Joel
A hierarquia no morro é um fio esticado por cima do abismo. Lá em cima, o Don. Abaixo dele, quem faz o mundo girar: eu e os meus. Cada ordem é uma pedra colocada no lugar certo para que o chão não ceda. E, quando cede, a gente aprende a voar feio.
O dia amanheceu com recado no rádio:
— Central, confirma bloqueio na Leste. Trânsito estranho, moto rondando fora de hora.
— Confirma — respondi. — Rua 6 em silêncio. Hoje não tem bandeira no varal.
Tranquei a ponta do cigarro com raiva antiga e desci as escadas, varrendo o tabuleiro. Rato veio ao meu encontro, um envelope amarrotado na mão. O mesmo papel pardo de ontem, outra caligrafia sem nome. “Quem puxou o gatilho não era meu”, repetia o bilhete de antes, agora com um rabisco a mais: uma seta apontando para o cais. Dedo sujo apontando para o meu quintal.
— Vai ver é brincadeira — Rato tentou aliviar.
— Brincadeira aqui custa enterro — cortei. — Dobra vigia no cais e bota o Bacana no alto do Cemitério. Quem vier por ali, a gente assiste antes de conversar.
A vida de subchefe é feita de listas que sangram: cobrar o Padre, ajustar as drogas na birosca do Aderbal, acertar com o Don o novo horário de silêncio, espalhar comida no armazém da ONG para a vizinhança calar a boca quando a polícia subir. Tudo na ponta da língua, no peso da mão. E, por trás de tudo, uma lembrança teimosa segurando meu pulso por dentro: Beatriz. O nome dela batendo junto com meu batimento, um compasso proibido.
— O Padre chegou — avisou Bacana pelo rádio. — Tá com cara de quem rezou pouco.
Mandei entrar. Ele veio humilde, desculpa ensaiada no bolso.
— Atraso, chefe. Trânsito, minha sogra passou m*l…
— Teu problema é confundir missa com entrega — falei, frio. — Tá faltando quatro.
— Amanhã, com certeza…
— Hoje. — O meu “hoje” cortou o ar. — Ou tua família vira ateia.
Ele tentou rir. Riso que não chegava nos olhos. Aproximou-se demais, e Rato encostou a mão no cabo do ferro. Levantei a palma: calma. Eu ainda acreditava no cálculo. Dei meia hora. Tempo de santo e de pecador.
Enquanto o relógio andava ao contrário, fui ao cais. O lugar cheirava a sal e ferrugem. Dois moleques jogavam tampinha, o som seco no cimento cortando meu raciocínio. Bacana apontou para a curva onde o beco desemboca no rio.
— Se vier, vem por ali. — Ele encostou o binóculo no rosto. — Tão testando a cerca, chefe.
E testaram. Primeiro, uma moto com escapamento gritando. Depois, outra, calada, prateada como peixe. A segunda não olhou para lado nenhum — direção de quem conhece caminho por dentro. Fiz sinal de punho: segura. O morro respirou junto.
Os três estouros vieram quase bonitos, em sequência. Seca advertência do destino: tá acontecendo. A bala mordiscou a parede ao lado e levantou poeira como se dissesse o meu nome. Rato respondeu com dois tiros para o alto. Eu não gosto de fazer barulho sem sentido, mas às vezes barulho é língua.
— Desaparece! — gritei. — Ninguém vira desenho na parede por falta de passo.
Viramos fumaça entre as pilastras, abrimos corpo para a sombra. A moto prateada vacilou, procurou alvo fácil, não achou. Voltei a contar respirações: a minha, a deles, a do morro. Quando o carona virou o tronco de novo, viu só o casco do cais; eu já tinha atravessado por baixo e aparecido do outro lado, onde o vento empurra o cheiro da maré. Meus dedos foram mais rápidos do que meu medo. Agarrei o pulso dele por trás e puxei com força suficiente para o ferro cair no chão, rangendo raiva. A moto tombou. O piloto xingou a família inteira, mas não acelerou; sabia que ali, se fugisse errado, não fugia.
— Quem te mandou? — perguntei, calmo.
— Ninguém — rosnou, com a língua cheia de mentira.
— Então você morreu por iniciativa própria. Bonito.
