Lara nunca tinha pisado num prédio tão alto. Nem em um tão silencioso. O hall da Ferraz Automóveis parecia uma vitrine de revista de luxo: mármore branco polido, arranjos florais impecáveis, recepcionistas com roupas engomadas e vozes robóticas. Ela se sentia como um respingo de graxa no meio de um consultório odontológico.
As pessoas a olhavam com uma expressão que ela conhecia bem. Aquela mistura de desdém com curiosidade venenosa. Vestia uma calça jeans escura — a melhor que tinha — e uma blusa simples, passada a ferro pela tia na noite anterior. O cabelo preso num coque improvisado e o rosto lavado, sem maquiagem. Só o batom vermelho pra lembrar a si mesma que ainda era mulher.
A recepcionista torceu a boca ao vê-la se aproximar.
— Posso ajudar? — perguntou, mesmo já deduzindo que Lara estava no lugar errado.
— Tenho horário com o senhor Inácio Ferraz.
A outra arqueou uma sobrancelha com evidente desconfiança.
— Seu nome?
— Lara Souza.
A mulher digitou algo no computador. O silêncio foi cortado pelo tilintar das teclas.
— Ele está te aguardando no último andar. Elevador privativo.
Lara quase riu.
Privativo.
Como se o mundo já não fosse todo reservado pra gente como ele.
O elevador era todo espelhado por dentro. E à medida que subia, ela via não só seu reflexo, mas tudo que não era: pele lisinha, unhas feitas, postura fina. Sentiu o coração acelerar. As mãos suavam. Mas não era medo. Era raiva. Era desconforto transformado em firmeza.
Ao chegar no 28º andar, as portas se abriram para um corredor amplo e silencioso, onde cada passo ecoava. E ali, na outra ponta, com as mãos nos bolsos e a camisa social impecavelmente dobrada nos antebraços, estava ele.
Inácio Ferraz.
Com aquele olhar que dizia: “Eu te tirei do chão. Agora quero saber o que você faz aqui em cima.”
— Achei que você não viria. — disse ele, com um meio sorriso que mais parecia um teste.
— Achei que era pegadinha. — ela rebateu.
— E veio mesmo assim?
— Curiosa. Ou burra. Ainda não decidi.
Ele deu uma risada seca e caminhou até uma sala com portas de vidro fosco.
— Entra. Quero te mostrar uma coisa.
Lara hesitou. Mas entrou.
A sala era ampla, fria, planejada. Livros de arte e economia. Garrafas de uísque caríssimo na prateleira. Uma parede inteira de vidro com vista para a cidade — os prédios se estendendo como se fossem donos do céu.
— Senta. — ele indicou uma das poltronas.
Ela obedeceu, desconfiada.
— Por que eu tô aqui?
— Porque você é um caso raro, Lara. — Ele se encostou na mesa. — Gente que me enfrenta sem medo geralmente tem dois perfis: ou muito burra… ou muito boa no que faz.
— E eu sou qual dos dois?
— Ainda tô avaliando.
Ela cruzou os braços.
— Vai direto ao ponto, Ferraz. O que você quer?
Inácio se aproximou, olhos fixos nela.
— Quero te contratar.
Ela quase gargalhou.
— Contratar? Pra quê? Esfregar seu carro com pano de seda?
— Não. Quero você aqui dentro. Na minha empresa. Quero que comece pela base. Faxina. Administrativo, talvez, depois. Aprender o sistema. Observar. Entender.
— Você quer transformar a lavadora de carro em secretária executiva?
— Eu quero te observar em outro ambiente. Ver se essa sua coragem é só pose… ou se você é capaz de crescer nesse mundo.
Ela se levantou.
— Isso é algum tipo de experimento social? Você é milionário, não tem o que fazer e resolveu brincar de transformar favelada em dama da sociedade?
— Não brinco com dinheiro, Lara. E você sabe disso.
— Mas brinca com gente?
Silêncio.
