Ela anotava tudo. Até as vírgulas.
Mesmo que não entendesse metade.
Mesmo que o sono pesasse feito chumbo.
Mesmo que o coração ainda ardesse.
— “Planejamento estratégico é a base pra qualquer organização. Seja uma multinacional ou o mercadinho da sua rua” — repetia o professor, olhando os alunos nos olhos.
Lara repetia mentalmente. “Planejamento estratégico.” Anotava de novo. Subia um calor estranho no peito toda vez que a caneta riscava o papel.
Era raiva. Era fome.
Fome de mudar o próprio destino.
Ela não ia mais ser só a lavadora de carros da favela.
Ela ia ser alguém.
Nem que pra isso tivesse que engolir cada lágrima que escorria no travesseiro manchado de óleo.
No topo de um prédio espelhado, Inácio Ferraz encarava o caos com um copo de uísque na mão e a mandíbula tensa.
O escândalo com a “lavadora de carro” — como todos na diretoria se referiam a Lara — tinha virado notícia até nos bastidores do conselho. Blogs de fofoca, colunas de economia, jornais de negócios: “CEO flagrado em affair com mulher da periferia”.
Seu pai, Genaro Ferraz, ligara mais de três vezes naquele dia. A mãe, histérica, exigia uma reparação pública. A imagem da Ferraz Group estava em jogo. Patrocinadores cogitavam recuar. A noiva de fachada — uma socialite gelada chamada Lorena — ameaçava romper o noivado.
E a solução veio como um tapa na cara disfarçado de conselho:
— “Você vai se casar, Inácio. Vai oficializar logo essa união com Lorena. Mostrar ao mundo que tudo não passou de fofoca. E nunca mais será visto com esse tipo de… mulher.”
Ele riu. Amargo.
Engoliu o resto do uísque e olhou para o alto.
O teto não tinha respostas.
Mas no fundo do peito, alguma coisa se movia. Um incômodo.
Quando ouviu o nome dela de novo, no viva-voz da sala de reunião, sentiu uma fisgada.
“Lara.”
Por que esse nome parecia tão... vivo?
Enquanto isso, no corredor apertado de casa, Lara deixava os sapatos sujos do lado de fora e jogava a mochila na cadeira. m*l teve tempo de respirar — a irmã mais velha, Michele, apareceu segurando o celular com o rosto vermelho de raiva.
— Você viu isso aqui?! — gritou, jogando o aparelho no sofá.
Era um vídeo. Um trecho do programa de fofoca da noite anterior. Inácio, em um evento de gala, aparecia ao lado da noiva, sorrindo, os flashes disparando. Ao fundo, um repórter dizia:
— "Após rumores de envolvimento com uma funcionária de oficina, o CEO reaparece com a noiva e reforça que o casamento acontecerá ainda este ano."
Lara sentiu as pernas tremerem.
Não pelo vídeo.
Mas pela certeza de que ele nunca pensou nela como gente.
Ela foi uma distração.
Uma boneca suja de graxa que ele usou e jogou fora.
Michele encarava a irmã com fúria.
— Eu te avisei! Esses homens ricos só se interessam pelo que podem pegar e depois jogar no lixo! Você se deu ao luxo de se iludir? Você?!
Lara não respondeu.
Não precisava.
A vergonha já respondia por ela.
Foi pro quarto e trancou a porta.
Tirou o caderno da mochila, abriu na parte onde tinha escrito "Objetivos de Vida" com letra torta e apertada.
E escreveu mais um:
"Não ser esquecida. Nunca mais."
No dia seguinte, Lara saiu cedo. Ia trabalhar, estudar à noite, e ainda buscar um curso online de empreendedorismo que o professor tinha sugerido. A manhã m*l tinha começado e a cidade já cuspia o calor dos seus motores. Mas ela caminhava com passos firmes, como quem soubesse exatamente onde queria chegar, mesmo que o caminho estivesse todo apagado.
Do outro lado da cidade, Inácio acordava de ressaca.
Não pelo álcool, mas pela pressão.
Lorena exigia ensaio fotográfico para a imprensa.
O pai exigia fidelidade à marca.
A mãe exigia um discurso sobre “moral familiar”.
Ele estava cercado por máscaras. E preso numa delas.
Mas o que mais doía…
Era aquele nome não sair da cabeça.
Lara.
Ele nunca soube o sobrenome dela. Nunca perguntou.
Talvez achasse que ela nem tivesse um.
Maldita a hora que a puxou pelos cabelos naquele banheiro.
Maldita a hora em que ela gemeu seu nome como se tivesse coração.
Agora…
ele era o noivo perfeito.
E ela… só mais uma página virada.
Mas por que, então, era ela quem assombrava seus sonhos?
Na oficina, Matheus chegou mais tarde do que o normal. Trazia no rosto o que Lara reconhecia: dor e raiva. Ele estava ali quando tudo aconteceu. Ele viu a queda. E agora… via a reconstrução.
Na pausa do almoço, ele encostou no portão e a chamou com o olhar.
— Lara… posso falar contigo?
Ela assentiu, tirando as luvas.
Caminharam até o fundo, perto da mangueira onde ninguém escutava.
— Eu fui até lá.
— Lá onde? — ela perguntou, desconfiada.
— Na empresa dele.
Lara gelou.
— Matheus…
— Não fiz nada que você não merecesse. Falei o que ele precisava ouvir. Ele tentou me comprar, Lara. Tentou me calar com cheque.
Ela ficou em silêncio.
— Eu não aceitei. Jurei pra ele que um dia você ia ser tão grande que nem o sobrenome Ferraz ia conseguir apagar sua luz.
— E ele disse o quê?
Lara cerrou os punhos.
— Disse que você era boa de cama e burra de alma. Disse que nunca viu alguém acreditar tão fácil nas mentiras dele.
Ela virou o rosto, mordendo o lábio pra não chorar.
De novo. De novo aquilo. A mesma ferida aberta com outra faca.
— Um dia, Matheus… — ela murmurou, olhando o céu sujo da favela — ...ele ainda vai engolir cada palavra. E não vai ser com água. Vai ser com sangue.
Matheus olhou pra ela com orgulho.
Era a menina que ele conheceu — mas agora com olhos de mulher.
Naquela noite, Lara imprimiu seu currículo na lan house da esquina.
Não tinha muitas experiências. Não tinha sobrenome.
Mas agora… tinha sede.
Se inscreveu para um curso de capacitação empresarial numa ONG que ajudava mulheres periféricas. Se cadastrou em plataformas de freelancer. Assistiu vídeos de liderança. Começou a vender quentinhas nos sábados pra reforçar a renda. Fez o que podia.
E o que ninguém esperava.
Enquanto o mundo só falava do “casamento do ano” entre o CEO e a filha de banqueiros…
Lara já escrevia a primeira linha da história da mulher que não se dobrou.