Capítulo 1 – Raízes da Verdade
Antes do Silêncio...
O castelo da floresta era feito de árvores vivas, torres cobertas de musgo, com salões iluminados por cristais que cresciam do teto como frutos de luz. Era ali que eu nasci. Herdeira da magia, filha do rei Elorien e da rainha Lysira. Meus primeiros dias foram cercados por músicas de vento, sorrisos encantados e um amor profundo que atravessava tudo.
Mas eles vieram.
Numa noite sem lua, cobertos por peles e olhos de ferro, os homens da vila invadiram os limites proibidos da floresta. Liderados por um feiticeiro caído que cobiçava o poder da linhagem real, eles cruzaram os portais que só deveriam ser abertos pela luz. Minha mãe me escondeu numa concha de raiz viva, tentando me salvar, mas fui levada.
Meu choro foi a última música que se ouviu naquele salão.
Fui criada longe da floresta, como uma menina comum, esquecida de quem era, com sonhos que pareciam memórias desconexas: um jardim com folhas douradas, um rosto feminino feito de luz, um chão que sussurrava meu nome.
A Vida com os Pais Adotivos...
Quando cheguei ao vilarejo, fui recebida por uma família comum, camponesa. Uma mãe e um pai, que me olharam com um carinho que nunca parecia ser suficiente para preencher o vazio que me acompanhava. Eu não sabia quem eu era, mas sentia que havia algo de errado. Algo fora de lugar.
Havia uma outra filha na casa. Ela se chamava Leia. Cabelos dourados, olhos claros, e sempre atenta ao que acontecia ao redor. Ela era o centro da atenção dos meus pais adotivos. Seu sorriso era como um raio de sol em um campo de flores, enquanto eu, com meus cabelos cacheados e minha pele parda, passava despercebida. Sempre à sombra dela, como uma presença que ninguém notava.
Era como se eu nunca fosse suficiente. Sempre esquecida. Sempre em segundo plano.
Leia recebia todos os elogios. Quando se destacava nas aulas de costura ou quando dançava pela casa com os pés leves como a brisa, ela era celebrada. Mas quando eu fazia algo, fosse um desenho, uma história ou até mesmo um simples gesto de carinho, a reação dos meus pais era fria, quase indiferente.
Aurora era considerada uma amiga da casa, mas na verdade era amiga apenas de Leia. Ela vivia lá, sempre ao lado dela, admirada por todos por sua fala doce e presença educada. Mas quando estavam longe dos adultos, Aurora me olhava com um desprezo sutil, como se eu fosse um estorvo que atrapalhava sua diversão. Eu tentava me aproximar, mas era sempre ignorada ou rebaixada com palavras cortantes disfarçadas de piadas.
Eu sabia. Ela não gostava de mim. Talvez por inveja, talvez por sentir que havia algo em mim que ela não conseguia explicar. Mas o fato era que Aurora me excluía — e isso doía mais do que eu podia demonstrar.
Cresci acreditando que minha diferença era algo errado. Que eu deveria ser como Leia, luminosa e cheia de vida. Mas nunca fui. Eu era apenas... invisível.
Lembro-me das vezes em que me escondia no jardim, entre as flores e as árvores, onde eu sentia uma conexão que nunca experimentei com minha família adotiva. Eu nunca soube o que era, mas sabia que era especial. Às vezes, ouvia a voz da minha mãe verdadeira, uma voz suave e distante, que me chamava. Eu sempre queria responder, mas não podia. Não sabia como.
A vida continuava dessa forma até o dia em que eu me perdi na floresta.
Como me perdi...
Na manhã em que tudo mudou, eu seguia por uma trilha comum, em busca de raízes medicinais para Leia. Ela havia torcido o pé no campo de colheita, e meu pai, com sua preocupação usual voltada apenas para ela, me mandou procurar as ervas necessárias. Aurora, que conhecia bem os arredores, indicou o local com um sorriso frio e distante — como se soubesse que eu me perderia.
O céu estava nublado e o ar, úmido, como se a floresta segurasse o fôlego.
Ouvi um som — como um chamado. Uma voz suave, quase familiar, me guiando para fora do caminho. Não tive medo. Era como se aquela presença me conhecesse. Cada passo parecia certo. Mas logo me vi longe demais, em uma parte da floresta que ninguém ousava entrar.
