A noite caía com suavidade sobre o pequeno apartamento de paredes claras, onde Lisbeth e a irmãzinha, Bella, se movimentavam entre risos e sacolas. As compras estavam espalhadas pela sala e pela bancada da cozinha, ainda embaladas com o cuidado das lojas. Era como se uma avalanche de generosidade tivesse passado por ali, e agora as duas se esforçavam para organizar o novo tesouro com zelo.
— Me dê essa sacola, Bethe! Eu alcanço lá no armário! — dizia Bela, empolgada, equilibrando-se na pontinha dos pés.
Lisbeth sorriu, os cabelos presos de forma simples, o rosto ainda cansado, mas com os olhos brilhando de gratidão.
— Tá bom, mocinha. Mas com cuidado, hein?
— Pode deixar! — respondeu a garotinha, orgulhosa.
Entre uma dobra e outra de roupinhas novas, entre mamadeiras, fraldas, brinquedos e uma caixa de chocolates que Bela mantinha ao alcance do olhar como se fosse um tesouro sagrado, Lisbeth preparava um simples sanduíche. Pegou duas fatias de pão, passou um pouco de requeijão e colocou queijo e presunto.
— Só isso hoje, viu? — ela disse. — Já jantou na casa da tia Cida, então esse é só um lanchinho. E amanhã a gente vê o que come. Eu quero só me deitar um pouco, descansar. Hoje foi um dia cheio, mas abençoado.
Bela mordeu o lanche com gosto, e de repente, com os olhinhos cintilando, soltou:
— Um dia eu vou ser muito, muito, muito, muito, muito rica, Bete. E aí você não vai mais precisar trabalhar, tá? Prometo.
Lisbeth parou o que estava fazendo. Encostou-se na pia, observando a irmã com um sorriso que misturava ternura e uma pontinha de dor. Ajoelhou-se, enxugando as mãos no pano de prato, e acariciou o rostinho da menina.
— Vai ser, sim, meu amor. Se Deus quiser. Mas olha só… o mais importante não é ser rica. O mais importante é estudar, crescer, ser uma mulher boa, honesta e conquistar o seu lugar no mundo com dignidade.
— E você vai estar lá comigo, né, irmã?
— Sempre. Mesmo que não possa estar do seu lado em tudo, eu vou estar em cada conquista sua. Aqui — apontou o coração da irmã — e aqui também — disse, beijando a testa dela.
Bela abraçou a irmã com força.
— Então tá, irmã. Vou estudar muito e vou ser… como é que é? Um efe… efe...
— Efetiva — completou Lisbeth, rindo baixinho. — Vai ser uma profissional com cargo fixo, com estabilidade. E vai poder ajudar outras pessoas também. Igual a gente foi ajudada hoje.
— Igual o moço bonito e a princesa grávida.
— Isso mesmo — murmurou Lisbeth, emocionada.
As duas terminaram de guardar as coisas em silêncio, uma cumplicidade tranquila reinando no lar humilde e limpo. E naquela noite, Lisbeth se deitou com o coração leve. Pela primeira vez em muito tempo, ela sentia que não estava mais sozinha.
A Visita Inesperada
Aos poucos, as sacolas foram esvaziadas, cada roupinha dobrada com carinho, cada fralda guardada em seu lugar, cada mamadeira no armário. Lisbeth se movia com agilidade, mas seus olhos revelavam cansaço. Mesmo assim, havia um brilho diferente neles naquela noite — um brilho de esperança.
— Laurinha, escova os dentes e veste o pijaminha, vai. A mana ainda vai guardar essas duas sacolas aqui.
— Tá bom, irmã! — respondeu a pequena, com a voz sonolenta, mas obediente.
Lisbeth finalizou de organizar as últimas coisas e seguiu para o quarto. Quando voltou, encontrou a irmã já deitada, com o pijama florido e os cabelos em desalinho.
— Fez sua oração?
— Ainda não.
— Então vamos. Agradece ao Papai do Céu por hoje, tá bom? A gente foi muito abençoada.
Laurinha juntou as mãozinhas, fechou os olhos e murmurou baixinho sua prece de criança. Lisbeth apenas observou, emocionada. Quando a irmã terminou, ela a beijou na testa, apagou a luz e deitou-se também.
Naquela noite, dormiu profundamente. Um sono tão pesado e sereno que, pela primeira vez em meses, ela nem soube dizer se sonhou. Só sabia que descansou. E seu corpo, que tantas vezes parecia carregar o mundo, finalmente cedeu ao alívio de uma pausa.
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O dia seguinte começou cedo.
Lisbeth acordou com o som do despertador do celular, levantou-se devagar, ainda sonolenta. Foi até o quarto da irmã e, com delicadeza, acariciou os cabelos dela.
