Aquela manhã nasceu envolta em névoa. A floresta parecia em silêncio respeitoso após os acontecimentos da tarde anterior. O confronto com Milena havia deixado cicatrizes não apenas em nossos corpos, mas no equilíbrio sutil da floresta. As folhas sussurravam mais baixo, e as luzes flutuantes ainda mantinham certa distância, como se ponderassem se ainda éramos dignos de sua companhia.
Eu me sentia exausta, mas também mais desperta. A luz em mim não cessava. Ela pulsava de forma constante, como se algo dentro de mim estivesse prestes a romper as últimas barreiras. A lembrança do brilho dourado nos meus olhos, refletido na água, me assombrava com uma beleza estranha. Era como se eu estivesse assistindo minha própria alma se revelar.
— Você não dormiu, não é? — Arleo perguntou, me trazendo um pouco de raiz doce e folhas frescas. Seu sorriso estava cansado, mas ainda assim, cheio de ternura.
— Não muito. Sonhei com ela. Milena. Mas não era só um sonho... era como se eu estivesse lá com ela, sentindo o que ela sente.
Arleo se sentou ao meu lado, o corpo ligeiramente curvado, protegendo-se do vento úmido.
— A sua magia está se ligando à dela. Vocês foram marcadas pelo mesmo destino, ainda que por caminhos opostos. A floresta quer restaurar o equilíbrio, mas isso exige sacrifícios.
Olhei para ele. A marca em seu peito estava mais visível do que nunca, como se a promessa feita tivesse se solidificado dentro de sua pele. Era linda. Viva. Como se fosse parte dele desde sempre.
— Você também mudou, Arleo. Antes era só coragem. Agora é luz também.
Ele riu baixo, tocando minha mão.
— Talvez seja a convivência com uma princesa mágica da floresta.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, até que uma sensação estranha me envolveu. Algo vinha se aproximando. Não era ameaça... era lembrança.
— Precisamos seguir para o norte — falei de repente, como se as palavras não fossem minhas. — Há algo... alguém... que nos espera.
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A caminhada durou o dia inteiro. A floresta parecia nos guiar, abrindo clareiras e revelando trilhas encobertas há anos. No final da tarde, chegamos a um vale onde o ar parecia mais puro e as árvores mais antigas. Lá, encontrava-se um círculo de pedras cobertas por musgo, onde o tempo parecia ter parado.
E então eles apareceram.
Do centro das pedras, duas figuras emergiram como se tivessem sido moldadas pela própria terra. Um homem alto, com olhos de âmbar e cabelos escuros entrelaçados com folhas douradas. E uma mulher de porte majestoso, de pele luminosa e cabelos prateados, seus olhos eram dois sóis calmos.
— Nossa filha... — disse a mulher, e seu sussurro ecoou em todas as árvores ao redor.
Meu coração parou. Meus pés congelaram. Arleo segurou minha mão.
— Mayara, eles são seus pais.
A rainha Lysira caminhou até mim primeiro. Seus olhos se encheram de lágrimas, e sua mão tocou meu rosto como quem reencontra um pedaço do próprio espírito. O rei Elorien permaneceu atrás, firme como a montanha que dava sombra ao vale, mas seus olhos brilhavam com uma emoção crua.
— Tentamos... tentamos encontrar você todos esses anos — ela disse. — O mundo quebrou quando você foi levada. O coração da floresta adoeceu.
Eu tremia. Não conseguia falar. Todo o vazio, toda a dor de uma infância apagada, silenciosa, ignorada... tudo se desfez naquele abraço.
— Estou aqui agora — sussurrei, e uma onda de calor dourado percorreu minha pele.
Nesse momento, a transformação começou.
Luzes começaram a se desenhar em minha pele como tatuagens vivas. As faixas mágicas douradas se expandiram, subindo por meus braços, costas e pernas, como raízes em chamas. Meus olhos arderam, e quando os abri, vi o reflexo amarelo do sol neles. As unhas soltaram pequenas gotas de ouro a cada movimento. Meu cabelo se ergueu em fios vivos que se entrelaçaram em uma coroa natural, onde pedras preciosas surgiram como brotos cintilantes.
E então senti a dor.
Minhas costas se contraíram. Arleo me segurou quando caí de joelhos, mas não chorei. Não temi. Sabia que aquilo era parte de mim. As asas brotaram com lentidão e brilho, formadas não por penas, mas por luz pura, entrelaçada com filamentos da floresta.
Quando me levantei, meus pais sorriram.
— A herdeira despertou — disse Elorien.
A floresta celebrou. Flores se abriram. O vento dançou. As pedras brilharam.
Arleo se ajoelhou ao meu lado. Não por submissão. Mas por respeito.
— Eu a encontrei perdida. Mas agora sei... foi ela quem me guiou até meu verdadeiro lugar.
Toquei seu rosto.
— E eu só consegui me encontrar... porque você nunca desistiu de mim.
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Passamos a noite ali, com meus pais contando histórias antigas. Sobre o reinado que mantinha a harmonia entre os povos mágicos e humanos. Sobre a traição de um conselheiro que permitiu o sequestro. Sobre como a floresta nunca mais foi a mesma.
— A escuridão que agora toca Milena vem da mesma fonte — disse Lysira. — Uma magia antiga, corrompida. Ela foi exposta a isso muito cedo.
— Ela ainda pode ser salva? — perguntei.
— Se alguém tocar o coração dela antes que ele se feche completamente... sim.
Mas eu não sabia se conseguiria fazer isso.
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Na manhã seguinte, enquanto colhia folhas ao lado de minha mãe, percebi algo curioso. As plantas me obedeciam. Quando eu estendia a mão, elas se voltavam suavemente, oferecendo-se sem ferir suas raízes. As borboletas vinham até mim como a um campo florido. Era como se o mundo tivesse se lembrado de mim.
Arleo treinava com Elorien. Seu corpo se adaptava à energia da floresta com velocidade surpreendente. A cada golpe, ele deixava rastros de luz no ar, como se fosse parte das raízes vivas.
— Ele é digno — disse o rei. — E forte. Mas sua maior força é o amor que sente por você. Isso o torna imbatível.
Eu observava com o coração leve. Pela primeira vez, me sentia inteira.
Mas a paz durou pouco.
Naquela mesma noite, um sussurro me acordou. Uma visão.
Milena, ajoelhada em um campo sombrio. Chorando. Pedindo por algo. E uma figura encapuzada diante dela, estendendo a mão.
— Você quer poder? Então pague o preço.
Ela olhou para cima. E aceitou.
Meu coração apertou.
Ela estava indo longe demais.
E talvez... não houvesse mais volta.