As árvores eram mais altas ali. Os galhos, curvados sobre mim como braços. A trilha desapareceu sob meus pés. Quando tentei voltar, tudo havia mudado. A floresta fechou-se atrás de mim como um portal selado.
Foi ali, perdida, que a floresta começou a me falar. Nos sussurros do vento, nas raízes que se moviam quando eu dormia, nas águas que se iluminavam com minha presença. E então eu soube: ela não queria que eu fugisse. Queria que eu despertasse.
Foram duas semanas. Quatorze dias desaparecida. Quatorze noites em que o mundo fora engolido pelo breu, e eu... me transformei.
Como ele me encontrou...
Arleo nunca desistiu de me procurar. Enquanto os outros da vila diziam que eu estava morta, ele dizia que meu coração ainda batia junto ao dele. Ele sentia. Sonhava comigo todas as noites. Sabia que eu ainda existia em algum lugar.
Na décima quarta noite, ele voltou à trilha onde fui vista pela última vez. Levava nas mãos um colar meu e uma esperança feroz. Andou sem rumo, até que sentiu o vento mudar. As folhas giraram em espiral e o chão pareceu guiá-lo. Quando atravessou um arco de cipós, a floresta se abriu em uma clareira, e eu estava ali, ajoelhada diante da grande árvore.
Nossos olhos se encontraram como se o tempo tivesse parado. Eu sorri. Ele chorou.
Agora...
Arleo estava ali. Com os olhos marejados, ajoelhado diante de mim. Seu rosto tinha a mesma expressão da primeira vez que nos vimos quando eu tinha quinze anos, só que agora havia um medo profundo escondido no brilho dos olhos dele.
— Mayara... — sua voz saiu em um sussurro, como se temesse me tocar e eu sumir de novo.
Eu era pequena, com meus cabelos cacheados ainda mais bagunçados pelo vento da mata, e os olhos castanhos carregando a lembrança de todos os segredos que agora eu sabia. A floresta tinha me mostrado o que sou.
— Eu estou aqui, Arleo. — disse, e minhas palavras pareceram acalmar o ar ao redor.
Ele se levantou e me envolveu em um abraço forte, como se pudesse me ancorar de volta à terra. Eu senti seu peito tremer contra o meu, e por um instante desejei não precisar contar nada. Apenas ficar ali, com ele, sentindo o calor do seu corpo. Mas eu precisava contar.
A clareira onde estávamos era viva. A árvore colosal no centro nos observava. Suas folhas não tremiam com o vento, mas com a minha presença. Ela era uma sentinela. E eu era sua filha.
— Mayara, você... você está diferente. — Arleo tocou meu rosto com suavidade. — Seu olhar... é como o da floresta.
Assenti, respirando fundo.
— Eu sou filha dela, Arleo. Não no sentido figurado. Eu pertenço à floresta. Sou filha da rainha e do rei que uma vez governaram este lugar com magia viva. Eu fui escondida do mundo... sequestrada. Criada entre humanos para que minha linhagem fosse esquecida.
Ele recuou um passo, confuso. Eu continuei:
— A floresta me chamou de volta. Ela me acordou. E agora, nada será como antes.
O silêncio durou tempo suficiente para que o coração dele acelerasse. Mas então, em vez de se afastar, ele segurou minha mão com firmeza.
— Então vamos descobrir isso juntos. Se você é filha da floresta... eu me tornarei guardião dela. Mas não vou deixar você fazer isso sozinha.
No instante em que ele disse isso, um brilho suave irrompeu em seu peito. Um traço de luz dourada desenhou-se sobre sua pele, como uma marca viva. Era um símbolo antigo, formado por dois galhos entrelaçados em torno de uma pedra, surgindo exatamente sobre o coração dele. A floresta o havia aceitado.
Meus olhos arderam. Arleo. Sempre ele. Desde antes de eu saber quem era. Desde quando eu apenas desejava ser vista.
Nosso beijo naquela noite foi lento, cheio de saudade e esperança. A floresta ao redor pareceu respirar conosco.
Mas em algum lugar, escondida entre sombras, ela observava.
Milena.
Eu não sabia ainda, mas naquele instante, ela decidiu que meu lugar não me pertencia. Que eu não merecia o amor dele. E a escuridão dentro do coração dela se moveu como uma cobra prestes a atacar.
A primeira semente da nossa guerra tinha acabado de germinar.