— Laurinha… vamos, meu amor. Hora de acordar.
— Já?
— É… já sim. Vai lavar o rostinho enquanto eu preparo seu café.
Em minutos, a pequena estava sentada à mesa tomando o leite com pão e fruta que a irmã havia deixado pronto. Lisbeth ajeitou a lancheira, conferiu a mochila, arrumou o cabelo da menina num r**o de cavalo e a acompanhou até a escola.
Na volta, ela vinha pela calçada, ajeitando a bolsa no ombro e tentando calcular o tempo exato para se arrumar e ir trabalhar, quando viu uma mulher conhecida parando em frente ao prédio.
A assistente social.
Ela já sabia o que era. E não se surpreendeu.
— Bom dia. — disse a mulher, de forma seca. — Estava saindo?
— Bom dia. Não, estou chegando agora. Fui deixar a Laura na escola. A senhora poderia ter avisado, né?
A assistente social ajeitou a bolsa, mantendo o olhar firme:
— Nós não podemos avisar quando vamos. Nossas visitas precisam ser surpresas.
— Entendo… pode entrar.
Subiram as escadas. O apartamento modesto, simples, mas limpo e organizado, logo se revelou.
— Com licença. — disse a funcionária, já caminhando com olhar observador.
— Fique à vontade. Mas só pra avisar que eu não posso demorar muito, preciso me arrumar e sair pra trabalhar.
— Vai ser rápido.
A mulher foi direto ao quarto da pequena. O lençol esticado, os brinquedos organizados na estante, o uniforme pendurado na cadeira. Um quadro com desenhos infantis coloria a parede.
— O quarto está bem organizado — observou, quase surpresa.
— A minha mãe ensinou a gente assim. Mesmo criança, Laura já sabe o valor da disciplina.
Depois foi até a cozinha. Abriu discretamente a geladeira. Leite, frutas, verduras, carnes embaladas, sucos. Os armários também estavam abastecidos com arroz, feijão, macarrão, bolachas, cereais.
— Estou vendo que fez supermercado recentemente.
— Sim, senhora. É pra isso que eu trabalho, né? Não posso faltar com nada pra minha irmã.
A assistente fez algumas anotações numa prancheta, examinou o restante com discrição, e finalmente disse:
— Por enquanto, está tudo em ordem.
— Obrigada. Agora, com licença, eu preciso tomar banho e me arrumar.
— Entendo. A próxima visita será em breve novamente.
— Tudo bem, senhora. Só peço que, se possível, venham sempre pela manhã. A partir das dez, já estou no trabalho. Em alguns dias, preciso até sair mais cedo.
— Está certo. Vamos tentar.
A mulher saiu e Lisbeth fechou a porta com cuidado. Encostou-se por um momento na madeira e suspirou fundo. Mais uma batalha vencida. Mais uma vez, ela provava que podia, sim, cuidar da irmã com amor, dignidade e responsabilidade.
Testada Pela Vida
Já era quase dez horas da manhã quando Lisbeth chegou à loja. O tempo de tomar um banho rápido, prender o cabelo em um coque simples e colocar a camisa social branca com a calça de alfaiataria azul-marinho. Nada extravagante, mas impecável — como sempre fazia.
A loja ainda estava abrindo suas portas para o público, e ela foi a primeira vendedora a chegar. A gerente veio logo atrás, deu bom dia sem muito entusiasmo e seguiu para seu escritório. Lisbeth colocou o crachá, deu uma última conferida na maquiagem suave no espelho próximo ao balcão e respirou fundo.
— Vamos, Lisbeth. Um novo dia. Vai dar tudo certo.
Nem dez minutos depois, o sino da porta de entrada soou com um tilintar metálico elegante.
Ela levantou os olhos e viu o primeiro casal do dia entrando. A mulher ia à frente: salto fino, vestido justo com corte elegante em tom champanhe, barriga já pronunciada — provavelmente no sétimo mês. Os cabelos loiros estavam presos num coque alto e cheio de spray. O perfume caro deixou um rastro no ar.
Atrás dela, vinha o homem. Alto, cabelos escuros, blazer ajustado, a mão discretamente nas costas da esposa. Mas seu semblante era mais leve. Educado, quase gentil.
Lisbeth deu dois passos à frente, sorriu com profissionalismo e se aproximou.
— Bom dia, senhora. Posso ajudá-la?
A mulher parou, ergueu uma sobrancelha com desdém e olhou Lisbeth de cima a baixo, como se estivesse vendo algo que não merecia estar ali.
— Quem é você pra querer me ajudar?
O tom foi ríspido. Frio. Ofensivo. O sorriso de Lisbeth hesitou por meio segundo, mas ela o retomou com dignidade.
