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2546 Words
Após deixar Hector, caminho de volta para dentro do teatro. Agora o lugar está bem mais cheio que antes. Feller já deve ter chegado. Observando pela porta do teatro, vou fazendo uma busca por alguma coisa loira demais. Meus olhos vão passando até chegarem no monitor descendo as escadas. — Ei! Por que demorou tanto? — ele salta dos dois últimos degraus. — Eu acabei tendo um imprevisto no caminho. — Tudo bem, venha logo que a apresentação já vai começar. — Mas eu ainda não me despedi dos meus amigos. — Você faz isso no caminho. Venha logo — não questiono e começo a acompanhá-lo. O espaço na escada é minúsculo, só podendo passar uma pessoa de cada vez. Seguro o corrimão e ultrapasso as fileiras de assentos, tentando avançar na mesma velocidade do monitor. — Angus! — a voz faz eu parar. É a voz de Feller. Enxergo o sorriso dele no fundo de uma fileira e, em seguida, vejo ele se espremendo entre pernas e assentos vindo na minha direção. — Vem, Wesler — o monitor demanda. Olho para Feller e depois para o monitor de novo. — Meu amigo está vindo. — Outra hora você fala com ele. — Mas você disse… — Venha logo, Wesler! — Feller continua tentando chegar a mim, porém, sigo o que o monitor manda. — Tchau, Feller — movimento os lábios com as palavras. Mesmo ele não ouvindo, conseguiu entender. Volto a subir as escadas. Enquanto passo por fileiras de assentos ocupados observo o monitor digitando algo no celular. Ele para por um momento na escada e indica uma entrada para chegarmos ao nosso assento mais rápido. Novamente não questiono e sigo por onde ele indica. Minhas pernas vão batendo nos joelhos de algumas pessoas e vou pedindo desculpas para cada uma. Mais alguns pedidos de desculpas e um pouco mais de constrangimento até atingirmos a última remessa de assentos que leva ao corredor. É insuportável como o teatro é grande. O lugar é até maior que a própria quadra de esportes. Além de ser maior, ainda é difícil de se locomover por ele. Das histórias mais idiotas sobre o internato, a que eu cada vez mais acredito, é a de ele ter sido vários prédios comerciais, que eram muito frequentados nos anos 70, mas após o passar dos anos juntaram tudo e fizeram um internato colocando grades ao redor. Isso já responde à maioria das minhas dúvidas sobre os dormitórios vagos de diferentes tamanhos. Não faltando muito para eu e o monitor chegarmos até os nossos assentos, eu simplesmente bato de cabeça em alguém. Meus olhos que anteriormente só focava em não pisar no pé de ninguém, agora estão zonzos. — Angus? — tiro a mão da testa e visualizo j**k com um sorriso debochado. — j**k? — Oi, como você tá? — dou alguns passos para trás. Seus olhos estão centrados demais no meu rosto quase fazendo eu querer fugir. — Eu tô bem — movo o rostopara o lado. — Anda logo Wesler — o monitor mais uma vez chama minha atenção. — Ei, você! Por favor, se senta e deixe a gente passar. Jack faz o que foi pedido e logo volto a avançar pela fileira tomando cuidado para não pisar no pé de ninguém. Ao chegarmos aos nossos assentos, Eltery já se encontra no seu lugar com a mão segurando um pano enfiado no nariz que pinga sangue. O sangue ainda é bastante, e ele está conseguindo até manchar o assento do monitor com isso. Passo por ele e me sento no mesmo lugar de antes, enquanto o monitor dá uma bronca nele sobre o sangue no seu assento. Caramba! Aconteceu muita coisa. Briga da Heather e do Eltery; enfermaria; diretoria; teatro e conversa com Hector no banheiro. Aconteceu tanta coisa, é no final a única culpada por tudo isso nem foi a mais atingida. É, eu não sei onde isso vai dar. É, eu nunca sei, só finjo que sei. Agora as coisas dependem de Hector, apenas dele, e eu tenho que me acalmar. Quem sabe lavar roupas de cama não me acalme? As luzes finalmente apagam e as cortinas do palco abrem. Um holofote no centro acende e eu vejo o diretor Hoosker subindo ao palco em direção ao holofote com um microfone em mãos. — Boa tarde a todos — ele pronunciou —, espero que estejam tendo um ótimo dia. Exprimo um sorriso. Que dia maravilhoso. — Muito bem. Todos sabemos que estamos em épocas de chuvas e não demorará para o inverno chegar de vez, mas até lá, teremos muitos períodos de chuvas — ele esfrega a palma da mão no nariz e prossegue: — O Rio Saskatchewan está novamente com grande perigo de inundação e pode atingir o internato. A ponte que liga North Battleford a South Battleford já anda perigosa para os carros e o prefeito aconselhou ir por outras rotas. Isso está parecendo como os outros oito anos, a única diferença é que estou com