A gente entrou rindo feito dois fugitivos do hospício.
Luísa ainda soluçava de tanto rir, segurando no meu braço, tropeçando no tapete da entrada.
Subimos a escada de mansinho, como se o chão tivesse aprendendo com a rede e também pudesse ranger segredos.
O quarto era o mesmo de sempre: ventilador de teto torto, pôster velho dos Los Hermanos que eu nunca tive coragem de tirar, e o cheiro bom do incenso que minha mãe vivia acendendo quando achava que eu tava “carregado de energia r**m”.
Ela caiu sentada na beira da cama e me puxou pra perto, rindo baixinho ainda.
— “Tua família é um filme. Mas dirigido pelo Tarantino em dia de surto.”
— “Lu, se eu pudesse apagar o que vi hoje… eu apagava com querosene e fósforo.”
Ela jogou a cabeça pra trás, gargalhando de novo.
— “Mas eu amei.”
— “A parte da b***a na mão ou da alma puxada pela rola?”
Ela bateu de leve no meu braço, ainda rindo.
— “A parte do amor. Daniel, eles se amam tanto que nem lembram que tem mundo lá fora.”
Deitei ao lado dela, ficando de lado, com a mão apoiada no quadril dela.
— “Eles são doidos.”
— “Mas são lindos. Tem i********e, tem desejo, tem afeto… e tudo ao mesmo tempo.”
Ficamos em silêncio por alguns segundos, só ouvindo o ventilador girando devagar.
Ela me olhou, os olhos ainda com brilho de riso, mas a voz baixou um tom, meio sonhadora.
— “Quando a gente casar…”
Pausa.
Meu coração engatou uma marcha que eu nem sabia que tinha.
Ela continuou, tranquila. Linda. Serena como quem tá contando segredo pro universo:
— “...eu quero que a gente seja assim.”
— “Assim como?”
— “Como eles.
Desavergonhados.
Intensos.
Rindo um do outro.
Se pegando sem motivo.
Se amando até a alma ficar gasta de tanto uso.”
Fiquei quieto. Só olhando.
Ela tava com os cabelos ainda com cheiro de mar. O rosto limpo, quase sem maquiagem, com aquele jeito de quem se sente em casa até no meu caos.
Toquei o rosto dela com a ponta dos dedos.
— “Tu quer isso comigo?”
Ela assentiu, com a bochecha encostando na minha palma.
— “Quero tua mão onde meu pai jamais deixaria. Quero tua risada no meu ouvido quando eu tiver com TPM. Quero tua paciência, tua teimosia e tua roupa jogada na sala. Quero tua versão em domingo, tua versão gripada, tua versão sem pressa. Quero tudo que for tu.”
Minha garganta fechou.
Ela sempre fazia isso. Desarmava.
— “Se tu falar mais uma frase bonita, eu te peço em casamento agora.”
— “Então eu vou calar a boca. Porque eu quero que tu peça quando for sério.”
— “E se já for?”
A pergunta ficou solta no ar, flutuando entre a gente como fumaça de vela queimada.
Ela não respondeu.
Mas também não desviou o olhar.
Ficou ali, me olhando com aqueles olhos grandes, escuros, cheios de calma e tempestade ao mesmo tempo.
Devagar, ela deslizou a mão pelo meu peito, traçando o contorno da cicatriz que eu tinha ali — pequena, boba, de quando caí da bicicleta aos oito anos e jurei que nunca mais ia amar nada que machucasse.
Mentira.
Amor é isso.
É tropeçar sorrindo.
— “Já é sério, Daniel?” — ela sussurrou, e o nome na boca dela parecia reza.
Assenti, engolindo seco.
— “É o mais sério que eu já fui.”
Ela deu aquele meio sorriso que sempre me ferrava. Um canto da boca levantado, o outro esperando a piada. Mas dessa vez... não veio piada.
Só veio ela.
Ela se inclinou, encostou a testa na minha, os olhos fechados, como se o mundo parasse ali — no barulho do ventilador, no cheiro de mar ressecado no cabelo dela, na minha mão ainda parada no quadril.
— “Então me promete uma coisa?”
— “Prometo.”
— “Promete que mesmo quando a gente brigar, tu vai lembrar do hoje.”
— “Qual parte?”
— “Todas. A gente rindo. A gente correndo na areia. Tu me jogando no mar. Teus pais se pegando na rede. Eu dizendo que quero tua alma cansada e tua cueca furada. Promete que tu vai lembrar que isso aqui não é só paixão de verão.”
Eu puxei ela pra mais perto, tão perto que nossas respirações viraram só uma.
— “Prometo lembrar. Prometo te amar quando tu tiver insuportável de TPM, quando tua rinite atacar, quando tu disser que odeia meu chinelo com meia. Prometo te amar até quando eu esquecer que prometi. Porque tu é a única coisa que eu nunca vou conseguir desamar.”
Ela riu, baixinho.
Com os cílios encostando no meu rosto.
E foi ali.
Naquele silêncio que não doía.
Naquela paz suada de fim de dia.
Naquela cama que já era nossa, mesmo sem aliança nem contrato…
…que eu soube.
Soube que, se um dia eu fosse casar, seria com ela.
Se um dia eu fosse ter filhos, seria com ela.
Se um dia eu fosse morrer de velho, com Alzheimer e tudo…
seria lembrando da menina que quis minha versão gripada.
Ela mordeu o lábio, abriu os olhos e perguntou com a voz mais safada do universo:
— “Tu quer começar a praticar agora?”
— “Praticar o quê?”
— “O casamento.”
— “Mas casamento tem papel, testemunha…”
— “A gente tem a rede dos teus pais como prova. E o ventilador como testemunha.”
— “E se o ventilador cair em cima da gente no meio do ato?”
— “Aí a gente morre feliz. Do jeito certo: pelado e apaixonado.”
Ela me puxou pela camiseta, sorrindo como quem sabe que venceu antes do jogo começar.
E eu deixei.
Deixei ela vencer.
Deixei ela tirar o ar do meu peito.
Deixei ela me prometer o mundo sem precisar dizer mais nada.
Porque tem gente que entra na tua vida com areia no pé e bagunça o coração inteiro.
E tem amor que começa no susto…
mas vira casa.