Onde Sangra Não Aparece

1042 Words
A segurança da Ferraz Automóveis nunca esperava por aquele tipo de visita. Mateus Andrade entrou no saguão do prédio com o peito estufado e os olhos queimando de raiva contida. A camiseta colada ao corpo mostrava as tatuagens da juventude e o passado que ele nunca negou. Ex-traficante, hoje ativista social, conhecia o cheiro da guerra desde pequeno. Mas naquele dia, o cheiro era outro. Era cheiro de sangue prestes a secar no asfalto. — Tenho hora com o senhor Inácio Ferraz. — disse, encarando o recepcionista como se tivesse sido convidado pessoalmente. O homem engasgou com a própria saliva. Digitou, tremendo. — O senhor... tem nome? — Mateus Andrade. Diz pra ele que vim por Lara Souza. O recepcionista hesitou, mas não ousou barrar. Ligou. Confirmou. E liberou o acesso com o mesmo receio de quem solta uma granada com o pino solto. No 28º andar, Inácio estava revendo relatórios quando a porta se abriu sem cerimônia. Mateus entrou com a força de um trovão. — Então é você. O tal gênio. O rei da Ferraz. O homem que acha que pode brincar com gente e sair ileso. Inácio levantou os olhos, confuso por um segundo. Depois entendeu. E sorriu, debochado. — Ah… o salvador da favela. O conselheiro de Lara. Que honra. Mateus não sentou. Nem piscou. — Você tem sorte de eu estar aqui falando. Porque o que você fez com ela… na quebrada onde a gente vive, isso tem nome. E tem preço. — Jura? — Inácio se levantou devagar. — E quanto custa a sua dignidade, Mateus? — A minha você nunca vai comprar. Inácio caminhou até a prateleira, pegou um envelope grosso e o jogou sobre a mesa. — Cinquenta mil. Pra você calar a boca. Sumir com a Lara. E nunca mais meter o nariz no que não te pertence. Mateus olhou pro envelope, depois pra Inácio. — Você acha mesmo que é dinheiro que move o mundo? — Dinheiro, poder, silêncio. No fim, é tudo a mesma coisa. Mateus se aproximou devagar, os punhos fechados. — Eu vivi do lado do crime. Vendi droga, vi gente morrer com um tiro no olho por causa de trinta reais. Vi mãe enterrando filho por dívida de tráfico. Mas você, Inácio Ferraz… você é o tipo mais nojento. Porque se esconde atrás de ternos e notas fiscais pra fazer o mesmo estrago. Só que com sorriso limpo e currículo bonito. — Cuidado com o tom. Isso aqui é uma empresa, não a sua viela. — Eu posso até ter vindo da viela… mas lá, a palavra vale mais do que sua nota de cinquenta mil. E te digo aqui, na sua cara: se esse vídeo existir e sair… se ela for humilhada de novo… eu destruo você. Tijolo por tijolo. Inácio deu uma risada cínica. — E como pretende fazer isso? Vai me ameaçar com fuzil? Botar o tráfico pra cima da minha empresa? — Não. Vou te desmontar como se desmonta um mito. Porque você, Inácio… é só isso: aparência. Um império de vidro que se acha de aço. Inácio estreitou os olhos. — Você tá jogando com fogo. — Não. Tô avisando. Você mexeu com a mulher errada. E agora, mexeu com o homem que a protege. — Ela não precisa de proteção. Ela se entregou porque quis. Sabia no que estava se metendo. Mateus se inclinou sobre a mesa. — Ela confiou. Só isso. E foi traída. Por alguém que vive cercado de luxo, mas não sabe o que é dignidade. Silêncio. A tensão entre os dois podia ser cortada com uma faca. Inácio então se recostou. — Você quer justiça? Ou quer aparecer como herói? — Eu quero que ela se levante. E que você se afogue no próprio nome quando isso acontecer. — Boa sorte. Porque esse nome ainda compra manchetes. Mateus virou-se para sair. Mas antes de atravessar a porta, parou. — Onde a gente veio, Inácio, as feridas não aparecem no corpo. Elas sangram por dentro. E quando secam, viram vingança. E saiu. Deixando um silêncio duro na sala — e um CEO inquieto pela primeira vez em anos. Na Baixada Nova, Lara lavava roupas no tanque com força. Cada peça era uma lembrança esmagada. Cada sabão, uma forma de tentar limpar o próprio nome. Mateus chegou suado, irritado, ofegante. — Você não sabe o quanto me segurei. — Você foi lá? — Fui. E ele tentou me comprar. Cinquenta mil. Ela parou. — E você? — Eu cuspi na cara dele com palavras. Falei que isso aqui — ele apontou pro peito — não se compra. Lara sentiu algo entre o peito e os olhos. Era raiva. Mas também era gratidão. — Eu não quero você se metendo mais nisso, Mat. — Tarde demais. Agora não é mais só sua guerra. É minha também. Ela se aproximou. — Eu vou fazer do meu jeito. — Então faz. Mas não deixa que ele leve mais de você. Nem a fé. Ela assentiu. Mas dentro dela, o plano já começava a se formar. Ela não ia cair mais. Agora era ela quem ia derrubar. No topo da torre, Inácio olhava o horizonte. Mas pela primeira vez, o céu não lhe obedecia. Mateus tinha plantado algo que nem o dinheiro podia silenciar: medo. E Lara… era a única que podia colher o estrago. E quando o favelado diz que vai voltar… é porque já está vindo. O cheiro de sabão em pó já não saía das mãos de Lara. Nem da memória. Nem da alma. Era o único perfume que ela podia se dar ao luxo de usar — aquele misturado com gasolina e água suja da borra do chão, onde, dia após dia, lavava o que não era dela: carros de gente rica, sorrisos plastificados, vidas que passavam rápido sem jamais reparar nela. Mas agora… ela não queria mais ser invisível. Naquela noite, sentada na cadeira dura de madeira do curso técnico comunitário, Lara mantinha os olhos fixos no quadro branco. O professor falava sobre introdução à Administração, uma aula simples, gratuita, para iniciantes. Nada demais para quem nasceu com sobrenome, mas um mundo inteiro novo para quem teve que abandonar os estudos aos treze anos pra cuidar da mãe doente.
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