Eltery sangrando do meu lado, de castigo no subsolo, com raiva da Heather e transando com o meu professor de literatura — ou estava. Ah, e quase tirei a virgindade de j**k. Isso, talvez, eu jamais cogitaria Que divertido Angus, você se tornou uma p*****a má. Se continuar assim, logo que sair do internato tem uma bela preparação para trabalhar em um bordel. Às vezes voltar a rezar não é uma escolha r**m. — Eltery, vá pegar outro papel. Eu não aguento mais ver seu nariz sangrando — o monitor cochicha para ele. — Eu acho que eu preciso ver a Dra. Else de novo. — Depois vemos, agora pegue outro papel. Melhor, pegue o rolo todo para limpar essa sujeira que você fez. Quando Eltery tenta se levantar, acaba se desequilibrando e volta a ficar sentado. — Deixa que eu vou pegar. Vocês dois fiquem aqui — o monitor deixa o assento e caminha para as escadas. Eltery fica com olhos fechados e a mão ainda pressionando algo no nariz, que deve ser o curativo, mas agora só vejo um papel cor de vinho de tanto sangue acumulado. Paro de olhá-lo e direciono de volta a minha atenção ao o que o diretor diz no palco. — Então, só gostaria de dizer para todos estarem preparados para um eventual empecilho. Agradeço pela atenção de vocês e agora fiquem com a apresentação de inverno — o diretor se afasta do holofote e desaparece pela parte escura do palco. — O internato tem p******o contra inundação. Não sei o porquê todo o ano esse aviso — a voz de Eltery ecoa, deixo a atenção do palco apenas para confirmar com a cabeça. — Esses avisos são um sonífero — respondo. — São, mas sabe o que é mais sonífero? Essa apresentação vergonhosa de inverno — Eltery retira a mão do nariz somente para apontar ao palco onde um grupo de alunos se reúnem. Exibo um sorriso divertido. É sempre a mesma coisa, a mesma apresentação e a mesma música. É tão insuportável que até parece bom. Observo Eltery de relance mais uma vez e noto mais sangue escorrendo do seu nariz e passando pelos lábios até o queixo. — Você está precisando de ajuda? — ele apenas balança a cabeça em negativo. — Quer que eu chame alguém. — Não, não precisa, eu já vou ficar bem. Só quero assistir isso e ver se algo novo acontece esse ano. — Tem certeza? — estou me enojando com o líquido que pinga do seu queixo. — Tenho — sorri enquanto encara o palco. Está um pouco escuro no palco, mas consigo visualizar algumas pessoas correndo para os lados com panos azuis. O pouco de luz que tem se apaga e, em seguida, volta a ligar uma luz azul com um aluno no meio dela. Agora vai começar a cantoria. O garoto separa os lábios e começa a soltar frases baixas que vão aumentando até formar um coral e eu perceber que o palco está cheio de alunos com roupas azuis e variações brancas. Enquanto o coral solta a música chata, eu vou observando quem está na apresentação. Além da professora de artes, está a namorada de Feller, Amy, e a irmã de j**k, Kira. Elas estão realmente se esforçando para cantar. Olho mais um pouco as pessoas no palco até ver Alice, que também está no meio do coral. Passo a procurar por Hector fora do palco, com a sensação de que ele deve estar de olho nela, só que não o vejo. Retorno a visão ao palco, onde o coral termina e, em sequência, eles começam a dançar circulando pelo centro. A dança começa a ser um pouco hipnotizante para mim, parece um ritual sem muito objetivo. Encontro outra vez Alice pelo meio da apresentação, e logo ela fica no meio do palco e os alunos vão se afastando dela. Alice está com o mesmo tecido azulado dos outros, só que com uma peruca azul em formato de coroa. Ela dá um giro pelo palco apenas na ponta dos pés. De repente ela para, faz o mesmo com a outra perna no instante em que os braços deslizam pelo ar. No canto do palco, a professora de artes a olha admirada. Sinto uma pequena inveja, isso só mostra o quanto sou r**m em todas áreas de artes. Alice vai um pouco para o lado na ponta das sapatilhas, passa um pé para um lado e outro para o lado oposto, começando a fazer um espacate devagar. Uma música calma toca de fundo, algumas pessoas correm atrás dela, fazendo os tecidos azuis levantar. Ela finalmente termina de fazer o espacate, e dois alunos surgem para ajudá-la a se levantar de um jeito teatral segurando por seus braços. Eles a erguem do chão com ela ainda fazendo o espacate no ar e com uma face séria para a plateia. No instante em que ela abaixa as pernas para atingir o chão solta um grito. Isso faz parte da apresentação? Alice se solta dos garotos e vai tropeçando algumas vezes pelo palco, cambaleando com uma das mãos apoiadas na cintura e soltando alguns gemidos de dor. — Alguém me