O mundo parecia mudo enquanto Lara subia os andares da Ferraz Automóveis. As conversas sussurradas pelos corredores agora tinham som, forma e intenção. Cada risada que ouvia, cada olhar enviesado que sentia nas costas, gritava a mesma coisa:
“Todo mundo sabe.”
O elevador parecia apertado demais, mesmo vazio. Cada número que se acendia era um soco no estômago. Quando chegou ao 28º andar, não hesitou. Bateu firme à porta da sala de Inácio e entrou sem ser anunciada.
Ele estava de pé, olhando pela enorme janela de vidro. Como se observasse o mundo de cima. Como se pertencesse a um plano onde ninguém mais podia tocar.
— A gente precisa conversar. — ela disse.
Ele nem se virou.
— Eu pedi pra te anunciarem?
— Não sou secretária. Tô aqui como mulher que você usou e depois largou como lixo.
Agora ele se virou. Lentamente. O rosto impassível.
— Cuidado com o tom.
— Cuidado você. Cê sabe do que tão falando aqui dentro? Cê sabe que tão dizendo que… que você gravou a gente?
Ele não esboçou surpresa. Nem culpa.
Só caminhou até a mesa, puxou uma cadeira e sentou com calma.
— E se eu tivesse?
Lara ficou em silêncio. O corpo todo tenso. A garganta fechada.
— Você tá dizendo que é verdade?
Ele apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos e soltou o golpe com a frieza de quem assina a demissão de um funcionário qualquer.
— Lara… você realmente achou que alguém como eu… poderia olhar pra alguém como você e ver algo além de diversão?
Ela sentiu o chão sumir. A respiração falhou. O corpo queimava de vergonha e ódio.
— Você me tratou como gente. — ela sussurrou.
— Eu te tratei como você se colocou. Fácil. Rápida. Disposta.
Lara arregalou os olhos, ferida por dentro de um jeito que nem ela conseguia nomear.
— Eu acreditei em você…
Ele riu. Um riso abafado, cínico, nojento.
— Acreditou porque quis. Eu não prometi nada. Só te mostrei o que você queria ver.
— Você me chamou aqui pra isso? Pra me envergonhar?
— Te chamei porque achei útil te colocar num lugar onde eu pudesse te controlar. Gente da sua laia causa problema quando sente que tem valor demais. E agora… você tá começando a causar.
Ela deu um passo pra trás, tremendo. Mas o olhar permaneceu firme.
— Você é pior do que eu pensava.
— E você é exatamente o que eu esperava. — disse ele, se levantando. — Uma garota da favela querendo se vestir de mulher do patrão. Mas no fim... é só pano molhado. Secou, já era.
Lara levou segundos pra conseguir reagir. O orgulho dela, que ainda resistia, se ergueu com um último suspiro.
— Eu vou sair dessa empresa. Mas não vou sair calada. Você pode ser dono dessa torre… mas não manda na verdade. E a verdade, Inácio, é que um dia o mundo vai te engolir seco.
Ele deu dois passos em direção a ela, a centímetros do seu rosto.
— O mundo me aplaude, Lara. O mundo não liga pra verdades sujas vindas de gente como você.
Ela olhou pra ele como quem vê o fim de algo que nunca começou. Um homem belo, rico… e absolutamente podre por dentro.
— Aplaude... por enquanto.
E saiu. Com a alma rasgada, mas as pernas firmes.
O caminho até a favela foi feito sem um pingo de lágrima. Lara não chorou. Não tremia. Mas estava em carne viva. A humilhação queimava na pele. Na mente. No sexo. No orgulho.
Entrou em casa, bateu a porta e jogou a bolsa no chão.
Mateus, que estava no sofá, se levantou na hora.
— Que foi?
— Ele me usou. Me gravou. Me jogou fora.
— Como assim, gravou?
— Dizem que tem vídeo. Da gente. Da noite em que eu...
Ela se engasgou com a própria voz.
— Eu fui uma i****a, Mat. Eu acreditei naquele desgraçado. Ele me chamou de pano molhado.
Mateus fechou os punhos. O maxilar dele trincava de raiva.
— Eu vou matar esse filho da p**a.
— Não vai fazer nada. — ela disse, com frieza. — Deixa que eu me viro.
— Ele tem tudo, Lara. Dinheiro. Gente. Controle.
— Mas não tem minha alma. E é isso que ele tentou comprar. Só que agora, sou eu quem vai usar esse fogo aqui dentro.
Ela colocou a mão no peito.
— Eu vou me levantar. E vou fazer esse homem engolir cada palavra. Mas do meu jeito. Sem me rebaixar.
Mateus olhou pra ela com respeito. E medo.
Porque conhecia aquele olhar.
Era o mesmo que ela tinha quando decidiu começar a lavar carros pra pagar a faculdade. Quando tirou o irmão da boca de fumo.
Quando acordava às cinco da manhã sem reclamar.
Era o olhar de quem já caiu no chão e agora não tem mais nada a perder.
No dia seguinte, Lara não apareceu na Ferraz Automóveis.
Nem na semana seguinte.
E todos acharam que ela tinha sumido como uma sombra suja que nunca devia ter estado ali.
Mas Lara estava viva.
E mais perigosa do que nunca.
Enquanto isso, na cobertura do prédio da família Ferraz, Beatriz lia o jornal com os pés cruzados e um sorriso contido.
— Então acabou, irmão? — perguntou, sem tirar os olhos da manchete.
— Ela se colocou no próprio lugar. Era questão de tempo. — disse Inácio, servindo uísque.
— Espero que você tenha aprendido. Essas meninas do morro são espertas. Se você baixar a guarda, elas se infiltram. Grudam feito carrapato.
— Não se preocupe, Beatriz. A diversão já foi. Agora, é como se ela nunca tivesse existido.
Beatriz deu um gole no café e murmurou:
— Veremos.
Porque o que ninguém esperava... era que Lara, no silêncio, já começava a se mover.
E o que vinha a seguir... ninguém podia prever.
Nem mesmo Inácio Ferraz.