Beatriz
Na manhã seguinte, o morro acordou com cheiro de café e pólvora antiga, como se as paredes tivessem memória. Eu subi com a mochila pesada de curativos e frascos, tentando fingir que não procurava por ele. Mentira: procurava, sim. Cada esquina parecia guardar um rastro dele — um riso rouco preso no corrimão, um passo largo marcado no cimento, um perfume amadeirado que teimava em voltar do nada.
Na clínica, o fluxo estava mais nervoso. Dona Celeste apareceu com o neto no colo, o joelho da criança ralado; um rapaz entrou de cabeça baixa, a mão cobrindo um corte no supercílio; uma menina com uniforme de escola pediu gaze e silêncio. Fiz o que sei: lavei, enfaixei, acalmei. Mas o pensamento, teimoso, vagava para fora, escalando lajes.
— Você tá com cara de quem esqueceu o corpo no ônibus — brincou Nara, outra estagiária, mexendo nas bandejas de algodão.
— Só dormi m*l. — Sorri pouco.
— Dormiu m*l nada. — Ela me cutucou de leve. — Quem é ele?
Engoli a resposta e a vontade de dizer seu nome. Nara não entenderia. Talvez nem eu entendesse.
Perto do meio-dia, precisei sair para buscar caixas de soro no depósito improvisado duas vielas abaixo. O ar estava mais denso. Um rádio chiou em algum lugar, uma conversa curta que parecia aviso. Eles falam sem falar, pensei. E eu, que sempre acreditei na transparência das coisas, começava a aprender uma outra gramática.
No caminho, ouvi um grito seco de criança e instintivamente corri: um garotinho tinha prendido o pé entre duas tábuas do chão do beco. A mãe gritava, a vizinhança se aproximava. Agachei, toquei de leve.
— Calma, amor, eu vou tirar você daqui. Respira comigo. Isso — falei macio, enquanto avaliava o ângulo. — Preciso que alguém segure a tábua desse lado.
— Eu seguro. — A voz veio de trás, grave, conhecida.
Minha pele reconheceu antes dos olhos. Joel. Ele se ajoelhou ao meu lado e enfiou os dedos sob a madeira como se o morro fosse feito de papel. Os músculos do antebraço saltaram; a tábua gemeu e cedeu. Tirei o pé do menino, verifiquei a circulação, enfaixei. A mãe agradeceu entre prantos. E só então respirei.
— Obrigada — sussurrei, levantando o olhar.
Ele ficou um segundo a mais do que precisava, como se checasse alguma coisa na minha cara — se eu tinha medo, talvez. Eu tinha. E tinha outra coisa grudada no medo que eu não queria nomear.
— Você tem mãos firmes — disse, sem sorriso.
— E você tem timing — respondi, num impulso que não cabia em mim.
— Timing salva gente. — Ele desviou por um instante, atento a um movimento na esquina. — E perde também, quando é pra quem não devia.
Mesmo com a frase dura, não dei um passo para trás. Agradecida e irritada comigo mesma, fiquei. Ele percebeu, claro. Subchefe enxerga além.
— Tá indo pro depósito? — perguntou.
— Tô.
— Eu levo.
— Não precisa. — Tentei parecer autossuficiente.
— Eu não perguntei se precisa. — Ele caminhou na frente, como quem abre caminho num mato fechado. — Vem.
Segui, os sentidos alertas. O beco afunila, paredes de tijolo descascado roçando nos ombros, roupa no varal fazendo sombra de bandeirola. Dois meninos brincavam de bola com garrafa pet; uma senhora rezava olhando pro alto. O morro observava. O morro comenta sem boca.
O depósito era um quarto com porta de ferro e um cadeado cansado. Entrei, senti o cheiro de papelão molhado e remédio vencido. Ele ficou na porta, de vigia. Enquanto empilhava as caixas, ouvi um ronco de moto mais demorado, como se o motor não quisesse decidir se passava ou parava. Joel virou o rosto de leve. Um segundo depois, a moto surgiu, dois capacetes pretos, o carona com a mão errada demais no casaco. O coração subiu pela garganta.
— Beatriz — ele disse baixo, sem me olhar — fica atrás da prateleira. Agora.
Não perguntei. Meu corpo obedeceu antes da mente. Encostei na parede fria, os dedos trêmulos. A moto reduziu. O capacete do carona se moveu, varrendo a viela. Senti a tensão na pele, como eletricidade. Joel, imóvel, parecia parte do batente.