— Sou a vendedora responsável por este setor, senhora. Perguntei apenas se deseja ajuda ou que eu apresente a nova coleção que chegou esta semana.
A mulher virou o rosto, soltando uma risadinha sarcástica.
— Nova coleção? Não me faça rir. Não preciso de ajuda. Estou apenas olhando.
Lisbeth respirou fundo. O coração apertado, mas o controle emocional intacto. Baixou levemente o olhar e pensou:
— Senhor… me dê paciência. O primeiro cliente do dia já ser uma pessoa tão difícil. Hoje promete.
Enquanto pensava, ouviu o tom grave do marido da mulher quebrar o silêncio.
—Você quer, por favor, parar que isso? Você sabe que não é assim que se trata as pessoas. Principalmente quem está te oferecendo ajuda com educação.
A mulher apenas revirou os olhos e continuou andando pelos corredores da loja, ignorando os dois.
O homem se virou para Lisbeth, envergonhado.
— Me desculpe pelo comportamento dela. Estamos passando por uma fase difícil… — fez uma pausa curta — gravidez, hormônios, sabe?
Lisbeth apenas assentiu com um leve sorriso, gentil como sempre.
— Está tudo bem, senhor. Acontece.
— Você foi muito profissional — ele disse, sincero. — Obrigado por não perder a paciência.
Ela apenas curvou o rosto num gesto humilde e retomou seu posto, sem perder a postura, mas com o peito pesado.
— Primeiro, uma visita surpresa da assistente social. Agora isso. Senhor… é hoje que o Senhor vai me testar?
Mesmo assim, ergueu os ombros, arrumou o blazer e se preparou para encarar o resto do dia — porque desistir, para Lisbeth, nunca foi uma opção.
Aparências e Verdades
Lisbeth respirou fundo. A elegância dela era o silêncio. Mas até o silêncio tem limite quando é usado para ferir.
Ela sorriu, ainda mantendo a educação no olhar, e disse com firmeza, porém gentileza:
— Senhora, se preferir, posso chamar nossa gerente para lhe atender pessoalmente. Ela poderá apresentar a nova coleção com mais detalhes.
A mulher não respondeu. Apenas virou o rosto, como se Lisbeth fosse invisível.
Sem alterar o tom, Lisbeth se curvou levemente com discrição e se afastou com passos firmes, mas tranquilos. O salto médio ecoando levemente no piso polido da loja.
Antes de virar o corredor, porém, ela ainda escutou com clareza o que o homem dizia — e aquilo a fez parar por um segundo, imóvel, escondido entre os cabides da seção seguinte.
— Você age como se o dinheiro fosse seu, Helena. Mas quem tem dinheiro aqui sou eu. E eu não admito que você trate as pessoas desse jeito.
— Ah, pelo amor de Deus. Você não viu como ela é?
Lisbeth sentiu o peito doer.
— Como eu sou...? Meu Deus… será que eu sou tão disforme assim pra causar esse tipo de repulsa numa mulher que nem me conhece?
Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo, engolindo seco o constrangimento.
Foi nesse momento que Marina, outra vendedora da loja, se aproximou em silêncio. Já havia percebido o que tinha acontecido. Lisbeth não precisou dizer nada.
— Não liga pra isso não, Lis. Aquela mulher… aquela ali não é esposa dele, não.
Lisbeth franziu o cenho, surpresa.
— Não?
— Até onde eu sei, parece que ela deu o golpe da barriga. Disse por aí que estava grávida dele. Saiu nas colunas sociais e tudo. E agora fica aí desfilando como se fosse dona de tudo.
Lisbeth olhou discretamente para o casal, ainda de longe.
— Ele parece incomodado. Você viu como ele falou com ela?
— Vi sim. E sabe o que é mais triste? — Marina abaixou o tom. — Ela está toda cheia de pose, mas ele... você viu como ele é diferente dela? Gentil, educado. O tipo de pessoa que realmente tem dinheiro e sabe como tratar os outros.
Lisbeth assentiu, ainda com o coração amassado, mas tentando manter a compostura.
— É, MIlly… o problema não é ter dinheiro. É o caráter de quem o tem.
A amiga tocou de leve no braço dela.
— Vem, vamos tomar uma água. Você não merece começar o dia assim. Você é uma das melhores vendedoras que essa loja tem. E hoje vai ser um dia bom, sim. Deus está vendo.
Lisbeth sorriu de leve.
— Tá certo. Só deixa eu chamar a gerente primeiro… ela que aguente o “bom humor” da madame.
Elas riram baixinho, cúmplices naquele tipo de amizade que nasce no campo de batalha do cotidiano.
Mas Lisbeth sabia: não era apenas um dia difícil. Era mais um capítulo da história que ela escrevia com a força do próprio suor — e que, m*l sabia ela, estava prestes a mudar de rumo.