Quando acordei no dia seguinte, olhei o relógio e percebi que já eram duas da tarde, mas não liguei porque eu não tinha horário para acordar. Achei que não sentiria falta do despertador, mas senti. Senti falta da p***a do despertador do céu.
- Bom dia, anjinho caído do papai! - Caim disse. Girei os olhos.
- Jesus não tinha alguém menos o****o pra me mandar, não? - Caim literalmente caiu na gargalhada.
- Você quer cair na Terra e ficar em paz? Tem é que agradecer que eu estou te ajudando, Billie. Aliás, seu nome agora é Billie Brown e você tem dezesseis anos. - Ele me entregou um documento com uma foto minha que tiramos ontem e alguns números.
- Pra que serve? - Ele respirou fundo.
- Pra muitas coisas. Guarde com você. Com cuidado. Bom, quero dar um passeio com você. Vamos?
Caim colocou um sobretudo e um chapéu. Eu estava com um moletom preto largo, um short largo e tênis que ele me deu. Pra mim, estava bom.
Eu tomei uma coisa chamada café. É muito gostoso. Também comi um pão doce que era muito melhor que a p***a da ração que nos davam no céu. Maná, eles chamavam.
- Vem, Billie. Entra aqui comigo. - Ele me puxou pela mão. Pelo que entendi, Caim é meu pai e eu sou sua amável filha. - Olá, senhorita Rosa. - Caim falou. Então... Essa é a Rosa.
- Oi, senhor Caim! - Ela abriu um sorriso. A moça, loira dos olhos claros, parecia a p***a de um anjo. Talvez o mais bonito que eu já tenha visto, e minhas mãos estão suando... Por que diabos tem secreções saindo das minhas glândulas sudoríparas?
Eu encarava minhas próprias mãos, até levar um tapa na cabeça.
- Ai, p***a! - Olhei para Caim. Filho da p**a. - Oi, meu nome é Billie Brown. Você quer ver meu documento?
- Pra comprar flores? - Rosa me olhou confusa e deu uma risada.
- Minha filha era do interior. Um interior bem interior mesmo. E não sabe um monte de coisa sobre a convivência em sociedade. Não é, Billie? - Olhei pra ele, com desdém.
- Pelo visto, sim. - Peguei uma flor na mão e observei. - Elas tem espinhos aqui... Não tinham espinhos no paraíso.
Ver que as flores tem espinhos me deixou triste. E fiquei ainda mais quando reparei nas mãos de Rosa, cheia de arranhões.
- Vai levar essa, Billie? - Concordei com a cabeça.
- Cuidado, a flor tem espinhos. Você não devia ficar tocando nelas... - Falei. Caim bateu na própria testa. Era algo i****a a se dizer? Talvez. Eu nunca fui humana, e esse é o meu primeiro dia fingindo ser uma.
- Obrigada, Billie... Eu trabalho aqui já faz um tempo. Me acostumei com os arranhões. - Ela pegou a flor da minha mão e começou a embalá-la em papel.
Me aproximei de Caim. Ele entregou dinheiro para Rosa e ela lhe deu a flor. Tem muita coisa que eu tenho que aprender. Que droga.
- Muito obrigada, Rosa. Até mais! - Caim disse e saímos da floricultura.
Caminhando de volta pra casa, coloquei as mãos nos bolsos e comecei a pensar em Rosa. Ela parece tão frágil, tão doce... Como ela sobreviveu nesse mundo filho da p**a sem a p***a de um anjo?
- Billie? - Caim me olhou. - Consigo ouvir seus pensamentos. Está pensando na Rosa, não está?
- Você ouve meus pensamentos mesmo ou é uma metáfora? - Ele sorriu.
- Metáfora. O que está pensando? - Ele carregava a flor embrulhada em papel. Eles esmagam e matam uma árvore, transformam em papel, aí eles matam uma flor e embrulham nisso. Conceito interessante de presente.
- Estou pensando em como um ser tão frágil como ela, conseguiu sobreviver nesse mundo sem um anjo. - Caim suspirou.
- Eu cuidei dela. Também não gosto de ver os humanos... Sozinhos. Acho injusto pagarem pelos erros dos anjos. - Ele me olhava com raiva. E eu sabia bem o que era raiva.
- Não tenho culpa se o paraíso é um inferno pra mim! Vai pra lá, louvar um Deus que nunca dá as caras e nem liga pras suas orações e veja se você também não sai revoltado. - Falei, cruzando meus braços. Caim balançou a cabeça negativamente e continuamos andando.
- Olha, eu encomendei algumas coisas pra você. Você vai ficar no seu quarto uma semana com isso aqui e por favor, vire uma adolescente normal. - Ele retirou uma caixa da caixa de correio e me entregou. - É um celular. Você vai saber o que fazer, é bem intuitivo. E depois que você virar um adolescente normal, quero você indo pra escola e fazendo coisas de um ser humano normal. Só... - Ele respirou fundo. - Tenta não se envolver demais com os humanos. Se é que me entende.
- Não, eu não entendi. - Ele girou os olhos. Entramos em casa e ele fechou a porta. Eu estava abrindo a caixa do celular e já acertei como ligar.
- Não desenvolva sentimentos demais por humanos, Billie. Isso te enfraquece. Se você fizer tudo direitinho, vai ter uma vida confortável e livre por uns duzentos, trezentos, anos. Agora... Se você não agir corretamente, e começar a se envolver demais com os humanos...
- O que vai acontecer? Vou ser condenada ao inferno? - Caim riu.
- Excelente piada. Mas não, não. Você será consumida e sua alma será levada pro limbo em vinte ou trinta anos. E aí, sim, você sofrerá por toda eternidade.
Que merda. Eu não tenho muita escolha.
Entrei no quarto e liguei o celular. Realmente, é muito intuitivo.
Foram horas e horas de pesquisa... Fui para sites relacionados a tecnologia, matemática, achei erros ridículos em teorias da NASA, vi coisas que eu queria contar para os humanos que existiam mas eu não podia... Entrei no PornHub. Vi sexo, aprendi coisas esquisitas e coisas legais, enfim... Foram dias muito, muito intensos na frente do celular. Minha parte favorita de toda a internet além do Google?
Redes sociais. As pessoas postam fotos delas mesmas com qual intuito, hein? Acasalar?
Por algum motivo, procurei as redes sociais de Rosa. Pelo que entendi, quem não posta muito em redes sociais é porque é muito ocupado, então ela deve ser... Só tem uma foto.
Uma p***a de foto que me deixou mais de vinte minutos olhando pra tela do celular. Pra ela. Parece que um fotógrafo tirou quando estava na escola de ballet dela. É, eu descobri que ela é bailarina, além de gostar de flores.
Por que eu me sinto assim quando a olho? Essa mistura de culpa, tristeza, e ao mesmo tempo... Admiração? Ela é só a p***a de um ser humano. E quando eu digo "p***a", agora eu sei o que é.
Desliguei o celular e deitei na minha cama. Ainda uso roupas largas do Caim, mas aderi a alguns colares e anéis. E agora? Bom, agora a minha vida começa de verdade.