Rato encostou a arma na nuca dele, e o barulho da maré virou silêncio de igreja. Eu odeio fazer interrogatório com plateia. Dei sinal aos meninos para espiarem a rua. Fiquei com o prateado. Um olhar por cima. Tatuagem m*l feita, cicatriz velha, dedo amassado — sinais de quem não é daqui.
— Repete — pedi, baixo.
— Eu… eu errei de entrada…
Olhei para Rato.
— Errou mesmo. A porta que você queria não dá para a vida.
Pisei no ferro, empurrei o revólver para longe. O corpo quer impor sentença, mas a cabeça pesa. Doeu não porque faltou coragem — coragem sobra —, mas porque, em algum lugar, vi o rosto dela de relance. Beatriz, os olhos grandes, a mão firme no pulso da criança ontem. A lembrança entrou pela minha mira e tirou metade do meu ódio. Metade basta para alguém morrer. Metade basta para alguém viver.
— Leva — decidi, entregando o prateado aos meus. — Some com ele daqui, sem aplauso. E a moto, despedaça. Peixe come cromado hoje.
Quando o cais voltou a ser cais, eu estava com sangue nas mãos. Não era muito. Era o suficiente para manchar a memória. Esfreguei na água da bica. O vermelho desceu teimoso, como se a pele tivesse escolhido ficar marcada.
O rádio chiou:
— Central, atenção. O Padre voltou. E trouxe as quatro.
— Manda entrar — respondi, ainda com a água escorrendo dos dedos.
Ele entrou manso, como quem aprendeu o salmo. Colocou o pacote sobre a mesa. Eu contei em silêncio. Fechou. Olhei para ele sem mel.
— Vê se você aprende que fé é cumprir acordo.
— Sim, chefe. — Suor na testa, olhos presos na ponta do meu punho.
Não bati. Às vezes, o medo de apanhar ensina mais que a porrada. Mandei sair. Rato, por perto, mordeu o ar:
— Eu jurava que você ia…
— Eu também — admiti. — Mas hoje não.
Ele me encarou como se eu tivesse falado outra língua. E, talvez, eu tivesse mesmo. Um trecho novo no meu dicionário: o que Beatriz tinha colocado ali sem autorização. O Don me pediu ferro; eu entreguei resultado. É isso que me mantém vivo. Só que o jeito mudou um grau que ninguém vê — além de mim.
À tarde, subi até a laje principal e vi a clínica lá embaixo, limpa como promessa. A porta abriu e ela saiu, a mochila pesando num ombro só. Parou um instante para falar com a amiga — Nara, se lembro — e riu. O riso bateu no peito como murro macio. Fechei os olhos e pensei que era nisso que eu encostava quando a mira tremia: no som do riso dela, numa sala que cheira a álcool e esperança.
— Tá diferente, chefe? — Bacana arriscou, chegando de mansinho.
— Diferente, não. — Abri os olhos. — Focado.
— Foco no quê?
— Em manter o que importa respirando.
Ele não perguntou o que importava. Agradeci esse respeito. Mandei rodar a troca de turnos, revisar a placa fria da Rua 6, espalhar o boato certo para confundir quem nos observa. Trabalho miúdo de quem segura mundo grande. Antes do pôr do sol, recebi nova ordem do Don: reforçar o silêncio de terça, fechar o corredor da Leste, cobrar a dívida do Gordo da Antena. “Sem falha”, a mensagem dizia. Respondi “sem falha”, e a falha não estava no meu serviço — estava no meu peito, abrindo brecha que eu fingia não ver.
Quando a noite caiu, lavei as mãos de novo. O sangue já tinha ido, mas ficou a ideia. Eu sei o que sou. Sei o que faço. E, mesmo assim, no meio da rotina de ferro, encontro refúgio num nome que não combina com pólvora: Beatriz. Se isso é fraqueza, que seja. Tenho sobrevivido com coisa pior.
Encostei a testa no concreto frio, como ontem, e prometi para mim mesmo duas verdades incompatíveis: manter vivo o morro e manter intacta a moça da clínica. Se o mundo não aceitar, eu quebro o mundo. Se eu não conseguir, que ele quebre a mim primeiro. Porque, no fim, quando lavo as mãos, a mancha que não sai não é sangue: é a vontade de tocá-la sem sujar.