrar do vazio que ficou desde que soube da prisão do Heitor. Sento no sofá, o café frio ainda ao lado, e fico olhando para o nada. Não é apenas o medo pelo irmão, eu já conhecia o lado sombrio da vida que ele levava, sabia dos riscos.
Mas ainda assim, vê-lo atrás das grades corta algo dentro de mim. Uma mistura de raiva, culpa e impotência que eu não consigo colocar em palavras. Talvez eu devesse ter feito algo, mas ao contrário, fiz só usar o dinheiro que ele fez na vida do crime, o mesmo dinheiro que destruiu e destrói várias famílias.
Reviro a cabeça nos travesseiros, procurando algum conforto que não existe. Cada som fora do apartamento parece mais alto, cada carro que passa é um lembrete de que o mundo segue indiferente enquanto a minha vida, pelo menos neste momento, ficou em pausa.
Levanto-me devagar, quase sem vontade, e caminho até o banheiro. Ligo o chuveiro e deixo a água correr, quente o suficiente para envolver o corpo e a mente, mas não quente o bastante para queimar a dor. A água bate nos ombros e escorre pelo cabelo, lavando mais do que a sujeira da academia ou o suor do treino, parece lavar um pouco da angústia, embora eu saiba que ela não vai embora tão facilmente.
Fico de pé, deixando a água deslizar pelo corpo, e respiro fundo. O vapor preenche o banheiro, tornando o ambiente íntimo e protetor. Por alguns minutos, consigo me permitir a fragilidade: lágrimas silenciosas descem pelo rosto, misturando-se com a água que cai. Não choro por medo do Heitor, não apenas, choro pelo mundo que ele escolheu viver e por saber que, de certa forma, eu nunca poderei protegê-lo completamente.
Nem mesmo quando eu me tornar completamente uma advogada.
Quando a água começa a esfriar, desligo o chuveiro e envolvo o corpo na toalha. O toque da toalha quente na pele molhada é reconfortante, mas a sensação de vazio ainda permanece. Passo um hidratante com cheiro suave e me visto com roupas confortáveis, shorts e camiseta larga, sentindo que cada movimento é pesado, como se carregasse o dia inteiro nos ombros.
Sento-me na beira da cama, olhando para a janela aberta, deixando a brisa da noite tocar o rosto. Respiro fundo mais uma vez, tentando encontrar um ponto de estabilidade. Por enquanto, a rotina mínima, tomar banho, vestir roupas confortáveis, organizar pensamentos é o que me mantém de pé.
A tristeza é forte, silenciosa, mas não me domina completamente. Ainda há uma parte de mim que sabe que, mesmo perdida, ainda posso agir, pensar, respirar.
O apartamento está silencioso. O mar lá fora continua com seu som constante e familiar. E, por alguns minutos, é só isso: eu, a água quente e o peso de uma vida que de repente ficou mais complicada, mas tudo bem… vou lidar com isso!