ajuda! — grita. Alice dá mais alguns passos até seu tornozelo torcer de um jeito estranho e acaba despencando do palco. Que p***a!? Um rumor alto repercute pelo teatro e, na mesma sequência, Eltery começa a rir estridentemente ao meu lado. O observo completamente sem reação. Ele ri com os dentes sujos de sangue, segurando os braços da poltrona e indo para frente e para trás com as costas. Não sei o que pensar, eu não sei o que fazer. Na fileira abaixo da nossa, as pessoas começam a nos encarar no instante que Eltery continua se esganiçado na cadeira. j**k e os amigos também passam a olhar. j**k até mesmo arrisca a dar um sorrisinho para mim. Levo a mão ao rosto e cubro os olhos esperando as gargalhadas de Eltery acabarem. O diretor sobe ao palco logo após Eltery ter parado de dar risada. Alice já tinha sido retirada do teatro, eu só espero que ela fique bem. Ela despencou do palco tão inesperadamente que ainda consigo imaginar ela caindo. Caindo diversas vezes. — Um de nossos alunos acabou se machucando… — as mãos do diretor tremem — Foi Alice Kayller. Não sabemos ainda qual foi o grau da fratura. Isso é algo terrivelmente trágico. E por isso, não continuaremos com as apresentações de inverno de hoje. Podem voltar aos seus afazeres e obrigado pela compreensão de todos. O holofote apaga e as luzes do teatro acendem novamente. As pessoas começam a se levantar e caminhar para a saída. Eltery havia acabado de dormir depois de rir tanto, seu corpo está jogado para uma poltrona livre do lado oposto ao meu. O sangue nele está pior do que tinha imaginado, a frente da camiseta está quase toda de tonalidade vinho. O sangue se localiza desde o seu nariz, lábios, pescoço até as calças. O rosto, mesmo que a Dra. Else tenha limpado, os arranhões estão muito nítidos e alguns mostram partes da pele que rasgaram no chão da quadra. É aflitivo, parece que consigo sentir em mim. Estico a mão até o nariz dele para identificar se está a respirar. Com o peso do ar atingindo a minha pele, logo afasto a mão. Tanto sangue está me incomodando. Isso tá soando como uma cena de crime. Não estou conseguindo deixar de olhar para o rosto dele. Tomo a iniciativa de retirar a minha blusa e limpá-lo. Puxo o corpo para fora da blusa, e quando me livro da bluso, coloco-a em cima do colo. Observo de relance Eltery, constatando se ele não deve estar acordado. Não há mais quase ninguém no teatro, todo mundo já foi menos alguns professores. O monitor tinha saído para buscar papel para Eltery, só que ele não voltou até agora e Eltery está fedendo igual a uma carniça de animal. Cheira a metal por causa do sangue e a algo a mais. Levanto-me aos poucos, percorro a frente de Eltery, até conseguir ficar de frente para ele. Seu rosto está bem pior de perto. Os curativos não adiantaram muito, mas pelo menos o sangue parou de escorrer e agora está seco. Encaminho uma parte do tecido da blusa até o pescoço dele e com uma mão começo a descolar o sangue da pele com certo nojo e tentando deixá-lo no mínimo mais apresentável. Com o tanto de sangue que ele perdeu, eu não fico nem um pouco surpreso de não estar acordando. Termino de limpar o pescoço e passo para limpar o queixo dele com o outro lado do tecido da blusa. Jack estava realmente certo, Eltery é bonito. Tem características indígenas, desde a pele marrom até os cabelos castanhos um pouco cacheados. Possui grande chance de ser um nativo canadenses do que mexicano. Acho que Heather nem chegou a pensar nisso. Eu também nunca pensei sobre isso. Ao conseguir tirar a maioria do sangue do rosto dele, forcei um sorriso e fico observando o meu trabalho. — Angus? — seus olhos abrem. Dou alguns passos para trás. — Oi? — Me desculpa. ____∞____ Na madrugada, não consigo dormir muito e logo me levanto para ir embora. Angus questiona confuso para onde eu vou e tenho de revelar. “Não posso continuar no internato, e muito menos em um dormitório de um aluno. Como conseguirei ir embora depois? Não posso ficar mais tempo aqui. Estamos correndo perigo de sermos pegos” conto enquanto pego minha blusa de moletom. “Você poderia ficar mais um pouco.” “Não posso, Angus” olho para a minha blusa na mão e chego mais perto dele. “Ei” começo, “Fica com esta blusa para saber que não estou te abandonando. Eu prometo que volto.” Ponho a blusa sobre a cama dele e dou um beijo rápido em seus lábios, me afastando da cama. “Nos vemos segunda” ele observa pensativo, “Certo?” “Sim.” Angus volta a se deitar, desta vez agarrado à minha blusa e observando eu abrir a porta. Com um sutil sorriso, dou um aceno de cabeça e o deixo.
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