Cheiro de Sabão e Gasolina
O sol rachava o chão de cimento da Baixada Nova como se quisesse derreter cada centímetro de dignidade que ainda restava naquele lugar. Lara puxou o boné de aba reta sobre os olhos e ajeitou a mangueira entre os dedos. O sabão escorria pelas mãos, misturado ao suor e à poeira, e fazia arder os pequenos cortes abertos de tanto esfregar latarias alheias.
— Larinha, acelera aí! — gritou Joel, o dono do lava-jato improvisado com lona e barris velhos. — Esse aí é patrão. Carro de rico, ó o brilho que tem que tá!
Ela respondeu com um gesto rápido e voltou os olhos para o carro preto que acabava de estacionar. Não era qualquer carro. Era um Jaguar XF, modelo novo, pintura reluzente e vidros tão escuros quanto a alma de quem estava dentro.
O motorista desceu primeiro — terno preto, óculos escuros, rosto trancado.
Mas foi o homem que saiu do banco de trás que paralisou Lara.
Alto. Elegante. Feições duras, mandíbula cerrada, barba feita na navalha. O tipo de homem que não olha duas vezes pra alguém como ela. Mas que tinha poder o suficiente pra arrancar respeito sem dizer uma palavra.
— Lava direito, que ele é exigente. — murmurou Joel ao passar por ela, tenso como nunca.
Ela não respondeu. Só pegou o balde e começou a trabalhar. Manteve os olhos no carro, mas os ouvidos no dono. Ele falava ao telefone, voz firme, impaciente.
— Manda o contrato pra minha mesa. Não me interessa se o advogado surtou. Se não assinar até amanhã, a Ferraz rompe o acordo.
Ferraz?
O nome bateu como um soco no estômago. Grupo Ferraz. A maior rede de importação e distribuição de automóveis do país. Aquilo explicava o carro. Explicava o terno. Explicava a aura de quem nasceu pra mandar e nunca precisou pedir.
Lara fingiu não olhar, mas cada palavra que ele soltava grudava nela como o sabão nas calotas cromadas.
— Não me faça perder tempo com gente incompetente. — Ele encerrou a ligação com um deslize seco no celular e só então se virou, como se tivesse sentido o olhar dela queimando de curiosidade.
Os dois se encararam.
Lara tinha o pano na mão. O braço sujo de espuma. O top colado à pele suada. E uma dignidade pendurada por um fio.
Ele? Ele era o próprio capitalismo em carne e osso. Com olhos claros e cruéis como gelo caro.
— Você. — a voz dele cortou o silêncio. — Tá riscando minha porta.
Ela piscou. Parou. Olhou a porta. Nada.
— Senhor, não tem risco. É só água secando rápido demais.
Ele caminhou devagar até o carro, parando a centímetros dela. O perfume que usava era tão caro quanto invasivo. Uma mistura de sândalo, arrogância e alguma colônia francesa difícil de pronunciar.
— Isso é desculpa de amadora. Se quer trabalhar com serviço, aprenda a olhar detalhes. Ou volte pra esfregar chão de bar.
Ela não sabia se sentia raiva ou vergonha. Talvez os dois.
— Não preciso de lição de moral de homem engravatado que nunca segurou um pano na vida. — rebateu, sem levantar a voz, mas sem abaixar a cabeça.
Joel ouviu, arregalou os olhos e correu na direção deles.
— Ela é nova, doutor Inácio. Ainda tá pegando o jeito. Desculpa, viu?
Inácio.
Era ele.
Inácio Ferraz. O nome que valia milhões. O CEO que aparecia em capas de revista. O homem que ela viu na televisão há uma semana, sendo homenageado como empresário do ano. E ali estava ele... com as calças da Armani quase tocando a água suja da Baixada Nova.
Inácio nem olhou pra Joel. Continuou encarando Lara. Uma tensão estranha surgiu no ar, como uma corda esticada prestes a arrebentar.
— Qual seu nome? — perguntou, seco.
— Lara.
— Quantos anos?
— Vinte e dois.
— Estuda?
— Estudava. Parei no segundo período de Turismo. Não tinha mais como pagar.
Ele assentiu como se aquilo fosse previsível. Como se a história dela fosse apenas estatística.
— E tá aqui por escolha ou necessidade?
Ela mordeu o lábio. O sangue ferveu. Mas respondeu.
— Por sobrevivência. Que é diferente de opção.
Um leve sorriso torto surgiu nos lábios dele. Mas não era de simpatia. Era de provocação.
— Hm. Interessante.
E então, sem aviso, ele puxou uma nota de quinhentos reais da carteira e entregou a ela.
— Termina de lavar. E da próxima vez, use menos espuma. A beleza tá no acabamento, não no excesso.
Lara pegou o dinheiro com a mão molhada. Olhou o valor. Era quase metade do que ganhava em uma semana.
— Isso é pra calar minha boca? — sussurrou, olhando de novo pra ele.
Inácio deu de ombros.
— Chame como quiser.
Entrou no carro e, segundos depois, desapareceu, deixando apenas o cheiro caro e a arrogância cravada no chão rachado.
Lara ficou ali, parada, olhando o sabão escorrendo pela sarjeta. A nota de quinhentos molhada nas mãos. E a certeza de que alguma coisa dentro dela tinha mudado naquele momento.
Não era só raiva.
Não era só curiosidade.
Era algo mais perigoso.
Era vertigem.
Naquela noite, o céu ameaçava desabar sobre os barracos da Baixada. Lara andava entre os becos estreitos segurando um saco de pão e dois refrigerantes baratos. O chinelo batia no chão molhado e o cabelo, ainda úmido do banho, grudava na nuca.
Ela entrou em casa, uma construção simples de dois cômodos que dividia com a tia e dois primos pequenos. A televisão chiava no volume máximo. A tia cozinhava no fogão de uma boca só.
— Demorou, hein — disse a tia sem olhar. — Tava com quem?
— Com o patrão. — respondeu, irônica. — O tal Inácio Ferraz apareceu no lava-jato hoje.
A tia se virou na mesma hora.
— O dono da Ferraz Automóveis?
— O próprio. Arrogante até os ossos.
— E tu lavou o carro dele?
— Lavei. E lavei a cara dele também, com umas verdades.
A tia riu, mas logo voltou à panela.
— Melhor tu não mexer com esse tipo de gente, Larinha. Rico não olha pra nós com respeito. Só com vontade. E depois joga fora como pano velho.
Lara ficou em silêncio.
Mas algo dentro dela — talvez o orgulho, talvez o desafio — já sabia que aquele homem ainda ia cruzar o caminho dela de novo.
Não porque ela queria.
E quando homem rico quer… o mundo dá um jeito de entregar.
Na manhã seguinte, Joel apareceu com um sorriso forçado no rosto.
— Parabéns, hein, Larinha.
Ela franziu a testa.
— Parabéns por quê?
Ele coçou a nuca.
— O homem ligou. Quer que você vá até o prédio da Ferraz amanhã. Disse que é uma “oportunidade”.
Lara travou.
— Que tipo de oportunidade?
— Não sei. Mas parece que você impressionou o tal CEO. Vai, mulher… isso pode mudar tua vida.
Ela olhou pro balde, pro sabão, pro pano já encardido. Depois olhou pra própria mão cheia de calos.
E lembrou dos olhos dele.
Dos quinhentos reais molhados.
Do sorriso torto.
Aquilo era só o começo.
Mas Lara ainda não sabia... que a queda seria muito maior do que a subida.