— Perdeu alguma coisa? — ele perguntou, voz mansa de veneno.
— Só o caminho — respondeu o carona, metálico por trás do visor.
— Aqui não tem mapa pra vocês. — Ele inclinou o queixo. — Segue.
A moto hesitou, como se buscasse autorização num fantasma, e continuou. Só quando o barulho dissolveu é que percebi que eu não respirava. Ele entrou, fechou a porta, e por um instante a penumbra nos engoliu. O coração batia tão alto que eu quase pedi silêncio a ele.
— Você podia ter me avisado — soltei, mais corajosa do que me senti.
— Te avisei. — Ele encostou no metal, sem se aproximar muito. — Mas você não gosta de ordens.
— E você gosta?
— Gosto de obedecer ao que mantém vivo. O resto é capricho.
Ficamos ali, palavras dançando na beira de um precipício. Eu via as tatuagens dele como mapas de coisas que eu não conhecia. Quis perguntar por cada desenho, por cada cicatriz. Quis tocar. Não toquei.
— Quem eram? — arrisquei.
— Gente que confunde atalho com passagem. — A resposta veio seca. — E gente assim atropela inocente sem freio.
— Eu não sou inocente. — Saiu antes de eu pensar.
Ele riu, curto, como faca testada no ar.
— Não existe inocência aqui. Só gente que ainda não negociou com a própria sombra.
Silêncio. Lá fora, alguém chamou por “Rato”. Outra língua, outro código. Ele ergueu a cabeça, atento. Quando voltou para mim, a expressão era outra: menos arma, mais homem.
— Você me assusta — confessei, enfim. — E isso… me puxa.
Os olhos dele escureceram ainda mais. Por um segundo, imaginei o que aconteceria se desse um passo à frente. O depósito inteiro pareceu se mover um milímetro.
— Não encosta em mim, Beatriz. — Não foi grosseria; foi um pedido r**m, torto, necessário. — Eu sou lugar errado.
— Talvez eu seja a direção errada também.
Ele aproximou a mão — só a mão — e tocou meu pulso, duas batidas, como quem confere a vida. O resto do corpo ficou distante, obedecendo à própria ordem. Meu sangue respondeu com pressa, denunciando tudo que eu escondia.
— Vê? — sussurrou. — Isso é fogo. E o fogo aqui não esquenta. Queima.
— Às vezes é isso que a gente precisa — murmurei, sem me reconhecer.
Ele soltou devagar. A porta ganhou luz quando a abriu; o mundo, sons quando saímos. Pegou duas caixas, uma em cada braço.
— Eu levo até a clínica. — Não dava margem pra negaça.
— E todo mundo vai ver o subchefe carregando soro pra mim? — provoquei.
Ele semicerrou os olhos.
— Todo mundo vai ver que eu mando o morro abrir pro que me interessa.
Engoli a réplica e fui ao lado dele. No caminho, a mesma vizinhança olhou sem olhar. Senti o perigo andando junto, vacinado. À porta da clínica, ele parou. Nara, lá dentro, arregalou os olhos. Agradeci com a cabeça. Ele não entrou.
— Obrigada — repeti, sabendo que “obrigada” era pouco.
— Não me agradece. Pensa no que te falei. — Virou-se para ir, depois voltou um centímetro. — Se um dia ouvir três estouros seguidos, não olha, corre. Escada dos gatos. Entendeu?
— Entendi.
— Repete.
— Três estouros, eu corro. Escada dos gatos.
— Boa menina.
A expressão “boa menina” deveria ter me irritado. Em vez disso, ficou na pele como marca quente. Ele se afastou, e eu fiquei parada, observando o vulto dele dissolver no beco, como se a sombra também obedecesse.
À noite, no ônibus, olhei minhas mãos. Ainda tremiam um pouco. Pensei no toque breve, nos capacetes pretos, no comando manso que move pedra. Pensei em mim, voluntariamente pisando em terreno que dá alerta. O medo me avisava que a queda vinha. Outra parte — teimosa, íntima — sussurrava que algumas quedas são escolhas.
Fechei os olhos e deixei o morro me atravessar. O perigo me atraía. E, pela primeira vez, eu admiti: eu também atraía o perigo de volta. Isso não é amor, não ainda. É uma linha esticada entre dois telhados, esperando o primeiro passo. Uma linha que, no fundo, eu já sabia que ia cruzar.