Imagens em Silêncio

990 Words
O mundo parecia mudo enquanto Lara subia os andares da Ferraz Automóveis. As conversas sussurradas pelos corredores agora tinham som, forma e intenção. Cada risada que ouvia, cada olhar enviesado que sentia nas costas, gritava a mesma coisa: “Todo mundo sabe.” O elevador parecia apertado demais, mesmo vazio. Cada número que se acendia era um soco no estômago. Quando chegou ao 28º andar, não hesitou. Bateu firme à porta da sala de Inácio e entrou sem ser anunciada. Ele estava de pé, olhando pela enorme janela de vidro. Como se observasse o mundo de cima. Como se pertencesse a um plano onde ninguém mais podia tocar. — A gente precisa conversar. — ela disse. Ele nem se virou. — Eu pedi pra te anunciarem? — Não sou secretária. Tô aqui como mulher que você usou e depois largou como lixo. Agora ele se virou. Lentamente. O rosto impassível. — Cuidado com o tom. — Cuidado você. Cê sabe do que tão falando aqui dentro? Cê sabe que tão dizendo que… que você gravou a gente? Ele não esboçou surpresa. Nem culpa. Só caminhou até a mesa, puxou uma cadeira e sentou com calma. — E se eu tivesse? Lara ficou em silêncio. O corpo todo tenso. A garganta fechada. — Você tá dizendo que é verdade? Ele apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos e soltou o golpe com a frieza de quem assina a demissão de um funcionário qualquer. — Lara… você realmente achou que alguém como eu… poderia olhar pra alguém como você e ver algo além de diversão? Ela sentiu o chão sumir. A respiração falhou. O corpo queimava de vergonha e ódio. — Você me tratou como gente. — ela sussurrou. — Eu te tratei como você se colocou. Fácil. Rápida. Disposta. Lara arregalou os olhos, ferida por dentro de um jeito que nem ela conseguia nomear. — Eu acreditei em você… Ele riu. Um riso abafado, cínico, nojento. — Acreditou porque quis. Eu não prometi nada. Só te mostrei o que você queria ver. — Você me chamou aqui pra isso? Pra me envergonhar? — Te chamei porque achei útil te colocar num lugar onde eu pudesse te controlar. Gente da sua laia causa problema quando sente que tem valor demais. E agora… você tá começando a causar. Ela deu um passo pra trás, tremendo. Mas o olhar permaneceu firme. — Você é pior do que eu pensava. — E você é exatamente o que eu esperava. — disse ele, se levantando. — Uma garota da favela querendo se vestir de mulher do patrão. Mas no fim... é só pano molhado. Secou, já era. Lara levou segundos pra conseguir reagir. O orgulho dela, que ainda resistia, se ergueu com um último suspiro. — Eu vou sair dessa empresa. Mas não vou sair calada. Você pode ser dono dessa torre… mas não manda na verdade. E a verdade, Inácio, é que um dia o mundo vai te engolir seco. Ele deu dois passos em direção a ela, a centímetros do seu rosto. — O mundo me aplaude, Lara. O mundo não liga pra verdades sujas vindas de gente como você. Ela olhou pra ele como quem vê o fim de algo que nunca começou. Um homem belo, rico… e absolutamente podre por dentro. — Aplaude... por enquanto. E saiu. Com a alma rasgada, mas as pernas firmes. O caminho até a favela foi feito sem um pingo de lágrima. Lara não chorou. Não tremia. Mas estava em carne viva. A humilhação queimava na pele. Na mente. No sexo. No orgulho. Entrou em casa, bateu a porta e jogou a bolsa no chão. Mateus, que estava no sofá, se levantou na hora. — Que foi? — Ele me usou. Me gravou. Me jogou fora. — Como assim, gravou? — Dizem que tem vídeo. Da gente. Da noite em que eu... Ela se engasgou com a própria voz. — Eu fui uma i****a, Mat. Eu acreditei naquele desgraçado. Ele me chamou de pano molhado. Mateus fechou os punhos. O maxilar dele trincava de raiva. — Eu vou matar esse filho da p**a. — Não vai fazer nada. — ela disse, com frieza. — Deixa que eu me viro. — Ele tem tudo, Lara. Dinheiro. Gente. Controle. — Mas não tem minha alma. E é isso que ele tentou comprar. Só que agora, sou eu quem vai usar esse fogo aqui dentro. Ela colocou a mão no peito. — Eu vou me levantar. E vou fazer esse homem engolir cada palavra. Mas do meu jeito. Sem me rebaixar. Mateus olhou pra ela com respeito. E medo. Porque conhecia aquele olhar. Era o mesmo que ela tinha quando decidiu começar a lavar carros pra pagar a faculdade. Quando tirou o irmão da boca de fumo. Quando acordava às cinco da manhã sem reclamar. Era o olhar de quem já caiu no chão e agora não tem mais nada a perder. No dia seguinte, Lara não apareceu na Ferraz Automóveis. Nem na semana seguinte. E todos acharam que ela tinha sumido como uma sombra suja que nunca devia ter estado ali. Mas Lara estava viva. E mais perigosa do que nunca. Enquanto isso, na cobertura do prédio da família Ferraz, Beatriz lia o jornal com os pés cruzados e um sorriso contido. — Então acabou, irmão? — perguntou, sem tirar os olhos da manchete. — Ela se colocou no próprio lugar. Era questão de tempo. — disse Inácio, servindo uísque. — Espero que você tenha aprendido. Essas meninas do morro são espertas. Se você baixar a guarda, elas se infiltram. Grudam feito carrapato. — Não se preocupe, Beatriz. A diversão já foi. Agora, é como se ela nunca tivesse existido. Beatriz deu um gole no café e murmurou: — Veremos. Porque o que ninguém esperava... era que Lara, no silêncio, já começava a se mover. E o que vinha a seguir... ninguém podia prever. Nem mesmo Inácio Ferraz.
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