Ele aproximou-se, devagar. O olhar dele baixou até os lábios dela, depois subiu de novo. A tensão entre os dois era densa como fumaça.
— Eu te vi. Naquele dia. Lavando meu carro. E vi mais do que sabão e calos. Vi vontade. Vi fogo.
— Então é isso? Você me quer aqui pra satisfazer sua vontade?
Ele não respondeu.
Mas ela entendeu.
E antes que ele completasse qualquer gesto, Lara se afastou.
— Eu aceito. — disse, firme. — Mas vou te dizer uma coisa, Inácio Ferraz… Eu não sou brinquedo. Se quiser me testar, se prepare pra ser testado também.
Ele sorriu de leve.
— Gosto de gente que morde de volta.
Duas semanas depois, Lara já sabia o que era ser engolida por um sistema feito pra esmagar quem veio de baixo.
Na empresa, ninguém disfarçava o incômodo com sua presença. As outras faxineiras — todas mais velhas — se afastavam dela como se carregasse lepra. Os funcionários da área administrativa cochichavam, faziam piadas. E o pior: todos sabiam.
Sabiam que ela tinha sido “a garota do lava-jato”.
Sabiam que tinha “caído nas graças do chefe”.
E sabiam o que isso significava.
A primeira a deixar isso claro foi Beatriz Ferraz, irmã de Inácio, que entrou na recepção um dia com seu salto agulha, blazer branco impecável e perfume tão agressivo quanto a língua.
— Você é a tal Lara? — perguntou, sem sorrir.
— Sim, senhora.
— Hm. Bonita. Mas o cheiro de sabão ainda não saiu.
Lara ficou em silêncio.
— Espero que saiba que a Ferraz Automóveis é uma empresa séria. E que aqui, certas... intimidades não te garantem estabilidade.
— Não estou aqui por i********e. Estou trabalhando. E sou paga pra isso.
Beatriz riu com escárnio.
— Ah, querida… até a faxina da sala do meu irmão tem câmeras. Não esquece disso.
A ameaça estava clara.
E pela primeira vez, Lara sentiu um calafrio na espinha.
Naquela noite, em casa, ela desabafou com Mateus.
— Eles não me enxergam como funcionária. Me veem como invasora.
— Você é mesmo. — disse ele. — Tá invadindo um sistema que nunca te quis. E isso é bom.
— Mas cansa.
— Vai cansar mais. E talvez te quebrem. Mas se quebrar, quebra de cabeça erguida.
Mateus era o único que ela confiava. Moravam na mesma rua desde criança. Ele, ex-traficante regenerado. Ela, a menina que lavava carro pra pagar a faculdade. Ele a chamava de “linha de frente” desde sempre.
— Você não é pano velho, Lara. É navalha no sabão. Corta sem ninguém perceber.
Ela sorriu. Um sorriso pequeno, mas real.
Na manhã seguinte, enquanto limpava uma das salas do setor jurídico, Lara ouviu um grupo de funcionários rindo do lado de fora.
— ... e dizem que ele gravou, acredita?
— Gravou o quê?
— A primeira noite dela com ele. Tem vídeo, pô. Isso vai vazar mais cedo ou mais tarde.
— Duvido! Imagina o escândalo!
— Ué, Ferraz é Ferraz. Até pra destruir, eles fazem com classe.
Lara sentiu o sangue gelar. O pano caiu da mão. As vozes ainda ecoavam quando ela saiu da sala, cambaleando.
Gravado.
Vídeo.
O pânico tomou conta. As palavras de Beatriz voltaram à mente: “a sala tem câmeras”.
Aquela noite — a que ela jurou esquecer, a noite em que cedeu, em que acreditou por um segundo que havia alguma humanidade em Inácio — tinha sido registrada?
Ela correu pro banheiro e trancou a porta. O coração disparava. As mãos tremiam.
Se fosse verdade… o mundo inteiro veria.
E não teria volta.