O Convite que Rasga

1240 Words
O escritório de Edmundo Ferraz parecia mais um tribunal do que um espaço de negócios. Cada centímetro daquela sala transbordava hierarquia, silêncio e poder. Inácio estava de pé, como um aluno malcriado diante do diretor. O avô, sentado atrás da mesa de madeira maciça, mantinha os olhos fixos nos documentos à sua frente, como se ignorar o neto fosse a punição inicial. — Eu te dei liberdade demais — murmurou Edmundo, finalmente. — E você usou pra se deitar com uma lavadora de carros. Inácio cerrou os punhos. — Isso não tem nada a ver com a empresa. Eu resolvi. Edmundo levantou os olhos devagar. O cinza dos cabelos contrastava com a nitidez afiada dos olhos. Ele não gritava. Edmundo Ferraz nunca gritava. Mas cada palavra sua era um golpe que cortava fundo. — Resolveu? Resolveu mesmo? Manchou o nome da Ferraz, foi capa de coluna social, e ainda deixou o Matheus — aquele moleque raivoso — entrar aqui na empresa e cuspir na tua cara. O silêncio se fez como um açoite. Inácio respirou fundo, encarando o avô. Mas não teve coragem de abrir a boca. — Você vai casar com a Cecília — decretou Edmundo, com um movimento curto da mão. — Ela é da família Vieira. É sangue bom, elite de verdade. Vai acalmar os ânimos, garantir o conselho e limpar sua sujeira. Inácio engoliu seco. Estava acostumado a dominar os outros. Mas diante de Edmundo, ele era só um peão. — E tem mais uma coisa — completou o avô, puxando uma gaveta e tirando de lá um envelope branco. — Quero que envie isso para a garota. Lara. Inácio franziu o cenho. — O quê? — Um convite. Quero que ela venha até mim. Que me diga o que aconteceu. Com os próprios olhos. Com a própria boca. Quero avaliar o estrago… por inteiro. — Isso é um absurdo, vô! — O absurdo foi o que você fez com ela. Edmundo empurrou o envelope sobre a mesa com frieza. Inácio olhou para o objeto como se fosse uma granada prestes a explodir. — Mande entregar. Hoje. Na favela, Lara lavava o último carro do dia quando Rute apareceu correndo com o envelope na mão. — Menina! Vem ver isso! — gritou, sem fôlego. O papel branco trazia em alto-relevo o brasão da família Ferraz. Lara pegou com as mãos sujas de sabão e graxa, como se não se permitisse limpar antes de tocar naquilo. — É piada, né? Rute balançou a cabeça, ainda atônita. Lara abriu devagar, cada dobra como uma ferida nova se abrindo. Dentro, o convite formal: "Lara Souza, sua presença é solicitada no dia 12 de agosto, às 20h, na mansão da família Ferraz. O patriarca, Edmundo Ferraz, deseja ouvir pessoalmente sua versão dos acontecimentos. Sua presença será interpretada como sinal de respeito. Sua ausência, como declaração de desonra." Lara leu duas vezes. A terceira, em voz alta. Rute estava boquiaberta. — Eles querem te humilhar de novo, só pode. O velho deve achar que tu seduziu o netinho mimado dele. Vai te chamar de aproveitadora. — Talvez — respondeu Lara, com os olhos fixos no convite. — Mas se ele quer me ouvir… então vai ouvir. — Você vai? Lara respirou fundo. O ar da rua estava quente e pesado, mas dentro dela, algo começava a esfriar. Uma certeza. — Vou. Do outro lado da cidade, Inácio estava encostado na sacada do seu apartamento luxuoso, copo de uísque na mão, olhar perdido. O telefone vibrou. Era Cecília, sua futura noiva forçada. — Já saiu nos jornais — disse ela, ríspida. — Estamos noivos oficialmente. Amanhã sai a matéria da Vogue com nossa foto de quando fomos à Toscana. Sorri naquela, lembra? — Claro — murmurou ele, mesmo sem lembrar. — Só não me arrume outro escândalo, Inácio. Ou esse casamento também vai pro inferno antes mesmo do altar. Ele desligou sem responder. O pensamento fugia pra outro nome. Pra uma outra boca. Para a única mulher que não implorou por ele. Lara. E agora ela viria. Por ordem do velho. Ele não sabia o que sentia: vergonha, raiva, medo ou desejo. Talvez os quatro ao mesmo tempo. Ela viria… mas não como antes. Não mais uma garota apaixonada. Ela viria ferida. Orgulhosa. Pronta pra cuspir a verdade. E isso o desconcertava. Na noite do convite, Lara estava diferente. O cabelo preso num coque firme, maquiagem discreta feita por Rute, e um vestido preto alugado que moldava seu corpo com elegância. Não havia vaidade ali. Era armadura. No portão da mansão, dois seguranças a revistaram com olhos de julgamento. Ela entrou sem abaixar a cabeça. A casa era enorme, imponente, cheia de brilhos falsos e paredes que sussurravam segredos. Foi recebida por um mordomo que a conduziu até o salão. Edmundo Ferraz estava sentado numa poltrona, uma bengala repousando ao lado. Inácio, de pé, encostado na parede oposta, com expressão dura. Lara caminhou com a calma de quem sabia o peso de cada passo. — Boa noite — disse, firme. — Boa noite, senhorita Souza — respondeu Edmundo, medindo-a com os olhos de quem estudava um enigma. — Sente-se. Ela sentou. Não cruzou as pernas. Não desviou o olhar. — Quero ouvir sua versão — disse ele. — Sem rodeios. E sem tentar se fazer de vítima. Lara deu um meio sorriso. — Não preciso me fazer de vítima. Ele já fez isso por mim — disse, apontando com o olhar para Inácio. O velho não reagiu. Apenas ergueu levemente a sobrancelha. — Continue. E Lara contou. Não os detalhes íntimos, mas o suficiente: o assédio, o flerte, a promessa disfarçada, a noite em que se entregou por um instante de ilusão... e depois o desprezo, a risada, a humilhação. — Eu fui mais uma — concluiu. — Um brinquedo que ele usou e jogou fora. Mas eu não nasci pra ser jogada, senhor Ferraz. Silêncio. Edmundo a olhou por um tempo longo, como se visse algo que nem mesmo Lara sabia que tinha. — Tem orgulho nos olhos — comentou. — E isso, infelizmente, meu neto não conseguiu arrancar. Inácio deu um passo à frente. — Isso não tem cabimento! Você tá mesmo acreditando nela? — Eu tô acreditando no que você foi capaz de fazer quando achou que ninguém tava olhando — respondeu Edmundo, firme. — A Ferraz não é sua amante, Inácio. É um legado. E então, o velho voltou os olhos pra Lara. — Você trabalha lavando carros. Mas o que quer ser, de verdade? Lara segurou o queixo alto. — Engenheira mecânica. — Então estude. Termine. Prove que veio das cinzas… mas que pode andar sobre o fogo. E, se quiser, terei espaço pra você. Inácio explodiu: — Você vai dar oportunidade pra ela? Uma qualquer? — Mais digna que você nesse momento. Lara se levantou. — Eu não vim atrás de oportunidade. Eu vim por respeito. E agora que falei, posso ir. — Vai, menina — disse o velho. — Mas não desapareça. Gente como você, que sangra e não chora… ainda pode ensinar muito pra essa família. Ela se virou e saiu. Inácio ficou parado, sozinho, com o uísque quente na garganta e o orgulho queimando por dentro. Do lado de fora, no portão da mansão, Lara respirou fundo. Pela primeira vez, sentia que não era só mais uma menina invisível da favela. Ela tinha nome. Tinha voz. E agora, os Ferraz também sabiam disso.
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